Introdução
No dia 18/08/2020, o STF entendeu pela constitucionalidade da cobrança dos 10% na multa de FGTS, em caso de demissão sem justa causa pelo empregador.
Referido percentual foi instituído pela LC º 110/2001, a qual dispõe, em seu artigo 1º e §2º do artigo 2º, o seguinte:
Art. 1º Fica instituída contribuição social devida pelos empregadores em caso de despedida de empregado sem justa causa, à alíquota de dez por cento sobre o montante de todos os depósitos devidos, referentes ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, durante a vigência do contrato de trabalho, acrescido das remunerações aplicáveis às contas vinculadas.
Art. 2º Fica instituída contribuição social devida pelos empregadores, à alíquota de cinco décimos por cento sobre a remuneração devida, no mês anterior, a cada trabalhador, incluídas as parcelas de que trata o art. 15 da Lei no 8.036, de 11 de maio de 1990.
(…)
§2º A contribuição será devida pelo prazo de sessenta meses, a contar de sua exigibilidade.
Nesse sentido, deve o empregador recolher o percentual de 8% (oito por cento) sobre a remuneração devida em virtude do pagamento mensal de verbas remuneratórias e, em razão de eventuais despedidas sem justa causa, o percentual de 50% (cinquenta por cento) sobre a totalidade dos depósitos referentes ao FGTS, ocorridos durante a vigência do contrato de trabalho do empregado dispensado.
Referido percentual de 50%, por sua vez, divide-se em duas parcelas, quais sejam: (a) a indenizatória, cuja base legal é o §1º do artigo 18, da Lei nº 8.036 de 1990, correspondente a 40% (quarenta por cento) de todos os depósitos devidos referentes ao FGTS efetuados durante a vigência do contrato de trabalho, acrescido das remunerações aplicáveis às contas vinculadas (b) e a tributária, cuja base legal é o artigo 1º da LC 110 supracitada, correspondente a 10% (dez por cento) incidentes sobre todos os depósitos feitos em prol do empregado, referentes ao FGTS, efetuados durante a vigência do contrato de trabalho, acrescidos das remunerações aplicáveis às contas vinculadas, destinada a um determinado fim.
Contudo, dita contribuição, sob a chancela do STF, continuará a ser cobrada indevidamente, pois destinada a fins diversos para os quais foi criada.
Do desvio de finalidade da LC110/2001
Referida LC foi implementada com o objetivo de repor as perdas sofridas pelos depósitos do FGTS, em decorrência dos planos econômicos “Plano Verão” e “Plano Collor I”, como se observa no Projeto de Lei Complementar nº 195/2001, que deu origem à sobredita LC, cujas justificativas expressam o seguinte:
Ementa
Institui contribuições sociais, autoriza créditos em contas vinculadas do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS de complementos de atualização monetária decorrentes de decisão do Supremo Tribunal Federal, e dá outras providências.
Explicação da Ementa
ESTABELECENDO QUE A REPOSIÇÃO DAS DIFERENÇAS RELATIVAS AO PLANO COLLOR I E PLANO VERÃO NÃO SUPERIORES A R$ 1.000,00 SERÃO PAGAS ATÉ JUNHO DE 2002. OS DEMAIS TITULARES, QUE TÊM VALORES ACIMA DESSE MONTANTE, TERÃO O COMPLEMENTO CREDITADO EM SUAS CONTAS ENTRE JULHO DE 2002 E JUNHO DE 2006, FINALIZANDO O PAGAMENTO EM CINCO ANOS, CONTADOS A PARTIR DE JULHO DE 2001. CRIANDO UM DESÁGIO PROGRESSIVO DE 10% A 15% SOBRE AS CONTAS DO FGTS COM VALORES ACIMA DE R$ 1.000,00.1
Como se nota, a instituição da verba indenizatória se deu com o intuito de garantir ao empregado demitido sem justa causa uma reparação pela perda do emprego e, por outro lado, a verba tributária foi criada com a finalidade particular e exclusiva de custear o ressarcimento dos depósitos dos trabalhadores na conta vinculada do FGTS, no período em que ocorreram os expurgos dos aludidos planos econômicos.
De acordo com o §2º do art. 2º da LC em comento, a exigibilidade da contribuição social em questão se findou no ano de 2012. Em idêntico sentido, a Caixa Econômica Federal, curadora do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, confirmou tal fato pela referência feita ao Ofício nº 038 de 2012, na Ata da 128ª. Reunião Ordinária do Conselho Curador do FGTS, realizada em 15 de maio de 2012, reconhecendo que a contribuição que visava recompor o Fundo foi devidamente superada.
Cumpre lembrar que o STF, em decisão anterior sobre referido tema (ADIN 2.556), entendeu tratar a cobrança dos 10% de contribuição social geral, criada com fundamento no artigo 149 da Constituição Federal, com finalidade específica de custear o pagamento das diferenças monetárias decorrentes da aplicação dos expurgos inflacionários advindos dos Planos Verão e Collor I.
