INTRODUÇÃO

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018), publicada em 2018, entraria em vigor no corrente ano. Esse tempo de vacatio legis seria o período necessário para que as empresas se adequassem às determinações estabelecidas pela referida lei. Contudo, em decorrência do estado de calamidade pública provocado pelo COVID-19, a MP 959/2020 alterou a redação desse dispositivo para determinar a sua entrada em vigor no dia 03 de maio de 2021.

Em mais uma modificação legislativa, na última terça-feira (19/05/2020), o Senado aprovou1 o Projeto de Lei (PL) nº 1.179/20202, que altera relações jurídicas privadas ocorridas durante a pandemia e, em destaque, a regra que antecipa para agosto de 2020 a vigência da LGPD. Portanto, precisa-se atentar para as inferências da entrada em vigor da LGPD nas relações de trabalho.

 

OS OBJETIVOS DA LGPD E O MODELO EUROPEU

O legislador brasileiro, ao elaborar a LGPD, inspirou-se no modelo europeu do General Data Protection RegulationGDPR3 (em vigor desde 2018), pautando-se no respeito à privacidade, à intimidade, à dignidade, à liberdade, à honra, à imagem e à liberdade de expressão, conforme se observa nos artigos 1º e 2º de referido diploma legal.

Também visou o legislador fomentar a economia do país, tendo em vista que as nações que não dispõem de lei protetiva de dados, de certa forma, acabam por se isolar, de modo a perder a oportunidade de firmar novos negócios.

Importante esclarecer, de igual modo, que a LGPD trata de dados pessoais sensíveis, indicados no inciso II do artigo 5º, quais sejam, origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural. E isso, no que tange ao direito do trabalho, tem especial significado, já que é do empregador a responsabilidade pelo armazenamento de dados do empregado ou candidato à vaga de emprego.

 

A LGPD E SUAS IMPLICAÇÕES NO DIREITO DO TRABALHO (FASES PRÉ E PÓS-CONTRATUAIS)

Apesar de a LGPD não ter sido pensada para ser aplicada às relações de trabalho, objetivou proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural. Dessa forma, ainda que não configure o objetivo principal da LGPD regulamentar questões trabalhistas, suas diretrizes têm significativa interferência no âmbito laboral.

Assim, por meio de interpretação sistemática entre o caput do art. 5º da Constituição da República de 1988, o art. 8º da Consolidação das Leis Trabalhistas e os arts. 3º e 4º da LGPD, conclui-se que não há óbice para a aplicação desta na seara trabalhista, pois o empregado efetivo ou em potencial é sujeito vulnerável frente ao empregador no que tange ao armazenamento de dados e retenção de documentos pessoais4.

Quanto à fase pré-contratual, quando o empregador dá início ao processo seletivo, acaba por armazenar dados dos candidatos inseridos no currículo ou no cadastro realizado na plataforma de emprego online. Em muitos casos, também são enviadas fotos e armazenados documentos específicos em decorrência das peculiaridades das atividades a serem desenvolvidas, a exemplo da certidão de antecedentes criminais para vaga de emprego em empresa de telemarketing5.

Nesse ponto, o Tribunal Superior do Trabalho entendeu que, a princípio, a certidão de antecedentes criminais não pode ser exigida pelo empregador como condição para a contratação, a menos que haja previsão em lei que recomende ou autorize o requerimento dessa certidão, ou em decorrência da natureza do ofício ou do grau especial de fidúcia exigido no emprego6.

Porém, como há o risco de referidos documentos serem utilizados para finalidade diversa, não relacionada ao processo de contratação (como a venda de cadastro a terceiros), mostra-se interessante que o empregador gerencie os riscos desse procedimento, como a exigência de assinatura de termo pelo candidato a vaga de emprego com o consentimento deste com o armazenamento de dados pessoais para que, na hipótese de não haver contratação imediata, possa ser convocado para novo processo seletivo7. Além disso, é importante especificar, na declaração assinada pelo candidato, quanto à finalidade da guarda e arquivamento das informações, quanto ao descarte e eliminação desses dados, bem como o lapso temporal do período de armazenamento dessas informações, em respeito ao inciso V do art. 7º da LGPD.

Já na fase pós-contratual, quando o contrato de trabalho já está em vigor, com muito mais razão deve o empregador se atentar para as determinações da LGPD. Afinal, há documentos que, por determinação legal, devem ser entregues ao empregador e que, portanto, não prescindem do consentimento do empegado para que sejam armazenados.

Uma das hipóteses de dispensa do consentimento do empregado se denota o cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador dos dados (inciso II do art. 7º da LGPD), pois, nesse caso, deve-se observar o atendimento do interesse público (a exemplo da transmissão de dados a entidades públicas, para informações relativas à folha de pagamento, para transmitir para a Caixa Econômica Federal algum tipo de informação para uma finalidade específica, etc.).

Também prescinde o consentimento quanto à necessidade de execução de contrato ou de procedimentos preliminares relacionados ao contrato (inciso V do art. 7º da LGPD), haja vista ser o titular dos dados parte no negócio jurídico firmado com o empregador.

Outra possibilidade de dispensa de consentimento se refere ao exercício regular de direitos em processo judicial, administrativo ou arbitral (inciso VI do art. 7º da LGPD). Nesse ponto, Giordano Adjuto Teixeira8 destaca que o dispositivo “evidencia que a proteção da lei não compromete o necessário direito que as partes possuem quanto à produção de provas”, mesmo que tais provas se refiram a dados pessoais. E conclui que em uma reclamação trabalhista “a empresa demandada não precisa, por óbvio, de autorização do empregado autor para utilizar seus dados pessoais como meio de prova”.

