A famigerada pensão para filhas de militares: o gasto do Governo com essas pensões sempre volta às manchetes. Especialmente quando se fala em alguma reforma tributária, ou, ultimamente, sobre auxílio emergencial, o tema das pensões para filhas de militares vem à tona, por serem sempre gastos volumosos. Mas pouca gente sabe de fato o que é essa pensão, nem como ela funciona. Criaram-se vários mitos acerca do benefício, que o presente texto visa a desmistificar., nos termos mais simples possíveis.
Busca-se responder o que é essa pensão, quais seus principais aspectos, e se é algo ilícito ou imoral.
Assim, apresenta-se um histórico da pensão e os pontos mais relevantes sobre o assunto.
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Mulher marchando com militares

Afinal de contas, o que é essa pensão vitalícia?

Essa pensão, conhecida como pensão especial, foi estabelecida por uma lei de 1960 (Lei nº 3.765/60). É basicamente uma pensão por morte (que existe para a iniciativa privada e para funcionários públicos).
Inicialmente, conforme a redação original do art. 7º da lei, funcionava assim: o militar contribuía com uma parcela de seu salário (quando foi criada, era o valor equivalente a 1 dia de trabalho. Em 1968, foi aumentada para 3 dias de trabalho e, depois foi diminuída conforme a patente da pessoa; depois foi estabelecida em 2 dias de trabalho; e, em 1991, voltou a ser de 3 dias). Se o militar viesse a falecer, a viúva fazia jus a uma pensão. Inicialmente, somente se ele não deixasse viúva, é que os filhos fariam jus à pensão – filho do sexo masculino até atingir a maioridade, filha do sexo feminino, vitalícia. Se não tivesse filhos nem viúva, a pensão iria para mãe solteira ou para o pai inválido do militar falecido; se não tivesse nenhum desses, a pensão ia para irmã, ou para o irmão menor dependente do militar.
Como se nota, essa contribuição sempre foi minúscula (1 ou alguns dias de trabalho), mas vale dizer que nem se pensava em rombo da previdência nessa época, ou seja, não havia nada absurdo – a pensão só ia para filha se o cidadão não tivesse deixado viúva. Ou seja, em 1960, até parecia uma pensão por morte mesmo, ainda que a contribuição fosse minúscula. 

A questão das filhas solteiras

União pagou R$ 19 bi de pensão a parentes de militares
Militares do exército em formatura
Note o leitor que, até agora, nada se falou sobre filha solteira, porque isso não existia na redação original da lei.
Tudo mudou em 1991 (o ano, aliás, é importante para o Direito Previdenciário, pois nele foram editadas duas das principais leis previdenciárias do país, a lei de custeios – Lei nº  8.212/91 – e a lei de benefícios – Lei nº 8.213/91, e, logo depois, a lei que nos interessa). Como mencionado alhures, em 1991, a contribuição foi aumentada novamente para 3 dias de trabalho. Foi o que dispôs a Lei nº 8.216/91 (editada, portanto, logo depois dessas leis previdenciárias). E, como mencionado, até 1991, havia uma ordem para receber a pensão. Antes, os filhos só recebiam se o falecido não tivesse deixado viúva. A Lei nº 8.216/91 acabou com isso! A partir dela, a pensão passou a ser paga conjuntamente para a viúva e para os filhos!
Por outro lado, para “compensar”, digamos assim, a nova lei previu que essa pensão só seria devida à filha solteira. E, obviamente, isso foi um equívoco grotesco do legislador, que deixou de considerar a esperteza de possíveis beneficiárias. Claro – se a pensão é devida enquanto a pessoa não se casar, a esperteza, o jeitinho brasileiro, logo leva à conclusão de que basta não se casar para que o benefício se perpetue. Claro, foi o que aconteceu na prática.
O que é o jeitinho brasileiro? - SocialMenteSocialMente
Representante do jeitinho brasileiro nos desenhos animados e histórias em quadrinhos.

