O Direito e a Discussão de Posse X Propriedade Agrária

Não é difícil ver ações sendo julgadas improcedentes pelo fato de tanto o juiz, quanto a parte contrária suscitarem questões de propriedade em ações possessórias.

A questão é: Há essa possibilidade? É juridicamente possível discutir propriedade em ação possessória?

Se o pleito judicial é de natureza possessória, cumpre apenas indagar quem é possuidor, para a este outorgar-se a proteção possessória. Se o pleito comportasse outras indagações, para se questionar, por exemplo, quem tem o domínio da coisa litigiosa, ter-se-ia transformado o juízo possessório em petitório, suprimindo-se assim a específica proteção da posse. Por outro lado, fica “disfarçado” esta em verdadeira sucursal da propriedade.

À luz dos artigos 1.210, do Código Civil, em combinação com o artigo 926, do Código de Processo Civil, “o possuidor tem direito a ser mantido na posse, em caso de turbação, e reintegrado, na hipótese de esbulho”, assim, o possuidor que sofre embaraço na sua posse, pode servir-se da ação de manutenção, sendo que no caso em tela, foram preenchidos os requisitos do art. 927 do CPC, conforme abaixo relacionado:

“Art. 927 – Incumbe ao autor provar:

I – a sua posse;

II – a turbação ou o esbulho praticado pelo réu;

III – a data da turbação ou do esbulho;

IV – a continuação da posse, embora turbada, na ação de manutenção; a perda da posse, na ação de reintegração.”

Segundo a teoria subjetiva (Savigny), para a caracterização da posse são necessários dois elementos: o objetivo (corpus), isto é, a apreensão física direta da coisa, dentro da esfera de seu poder, e o elemento subjetivo (animus domini), ou seja, vontade de ter a coisa como sua. (GOMES, Orlando por FACHIN, Luis Edson. 2004, p. 496).

Para Ihering, autor da teoria objetiva, o corpus (elemento objetivo), citado por Savigny, é suficiente para comprovar a existência de posse, sendo desnecessário, para a comprovação da posse, o elemento subjetivo (animus). (IHERING, Rudolv Von traduzido por GAMA, Ricardo Rodrigues. 2009, p. 55/61).

No Brasil, fora adotada a teoria objetiva (de Ihering), estando a posse definida, no ordenamento jurídico positivo, como o exercício de algum dos poderes inerentes à propriedade (art. 1.196 do CC).

Para Caio Mário da Silva Pereira, a posse, em nosso direito positivo, não exige, portanto, a intenção de dono, e nem reclama o poder físico sobre a coisa. É a relação de fato entre a pessoa e a coisa, tendo em vista a utilização econômica desta. É a exteriorização da conduta de que procede como normalmente age o dono. É a visibilidade do domínio (PEREIRA, Caio Mário da Silva. 2012, p. 19).

Já a posse agrária, isto é, a posse exercida em áreas rurais, exige o exercício direto, contínuo, racional e pacífico de atividades agrárias desempenhadas em gleba ou terra rural capaz de dar condições suficientes e necessárias ao seu uso econômico, gerando ao possuidor um poder jurídico de natureza real definitiva com amplas repercussões no Direito, tendo em vista seu o seu progresso e bem-estar econômico e social. (MATTOS NETO, Antônio José de, A posse agrária e suas implicações jurídicas no Brasil. Belém, CEJUP 1988, p. 14).

No mesmo sentido, o renomado Jurista sustenta que: A posse agrária exige, assim, sujeito capaz (pessoa física ou jurídica), que efetivamente tenham condições de desenvolver a atividade agrária, que se manifesta em diversas formas, principalmente a de produção.

Por isso, a simples manutenção de uma ou algumas benfeitorias numa forma estática, ou de atos meramente conservatórios da coisa, não chegam a caracterizar a atividade agrária. Mais distante da caracterização da posse agrária fica a situação fática de manter a terra inerte, baseada apenas no domínio, numa espécie de intenção de possuir.

