O canto do galo. O odor de um estábulo. O barulho de um sino. Poderia tudo isso ser considerado, também, Patrimônio Cultural Imaterial (PCI)? Pois saiba que nem Marcel, um pobre galo morto a golpes de barra de ferro, no interior da França, nem seus donos, poderiam imaginar que sim: recentemente, o Parlamento Francês adotou como proposta de lei, por unanimidade, a noção do “patrimônio sensorial”, como proteção do patrimônio cultural do interior do país. A França, para quem não sabe, não é apenas moda, cultura e tecnologia: grande parte do território francês vive do agronegócio e do agroturismo e a cultura campestre é muito significativa para a identidade nacional. A medida não serviria apenas para ressarcir os donos de Marcel, mas também para preservar o que dele e de outros animais representam, em termos de simbólico, àquela cultura.

A Constituição Federal, em seu art. 216, vaticina que constituem “patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material ou imaterial”. Sobre os últimos, segundo o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), são as “práticas e domínios da vida social que se manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas; e nos lugares (como mercados, feiras e santuários que abrigam práticas culturais coletivas)”.

O Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial foi promulgado pelo Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000. O primeiro bem imaterial registrado no Brasil, no “Livro de Registro de Saberes”, foi capixaba: o “Ofício das Paneleiras de Goiabeiras”, em 20 de dezembro de 2002. O registro é uma prova de que esses bens são considerados um patrimônio cultural do Brasil, constituindo-se pelas práticas de uma comunidade, transmitida de geração em geração. A tradição da moqueca e da panela de barro é, incontestavelmente, um patrimônio não só capixaba mas também brasileiro.

Em 2009, o Iphan decretou como PCI o “toque dos sinos de Minas Gerais”. A iniciativa visava não apenas a salvaguardar uma tradição identitária para os mineiros (e, por que não, para os brasileiros?), tão encontradiça em cidades como Ouro Preto, Tiradentes, Mariana ou Diamantina, por exemplo, mas também a preservar os sinos das muitas igrejas que se encontravam destruídos ou desativados. O caso francês, no entanto, em nossa opinião, vai mais além: ao tentar-se preservar o canto do galo, o odor dos estábulos ou tudo aquilo que evoca uma cultura campestre, a França dá um passo ainda maior, ao nosso ver, em direção a um simbólico sem precedentes, evocando aspectos sinestésicos, sensações experimentadas exclusivamente pelo próprio ser.

Os exemplos mineiro e francês possuem, porém, um elemento comum: o de que o patrimônio imaterial também é apreendido pelos sentidos. Mais do que tentar “imortalizar” uma prática (ou “congelá-la” no tempo e no espaço), decretar algo como um “patrimônio sensorial” é convidar o indivíduo a fazer parte dele e preservá-lo de uma maneira ativa. E então, leitor? O que poderia ser um “patrimônio sensorial capixaba”? O delicioso cheiro da moqueca? O odor dos cafezais? O apito do trem, chegando de Minas? O que, para você, evoca uma tradição?