Extinção da pensão vitalícia

Mesmo que esse novo regramento da pensão especial fosse um completo absurdo, demorou cerca de 10 anos para acabarem com esse verdadeiro privilégio vexaminoso. Somente no ano de 2001, por meio da Medida Provisória (MP) nº 2.215/2001, essa situação foi alterada[1]. Pela Medida Provisória, a contribuição minúscula de 3 dias de trabalho aumentou para 1,5% do soldo do militar (como é chamado o salário do militar, sem adicionais e gratificações). Essa mesma MP extinguiu a pensão vitalícia para filhas de militares – desde então, e até hoje, quando o militar morre, a pensão é devida para o cônjuge ou companheiro do militar, e para os filhos menores de 21 anos, ou, se universitários, menores de 24 anos. Se não tiver deixado filhos nem cônjuge, a pensão vai para os pais que dependam do militar falecido; se não houver, vai para irmão órfão do militar, desde que dependente dele.
Portanto, é preciso deixar claro: essa pensão foi extinta no ano de 2001.
Ainda assim, vale complementar, esse valor de 1,5% não é nem de longe suficiente para cobrir a despesa com as pensões – também por isso que o rombo da previdência dos militares, proporcionalmente, é tão maior que o do INSS.
Uma vez contextualizada essa pensão especial (que, diga-se de passagem, mesmo atualmente, é bem mais generosa que a pensão por morte do INSS, que não pode ser estendida caso o filho seja universitário e que tem limite de tempo a depender da idade do cônjuge sobrevivente – não é sempre que a pensão é vitalícia para o cônjuge), passa-se às perguntas mais importantes.

Quer dizer então que essa pensão vitalícia foi extinta?

SIM.
Atualmente, não existe mais a pensão vitalícia. Esse benefício vitalício não existe mais na legislação. A filha de qualquer militar que tenha ingressado nas forças armadas depois da Medida Provisória nº 2.215/2001 não fará jus à pensão vitalícia.
Contudo, a pensão especial (que equivale a uma pensão por morte) ainda existe: é devida para o cônjuge ou companheiro do militar falecido e para os filhos de até 21 anos, ou 24 se universitários (note o leitor que, diferentemente da redação original, não é mais necessário que o cônjuge seja uma viúva: pode ser do sexo masculino também, seja porque mulheres podem integrar as forças armadas, seja porque, em tese, nada impede um relacionamento homoafetivo e a concessão da pensão especial neste último caso). Não havendo esses, a pensão será para os pais dependentes, na forma do art. 7º da lei, alterada pela MP.

E quanto os militares que entraram antes da Medida Provisória?

Aí está o principal ponto. Nesse caso, a MP deu duas opções para o militar: ou ele aderia à contribuição de 1,5%, e mantinha o regime antigo de pensão (inclusive a vitalícia); ou ele não aderia à nova contribuição, e aí perdia esse direito. Militares que entraram depois da MP não têm essa opção – são obrigados a contribuir com 1,5%, e não têm direito à pensão vitalícia para filha, só o regime novo explicado no parágrafo anterior. Sendo que todos os militares ainda contribuem, atualmente, com 12% para a previdência deles, valor que, em 2001, era de 9% [2].

Então, embora extinta, essa pensão ainda pode ser concedida?

SIM.
Se o militar fez a opção de contribuir, ele tem direito adquirido à pensão especial do regime anterior e, portanto, se tiver uma filha, esta fará jus a uma pensão vitalícia quando ele morrer. 
Ou seja, além das pensões vitalícias atualmente concedidas (que constituem direito adquirido constitucionalmente protegido), ainda existem pensões vitalícias a serem concedidas, quando esses militares anteriores a 2001 que tiverem filhas morrerem.
A última pensão vitalícia deixará de ser paga quando a última filha de um militar anterior a 2001 que fez essa opção pela contribuição morrer.
Imoral que é, essa pensão ainda será custeada pelos cofres públicos por bastante tempo, portanto.
Boatos sugerem que pensão militar de Regina Duarte é irregular pelos seus casamentos, mas benefício não é exclusivo para as solteiras
A atriz Regina Duarte é uma das pessoas que recebem essa pensão especial vitalícia

Então, se a filha se casar, ela perde a pensão?