A título de exemplo, caso o empregado ajuíze reclamação trabalhista contra seu empregador sob a alegação de doença ocupacional, pode o empregador utilizar, como meios de prova, os exames admissional, periódicos e demissional, bem como os atestados médicos entregues pelo empregado na vigência do contrato, sem que isso implique na necessidade de consentimento do empregado.

Por fim, também prescinde o consentimento quando o dado pessoal é necessário para atender aos interesses legítimos do controlador ou de terceiro (inciso IX do art. 7º da LGPD). Trata-se da mais controversa disposição da lei, uma vez que não há previsão do que vem a ser “legítimo interesse”, o que permite interpretações subjetivas, como bem observa Giordano Adjuto Teixeira9.

Em todo caso, ressalta-se que a LGPD prevê o término do tratamento dos dados pessoais em quatro hipóteses, quais sejam: (I) verificação de que a finalidade foi alcançada ou de que os dados deixaram de ser necessários ou pertinentes ao alcance da finalidade específica almejada; (II) fim do período de tratamento; (III) comunicação do titular, inclusive no exercício de seu direito de revogação do consentimento conforme disposto no § 5º do art. 8º da LGPD, resguardado o interesse público; ou (IV) determinação da autoridade nacional, quando houver violação ao disposto na LGPD.

 

A RESPONSABILIDADE DO EMPREGADOR E A LGPD

Com base na redação do art. 42 da LGPD, nota-se que a responsabilidade do empregador é objetiva caso incorra em violação de dados pessoais, de modo a causar a outrem dano patrimonial, moral, individual ou coletivo. O inciso “I” desse mesmo dispositivo também prevê a responsabilidade solidária entre o controlador e o operador dos dados pessoais.

Nessa esteira, o empregador será qualificado como controlador dos dados, pois foi ele quem os coletou, quem tem o uso e quem faz o armazenamento desses dados. Já o operador representa a pessoa física ou jurídica que manipula e operacionaliza esses dados no contexto das práticas e das rotinas necessárias ao funcionamento da empresa.

Empregados que realizam a manipulação dos dados (a exemplo das empresas de processamento de dados, de contabilidade, folha de pagamento) também serão responsabilizados pelo mau uso desses dados. Nesse caso, mostra-se de suma importância que o empregador estabeleça contrato aditivo ao contrato de trabalho ou adicione cláusula aos contratos que ainda serão firmados no sentido de seguir as diretrizes impostas pela LGPD.

Isso facilita, inclusive, que o empregador garanta direito de regresso contra o empregado que descumprir as determinações contratuais e legais, haja vista que, pelo art. 52 da LGPD, o empregador está sujeito a sanções administrativas em razão das infrações cometidas às normas previstas na LGPD.

 

CONCLUSÃO

Como se nota, a LGPD trouxe importantes diretrizes no que tange ao tratamento, acesso, coleta, armazenamento, descarte, fornecimento, transmissão e uso de dados pessoais, objetivando proteger os direitos fundamentais da liberdade, privacidade, honra, imagem, liberdade de expressão, dentre outros direitos sensíveis especificados no texto legal.

Nesse sentido, tendo em vista que a LGPD está prevista para entrar em vigor no segundo semestre desse ano, mostra-se imprescindível sua observância nas relações de trabalho (inclusive em período pré-contratual, quando ainda não se formou relação jurídica trabalhista). Afinal, a responsabilidade civil do empregador se inicia potencialmente nas fases preliminares de contratação, devendo o tratamento de dados se guiar pela boa-fé e observar a finalidade para o qual se destina.

Dessa forma, mostra-se imprescindível que o empregador (detentor dos dados) se paute na segurança, prevenção e não discriminação do empregado, quando em posse dos dados deste, de forma que institua boas práticas de governança, especialmente nos processos internos da empresa, haja vista que passa a ser detentor de informações importantes e significativas no que tange a aspectos da dignidade da pessoa humana do empregado.

 

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  1. <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/05/19/projeto-que-cria-regime-juridico-especial-durante-pandemia-vai-a-sancao>. Acesso em 21/05/2020.
  2. <https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8081779&ts=1590086620117&disposition=inline>. Acesso em 21/05/2020.
  3. General Data Protection Regulation – GDPR – <https://gdpr.eu/tag/gdpr/>. Acesso em 21/05/2020.
  4. PINHEIRO, Iuri; SILVA, Fabrício Lima. Manual do compliance trabalhista: teoria e prática. Salvador: Editora Jus Podivm, 2020.
  5. Idem.
  6. TST, IRR no. 243000-58.2013.5.13.0023, Rel. Min. Maria Cristina Irigoyen Pedruzzi, DEJT: 22/09/2017
  7. PINHEIRO, Iuri; SILVA, Fabrício Lima. Manual do compliance trabalhista: teoria e prática. Salvador: Editora Jus Podivm, 2020.
  8. TEIXEIRA, Giordano Adjuto. TRATAMENTO DE DADOS PESSOAIS NA ESFERA TRABALHISTA. < https://dicastrabalhistas.com.br/2020/01/15/tratamento-de-dados-pessoais-na-esfera-trabalhista/>. Acesso em 21/05/2020.
  9. Idem.