Relações Sociais
Estamos vivendo um período inédito no país – com o perdão do eufemismo. Com o deflagrar da pandemia e a imposição da quarentena, as relações interpessoais foram forçadamente modificadas. Sendo o Direito reflexo direto da vida em sociedade, o impacto nas relações de emprego era, também, esperado.
Façamos uma breve digressão.
O cidadão precisa comer, e isso é óbvio. Precisa manter sua família, precisa seguir seus planos, precisa cuidar do seu futuro e de seus dependentes. No modelo de capital em que estamos inseridos, nada disso é possível sem o trabalho. Afinal, apenas por meio do trabalho conseguimos extrair contraprestação, de modo honesto. Ocorre que, não havendo demanda, não há produção. Não havendo produção, não há trabalho. Não havendo trabalho, há fome.
O ciclo é complexo e muitas são as organizações diferentes que podem ser extraídas do cenário acima. Todo o contrário pode ser, também, verdadeiro.
A dicotomia não é nova, mas a urgência é, ao menos neste século. Não houve ainda nos anos XXI a necessidade de se redefinir as demandas de trabalho de modo tão emergencial, as contraprestações, o ambiente favorável para todas as partes da relação de emprego: patrão, funcionário – e, insiro por minha conta, o consumidor final. Se uma dessas partes cai, toda a relação é desfeita. Então, como manter esta cadeia unida e unificada, durante o momento de maior incerteza social e insegurança jurídica já vivido?
O cenário: um vírus assola o mundo e as pessoas, assustadas (com razão), diminuem o consumo, freiam os planos, rescindem contratos. O estado de “força maior” blinda a maior parte das relações jurídicas. Quem é o mais afetado? O patrão? O empregado? A discussão se assemelha ao “ovo e a galinha”. Uma resposta origina muitas outras perguntas.
A solução econômica e à curto prazo encontrada: medidas provisórias que, por sua aplicação imediata, pretendem acolchoar e amenizar a queda, desregularizando leis, reformulando obrigações, desconstruindo e reconstruindo, de modo distinto, relações.
No final de março e início do mês de abril de 2020, a urgência ensejou diversas discussões que desaguaram na primeira Medida Provisória n. 927. Repleta de críticas, trouxe para as relações de trabalho, adstritas ao período de calamidade pública, possibilidades como o teletrabalho (sem que fosse necessária a alteração da natureza do contrato); férias coletivas sem necessidade de cumprimento de período aquisitivo, com aviso prévio mínimo de 48 horas; suspensão do pagamento de FGTS do trabalhador para, ao menos, até junho, com possibilidade de pagamento parcelado posteriormente; possibilidade de acordo individual para regulamentação de (quase) tudo, entre outras.
Em questão de poucas horas, uma das medidas doeu aos ouvidos: o art. 18 da MP previa, sem maiores explanações, a possibilidade de suspensão do contrato de trabalho por até 4 meses, sem contraprestação alguma, desde que o funcionário estivesse inscrito em curso ou programa de qualificação. O texto causou estranheza, dúvidas e burburinho suficiente, resultando por fim na suspensão de sua aplicação naquela mesma tarde do dia 22 de março de 2020, por ato deflagrado pelo Presidente da República em sua conta no Twitter.
As novidades são interessantes, não há como negar, e flexibilizam sobremaneira diversas medidas impositivas da nossa já antiquada CLT, que a cada dia fica mais esquecida lá em 1943. Mas seriam as medidas suficientes?
O adiantamento de férias é uma medida útil, porém serviu apenas como uma peneira para o forte sol que já se aproxima. As dúvidas não cessaram: como seria feito esse pagamento de todas as férias concedidas, mais o terço constitucional, se a empresa estivesse paralisada por falta de funcionários? Este é apenas um dos muitos buracos que continuaram expostos e carentes de resolução. E quem tem fome, tem urgência.
Grande foi a pressão sentida, em todos os ramos, até a publicação da MP 936, no dia 06 de abril de 2020. Com ela, várias outras possibilidades de flexibilização de relações que, sejamos francos, neste ponto, já se sustentavam a duras penas.
O ideal pretendido: de que nenhuma relação de trabalho fosse extinta, que os salários fossem mantidos integralmente, que a produção e o consumo se mantivessem intactos. Mas este é o Brasil, e o cenário ideal nunca foi nosso forte.
A solução encontrada foi a implementação do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e Renda, que trouxe consigo:
- Criação Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda;
- Suspensão do contrato de trabalho, pelo prazo máximo de 60 dias e, na ausência do salário, pagamento do valor do seguro desemprego pela União, com possibilidade de ajuda compensatória mensal por parte da empresa;
- Redução do salário proporcional à jornada, com complementação equivalente do valor do seguro desemprego; entre outras.
Registre-se: todas as medidas estariam limitadas ao período de calamidade pública, com aplicação imediata, dispondo de prazos em geral curtos para implementação aos funcionários – um exemplo, 48 horas para avisar ao funcionário de que seu contrato seria suspenso e 10 dias para informar a suspensão ao Ministério da Economia.
Chama atenção, neste ponto, a possibilidade de que, tanto a suspensão do contrato de trabalho, quanto a redução proporcional de salário e jornada, em alguns casos específicos, pudesse ser implementada por meio de acordo simples e individual, sem necessidade de anuência de sindicato. Enquanto sociedade, trouxe à superfície o já velho questionamento relativo à extensão da hipossuficiência do trabalhador, frente aos mais abastados (empresa).
Esquivando-me de adentrar em discussões de luta de classe, o que certamente não é o objeto deste artigo, é da minha opinião a importância de discutirmos a munição técnica de que cada parte fará uso chegada a hora deste tipo de conflito (acordo). Discutir este tipo de singularização é discutir, em seu fim, o Direito como um todo. E discutir o Direito e questionar decisões tomadas em hora como estas, de calamidade e urgência, é puramente discutir o que somos enquanto sociedade.
O STF tomou para si parte da discussão, à partir de proposta enviada pelo Partido Rede Sustentabilidade, sob a alegação de que tal disposição violaria direitos e garantias individuais aos trabalhadores. O desenvolvimento desta Ação Direta de Inconstitucionalidade instaurada deverá ser objeto de outro artigo – ou melhor, de muitos. Algo me faz crer que a discussão sobre a legalidade e constitucionalidade dos artigos da MP será extensa e, admito, não sei se chegará a consenso.
Acredito que o momento é de elaborarmos novas perguntas. De questionarmos o Direito e as soluções por ele encontradas como nunca antes. De abrirmos mão desta postura passiva que nos é característica, retomando o controle ativo do que queremos para nós, enquanto coletividade.
As respostas não virão fáceis, mas o tabuleiro foi embaralhado e o jogo começou novamente. As relações e as rotinas, ao que tudo indica, não serão mais as mesmas. Estamos em momento de mudanças substanciais, e essas mudanças são um portal de novas discussões.
Aberto o portal, cabe a nós, juristas, questionar o que queremos da missão que escolhemos ao optar por pensar o Direito. Questionar se estamos sendo efetivos em nosso compromisso em abarcar a sociedade como um todo – com foco especial nas discrepâncias das relações de trabalho. Elas estão, agora, expostas, em ferida aberta em rede nacional e mundial. É hora de nos preocuparmos com as soluções encontradas por aqueles que, ativamente, retomam o controle enquanto assistimos inertes a história se repetir.