NÃO.
Como dito, em 1991, de fato, passou-se a exigir que a filha fosse solteira para receber a pensão. Contudo, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 574, considerou que essa exigência é inconstitucional. Ou seja, a filha recebe o benefício vitalício tendo casado ou não– basta que o pai militar falecido tenha entrado nas forças armadas antes da MP de 2001 e tenha optado por contribuir com 1,5%.
Contudo, a ideia de que a beneficiária não poderia se casar acabou pegando no ideário popular.
Contribuiu para isso o fato de que, originalmente, a pensão era em primeiro lugar para a viúva, sendo que a pessoa, quando se casa novamente, deixava de ser viúva.

O que é direito adquirido?

Direito adquirido é um pilar de segurança jurídica sobre o qual se estrutura o Direito moderno, que conta com proteção constitucional, e cujo nome é autoexplicativo. Basicamente, uma vez cumpridos determinados requisitos para adquirir um direito, adquire-se esse direito, ele ingressa no patrimônio da pessoa, e deve ser respeitável. Na prática, é algo intocável, não podendo ser extinto nem por lei, nem mesmo por emenda constitucional. Só mesmo uma nova Constituição para acabar com algum direito adquirido.
Exemplificando, Augusto Aras, atual Procurador-Geral da República, ingressou na carreira do Ministério Público Federal antes da Constituição de 1988 – na época, os membros do MPF podiam advogar, podiam ter um escritório particular. Isso foi reconhecido como direito adquirido pela nova Constituição – tanto que ele continuou advogando (hoje, não mais, pois abdicou desse direito para assumir o cargo de Procurador-Geral).
Não necessariamente isso garante privilégios. Imagine o(a) caro(a) leitor(a) amanhã a idade para tirar Carteira Nacional de Habilitação  fosse alterada para 21 anos. Pergunta-se: todo mundo com 18 a 20 anos que tirou CNH perderia o direito de dirigir e teria que tirar de novo? A resposta é não, porque já adquiriu o direito à habilitação e a dirigir. Igualmente, se amanhã fosse criado um exame igual ao da OAB para todos os médicos, engenheiros, contadores, nutricionistas, dentistas, ou qualquer profissão, esses profissionais, que já exercem a profissão, perderiam esse direito de atuar? Não – mais uma vez, trata-se de direito adquirido.

Mais um exemplo para entender o direito adquirido

Hoje, pela lei da magistratura, juízes têm direito a 2 meses de férias. Então, no atual regime jurídico da magistratura , as férias são de 2 meses. 
Esse direito de 2 meses dos juízes pode ser mudado?
Sim, sem problemas. Segundo o STF, não existe direito adquirido a regime jurídico. Bastaria, portanto, aprovar uma simples lei complementar [3], igualando os juízes a todos os demais profissionais do Brasil. A partir dessa lei, em diante, o direito às férias de todos os juízes será somente de 30 dias.
Agora imagine o leitor que essa lei complementar seja aprovada, e que um juiz tenha trabalhado durante um ano e tenha adquirido direito às férias de 60 dias antes da aprovação da lei, mas ainda não tenha gozado desse período de férias. Nesse caso, ele manterá o direito de tirar os 60 dias nas próximas férias dele? Sim, pois ele tem direito adquirido a esse período de férias de 60 dias. As próximas, no entanto, só serão de 30 dias.