A posse agrária é sempre direta, pessoal e imediata, não admite posse indireta, como por exemplo, o arrendamento, comodato e parceria.

Ainda, tal posse proporciona a possibilidade de aquisição do imóvel rural (público ou particular), indenização por benfeitorias, retenção da coisa e defesa possessória, até inclusive contra o proprietário.

MATTOS NETO sustenta que: “a vinculação do possuidor à terra deve ser direta e pessoal, não se admitindo exploração indireta. O possuidor agrário deve, ele mesmo, explorar a terra e assumir os riscos da empresa agrária decidindo por si mesmo o destino e a organização de suas atividades agrárias produtivas, sem qualquer tutela estranha… (..) A exploração econômica da terra há de ser direta. O Direito Agrário condena o desfrute do imóvel rural como simples fonte de renda derivada do trabalho alheio. Há repulsa legal da exploração indireta nas suas mais variadas formas. A lei agrária prestigia o rurícola que diretamente, através de seus próprios esforços e riscos, organiza o empreendimento agrário, no intuito de produzir riquezas.”. (MATTOS NETO, Antônio José de, Estado de Direito Agroambiental Brasileiro. São Paulo, Saraiva, 2010, p. 47).

Assim, posse agrária diversamente da posse civil se baseia na função social da propriedade como diferencial.

Em decorrência disso, exige além do cumprimento da função social que a posse seja legítima e que haja detenção física do imóvel, cultura efetiva e morada habitual do seu possuidor e família, tudo nos termos do artigo 11, da Lei nº 4.504/1964 (Estatuto da Terra), ‘in verbis’:

Art. 11. O Instituto Brasileiro de Reforma Agrária fica investido de poderes de representação da União, para promover a discriminação das terras devolutas federais, restabelecida a instância administrativa disciplinada pelo Decreto-Lei n. 9.760, de 5 de setembro de 1946, e com autoridade para reconhecer as posses legítimas manifestadas através de cultura efetiva e morada habitual, bem como para incorporar ao patrimônio público as terras devolutas federais ilegalmente ocupadas e as que se encontrarem Desocupadas.

Percebe-se que o Estatuto da Terra (Lei n. 4.504/1964) não conceituou a posse agrária, mas também exigiu cultura efetiva e morada habitual, definindo ‘posseiro’ no seu art. 98:

“Todo aquele que, não sendo proprietário rural nem urbano, ocupar por 10 (dez) anos ininterruptos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, tornando-o produtivo por seu trabalho, e tendo nele sua morada, trecho de terra com área caracterizada como suficiente para, por seu cultivo direto pelo lavrador e sua família, garantir-lhes a subsistência, o progresso social e econômico, nas dimensões fixadas por esta Lei, para o módulo de propriedade, adquirir-lhe-á o domínio, mediante sentença declaratória devidamente transcrita.”.

Como se vê, a posse agrária se difere da posse civil pela inserção de novos elementos em sua composição conceitual. Enquanto no Direito Civil a posse exige apenas a ‘aparência de proprietário’, a Posse Agrária exige dos trabalhadores e, por força do princípio fundamental da função social da terra, a detenção física do imóvel, cultura efetiva e morada habitual do possuidor e de sua família.

Todavia a jurisprudência dominante entende, que sendo terra pública o agente não possui posse, somente detenção.

Por tais premissas, um caso no estado do Pará (Processo nº 0005392-79.2014.8.14.0028) conseguiu liminar para garantir o direito do Autor, no qual a terra em que possui fora objeto de esbulho pelo MST.

Frisa-se que o art. 557 do CPC expressa a seguinte redação:

“Art. 557. Na pendência de ação possessória é vedado, tanto ao autor quanto ao réu, propor ação de reconhecimento do domínio, exceto se a pretensão for deduzida em face de terceira pessoa.

Parágrafo único. Não obsta à manutenção ou à reintegração de posse a alegação de propriedade ou de outro direito sobre a coisa.”

