Burocracia Cultural

Vamos, mais uma vez, dar uma pausa em nossas discussões sobre Direitos Culturais na Constituição para tratar de um assunto novo: o Decreto 10.404, de 17 de agosto de 2020, que regulamenta a Lei Aldir Blanc (14.017/20).

Bastante esperado por atores e gestores culturais, o decreto, finalmente, traça linhas procedimentais de repasse e até utilização das três formas de auxílio (renda mensal, subsídio mensal e editais e chamadas públicas). No entanto, a nosso ver, ele cria alguns entraves burocráticos que podem pôr em risco o caráter emergencial do auxílio. Aqui, indicamos alguns, à guisa de exemplo.

O primeiro grande entrave, a nosso ver, está no art. 4º, que esmiúça quem pode receber o auxílio de R$ 600,00. São os “profissionais da cultura”, com “atividades interrompidas” pela pandemia, aqueles que não têm “emprego formal ativo”. Mas… como saber quem são, exatamente, esses profissionais? O dispositivo em comento merece, portanto, ser lido à luz do art. 2º, da mesma lei, que, a partir do § 5º, obriga a uma “consulta prévia à base de dados” do Ministério do Turismo (que, hoje, alberga uma “secretaria” responsável pela cultura). Um problema de ordem prática: e quem não está nesse cadastro? O decreto dá como possibilidade a utilização de cadastros estaduais e municipais. Mais uma vez, o mundo real: e os municípios que não têm estrutura, sequer, para cadastrar seus artistas? Em tempo: os trabalhadores culturais precisam de comprovação de interrupção nos últimos dois anos anteriores à publicação da Lei Aldir Blanc. Mas, e se eles não conseguirem tal intento?

O mesmo problema se abre no art. 6º do decreto, no que tange a entidades culturais que devem figurar em, ao menos, um dos incisos da lei. Há, claro, outros cadastros que podem ser utilizados e homologados, mas, o que preocupa, mais uma vez, é a questão de tempo e a operacionalização desses cadastros, tendo em vista o despreparo de muitas administrações, quando não a precariedade, sobretudo, no que tange à cultura.

O diploma também deixa claro que o dinheiro não é uma mera concessão: o art. 7º, § 2º, é claro quanto a uma prestação de contas das referidas entidades. Há, também, prestação e responsabilização do agente público (art. 15 e § 9º art. 2º), com avaliação de “resultados” (art. 16), termo polissêmico e que muito nos soa como se fosse uma contrapartida privada. Aliás, contrapartidas existem, como a do § 4º (realização de atividades em escolas/locais públicos). Nada mais justo, aliás. Trata-se de dinheiro público, em todo caso, que deve ser utilizado sob a égide de princípios de moralidade, de probidade.

Um detalhe curioso é o art. 19, que faculta às instituições financeiras federais (BNDES, BB, CEF) a possibilidade de disponibilizar a pessoas físicas e microempresas culturais uma linha de crédito cujos delineamentos básicos se encontram no § 1º (prazo de até 36 meses; reajuste pela Selic; carência de 180 dias contados a partir do final reconhecido da calamidade pública, segundo DL 06/20). A rigor, não vemos problema nisso, pois a concessão de crédito criativo é uma realidade de, pelo menos, uns vinte anos, em nosso país. Achamos apenas interessante a colocação de um dispositivo como esse, aparentemente, tão distinto do espírito original da lei, o que faz com que a Aldir Blanc se torne um “mix” de transferência de renda com financiamento bancário (tal dispositivo regulamenta o art. 11 da 14.017/20).

Enfim: o regulamento está publicado. Numa luta contra o tempo, será necessário driblar os alguns entraves burocráticos da lei, além dos obstáculos dos gestores públicos, levando em consideração a realidade de cada ente. Uma forma de, finalmente, fazer valer o Sistema Nacional de Cultura? Um método eficaz de não deixar profissionais à míngua? A saber, efetivamente, ao fim desta pandemia.