Ou seja,

Basicamente, a ideia é “se a pessoa fizer X, ela ganha Y”. Essas são as regras do jogo (o regime jurídico), que podem mudar, tanto para quem nem começou a cumprir as regras como para quem está cumprindo (esse é o caso da Reforma da Previdência, por exemplo). Mas quem já ganhou Y não pode ser prejudicado, isso é o direito adquirido. Tanto que, no caso da Previdência, quem já tinha cumprido os requisitos antes da reforma não foi prejudicado, mesmo que não tenha pedido aposentadoria.
Uma coisa é o regime jurídico, as regras do jogo; outra coisa é o direito que quem já cumpriu as regras do jogo adquire.
No caso dos militares antes de 2001, foi dada uma opção – ou contribuía com 1,5%, e aí adquiria o direito à pensão pras filhas; ou não contribuía, e ficava sem esse direito.
Ou seja, se as regras do jogo vigentes à época foram cumpridas pela pessoa, de modo a adquirir um direito, ela tem direito adquirido constitucionalmente protegido.

Considerações finais

Basicamente, o principal dessa história toda é o seguinte: o que era possível ser feito em relação a essa (imoral) pensão vitalícia das filhas de militares já foi feito. Juridicamente, não é possível fazer nada a respeito das pensões que são pagas atualmente (salvo se houver alguma fraude), nem àquelas que ainda serão concedidas, na forma explicada pelo texto. O direito adquirido é assegurado pela Constituição e não há nada que se possa fazer.
Existem casos de militares que ingressaram nas FFAA depois de 2001 e que tentaram conseguir o direito à pensão vitalícia, mas as ações foram negados; também existem casos de militares que optaram pela contribuição de 1,5%, mas acabaram não casando nem tendo filhos e que buscaram reaver esse valor de 1,5% ou cancelar, mas essas ações também foram negados.
Em conclusão, essa pensão vitalícia, que custa muito mais do que a contribuição destinada a bancá-la, é verdadeiramente imoral, sim, mas não é um bom argumento em discussões sobre reforma tributária ou sobre auxílio emergencial, uma vez que já foi extinta e que tudo que poderia ser feito para acabar com essa imoralidade já foi feito.

NOTAS

[1] Para o leitor não familiarizado, uma Medida Provisória, prevista no art. 62 da Constituição, é como se fosse uma Lei, tem força de lei, é editada pelo Presidente da República – na época, Fernando Henrique Cardoso – e só vale por 120 dias, a não ser que seja convertida em lei nesse prazo pelo Congresso.

[2] Na iniciativa privada, a contribuição é de uma alíquota de 7,5% até 14%, pelo empregado, e 20% que o empregador paga – como, no fim, é tudo descontado do salário, na prática, quem ganha 1 salário mínimo contribui com 27,5%).

[3] Para o leitor não familiarizado, lei complementar é basicamente é uma lei. Tem força de lei, tem a mesma hierarquia que uma lei. A única diferença é que é mais difícil aprovar uma lei complementar do que uma lei (enquanto uma lei precisa só de maioria simples – “metade mais 1”  – ou, melhor dizendo, o número inteiro subsequente à metade – dos presentes da sessão deliberativa -, a lei complementar precisa da maioria absoluta – “metade mais 1” de todos os parlamentares).

Em algumas questões, a Constituição estipulou que só poderiam ser tratadas por lei complementar, para dificultar a aprovação. Contudo, não existe critério técnico dizendo que para uma matéria precisa de lei, e para outra de lei complementar, vai do caso a caso. Por exemplo, no Governo Sarney, estipulou-se um empréstimo compulsório de 28% sobre a venda de combustíveis. Basicamente, toda vez que se abastecia o carro, emprestava-se dinheiro para o governo, que pagava de volta de uma forma complicada. Isso criou um grande celeuma, lembrando que o governo Sarney, de 1985 a 1990, foi logo antes da Constituição de 1988. Quando foram fazer a Constituição, para evitar (ou melhor, pra dificultar) que alguém impusesse empréstimos compulsórios de novo, estipularam que somente se pode criar empréstimo compulsório por meio de lei complementar.

FONTES

https://augustoleitaoadvocacia.jusbrasil.com.br/artigos/523914846/afinal-a-filha-do-militar-pode-se-casar-o-direito-para-todos

https://augustoleitaoadvocacia.jusbrasil.com.br/artigos/539212050/o-que-e-a-contribuicao-especifica-de-1-5-para-a-pensao-militar-o-direito-para-todos