Com isso, pode o Autor na ação suscitar a propriedade em ação possessória, contudo, sua discussão só será levada a diante após comprovada a melhor posse.

Corroborando, temos alguns julgados favoráveis:

APELAÇÃO CÍVEL. PROCESSO CIVIL. AÇÃO POSSESSÓRIA. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. PRESENÇA DOS REQUISITOS. COMPROVAÇÃO DA POSSE E DO ESBULHO. IMPOSSIBILIDADE DE DISCUSSÃO ACERCA DA PROPRIEDADE. APELO PROVIDO. I. De acordo com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, é inviável a discussão acerca da propriedade nas ações possessórias II. No caso dos autos, a apelante demonstrou que possui a posse do imóvel e que teve parte dele esbulhado pelos apelados. III. Presentes os requisitos exigidos pelo art. 927 do CPC, a reintegração da posse deve ser deferida IV. Apelação provida. (TJ-MA – APL: 0551272014 MA 0007425-56.2010.8.10.0040, Relator: MARIA DAS GRAÇAS DE CASTRO DUARTE MENDES, Data de Julgamento: 28/08/2015, QUINTA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 01/09/2015).

PROCESSO CIVIL. AÇÃO DE MANUTENÇÃO DE POSSE. PRELIMINAR DE NULIDADE DA SENTENÇA. AFASTADA. COMPROVAÇÃO DA POSSE E DA TURBAÇÃO – ART. 926 e 927 CPC. DISCUSSÃO DE PROPRIEDADE DO BEM. IMPOSSIBILIDADE. DECISÃO MANTIDA. RECURSO NÃO PROVIDO. I – “fundamentar significa o magistrado dar as razões, de fato e de direito, que o convenceram a decidir a questão daquela maneira.” II- O possuidor tem direito a ser mantido na posse, em caso de turbação,..(art. 926 do CPC e art. 1210 do CC) III- Demonstrado o exercício da posse, bem com a turbação, desnecessária a discussão a respeito do domínio em ação possessória. IV- Decisão mantida. Recurso Improvido. (TJ-BA – APL: 00049505420028050103 BA 0004950-54.2002.8.05.0103, Relator: Sara Silva de Brito, Data de Julgamento: 21/10/2013, Primeira Câmara Cível, Data de Publicação: 02/11/2013).

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. PEDIDO DE USUCAPIÃO FORMULADO NA CONTESTAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. RECONHECIMENTO DE DOMÍNIO EM AÇÃO POSSESSÓRIA. INVIABILIDADE. PRECEDENTES. 1. Esta Corte Superior já decidiu que, em sede de ação possessória é inviável a discussão a respeito da titularidade do imóvel sob pena de se confundir os institutos, ou seja, discutir a propriedade em ação possessória. Precedentes. 2. Na pendência do processo possessório é vedado tanto ao autor como ao réu intentar a ação de reconhecimento de domínio, nesta compreendida a ação de usucapião (art. 923 do CPC). 3. Agravo regimental não provido. (AgRg no REsp 1389622/SE, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 18/02/2014, DJe 24/02/2014).

WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO tece a respeito os seguintes comentários:

“Eis a razão por que o legislador sabiamente estabelece, na primeira parte do art. 505, deva ser excluída do processo possessório toda indagação de domínio, de todo impertinente. Em ações dessa índole não se discute, nem se decide sobre domínio, mas somente sobre o fato da posse. A regra, portanto, é a da inadmissibilidade da querella proprietatis nas ações possessórias” (“Curso de Direito Civil”, Direito das Coisas, 1990, pág. 59).”.

Apesar da divergência jurisprudencial nos estados, boa parte tem garantido o direito à quem tem a melhor posse, ainda mais que, em sua maioria, o Superior Tribunal de Justiça tem este entendimento, apesar de tal não ter sido unificado.

Na dúvida de seu direito, consulte um advogado de sua confiança.