Além disso, o caput do artigo 4º e o artigo 12, da Lei Complementar nº 110 de 2001, deixam patente que a contribuição de 10% adicional ao FGTS foi criada com a finalidade particular e exclusiva de custear o ressarcimento aos trabalhadores que possuíssem conta vinculada do FGTS no período em que ocorreram os expurgos – in verbis:
Art. 4º. Fica a Caixa Econômica Federal autorizada a creditar nas contas vinculadas do FGTS, a expensas do próprio Fundo, o complemento de atualização monetária resultante da aplicação, cumulativa, dos percentuais de dezesseis inteiros e sessenta e quatro centésimos por cento e de quarenta e quatro inteiros e oito décimos por cento, sobre os saldos das contas mantidas, respectivamente, no período de 1º de dezembro de 1988 a 28 de fevereiro de 1989 e durante o mês de abril de 1990, desde que: (…).
Art. 12. O Tesouro Nacional fica subsidiariamente obrigado à liquidação dos valores a que se refere o artigo 4º, nos prazos e nas condições estabelecidos nos arts. 5º e 6º, até o montante da diferença porventura ocorrida entre o valor arrecadado pelas contribuições sociais de que tratam os arts. 1º e 2º e aquele necessário ao resgate dos compromissos assumidos.
Dessa forma, resultou esgotada a finalidade da aludida contribuição social ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, de modo que a permanência de referida cobrança configura nítido desvio de finalidade para a qual a LC 110 foi criada.
O próprio Chefe do Poder Executivo federal (à época, a presidente Dilma Rousseff), ao vetar o Projeto de Lei Complementar n. 200/2012, em 2013 – que estabelecia prazo para a extinção da contribuição social aqui ventilada –, assumiu a existência de pretextos diversos e completamente alheios aos motivos que embasaram a criação da LC 110/2001. Como se observa nas razões do veto, contidas na Mensagem Nº 301, de 23 de julho de 2013:
A extinção da cobrança da contribuição social geraria um impacto superior a R$ 3.000.000.000,00 (três bilhões de reais) por ano nas contas do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, contudo a proposta não está acompanhada das estimativas de impacto orçamentário financeiro e da indicação das devidas medidas compensatórias, em contrariedade à Lei de Responsabilidade Fiscal. A sanção do texto levaria à redução de investimentos em importantes programas sociais e em ações estratégicas de infraestrutura, notadamente naquelas realizadas por meio do Fundo de Investimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FI-FGTS. Particularmente, a medida impactaria fortemente o desenvolvimento do Programa Minha Casa, Minha Vida, cujos beneficiários são majoritariamente os próprios correntistas do FGTS.2 (grifou-se)
Portanto, o passivo do FGTS foi quitado em junho de 2012, confessando o Poder Executivo federal que a referida contribuição está, desde então, a ser destinada para fins diversos para os quais foi criada, o que vai de encontro ao princípio da legalidade e, claramente, atinge normas constitucionais, além de normas que regulam o Sistema Tributário Nacional.
Ora, a aplicação dos 10% em programas sociais não serve de argumento para a permanência de sua cobrança, tendo em vista que citados programas já possuem sua fonte de custeio. Nessa esteira, mostra-se clássico o entendimento do E. Supremo Tribunal Federal no seguinte sentido:
Argumentos de necessidade, por mais respeitáveis que possam ser, não devem prevalecer, jamais, sobre o império da Constituição. Razões de Estado, por sua vez, não podem ser invocadas para legitimar o desrespeito e a afronta a princípios e a valores essenciais que informam o nosso sistema de direito constitucional positivo. (RE nº 150.764, Rel. Min Sepúlveda Pertence, 16.12.92).
Assim, não restam dúvidas de que a permanência da cobrança dos sobreditos 10% representa nítido desvio de finalidade, apesar de o STF ter decidido, no último dia 18, de modo contrário ao próprio entendimento – conforme se observa na citação supra.
A multa de 10% como contribuição social
Conforme prevê a própria LC 110 em comento, a multa de 10% sobre o FGTS configura contribuição social e, considerando que a contribuição em questão constitui modalidade de tributo, para ser válida, deve (i) ser legalmente destinada à finalidade prevista na Constituição Federal; (ii) ter finalidade específica para a qual se destine; e (iii) ter o produto da arrecadação destinado efetiva e exclusivamente à finalidade específica prevista legalmente.
Nessa esteira, conforme bem explanam Leandro Paulsen e Andrei Pitten Velloso3, instituiu-se um tributo voltado a gerar recursos para o pagamento de dívida do Governo, o que não se enquadra em nenhuma das finalidades previstas no art. 149 da CF (não é social, interventiva, nem do interesse de categorias). Sua caracterização como contribuição social geral só se daria caso instituída para financiar a atuação da União em áreas como a saúde, o desporto, o meio ambiente, a cultura, enfim, algum dos objetivos estampados no título Da Ordem Social na Constituição Federal.
Ademais, ainda conforme mencionados autores, o percentual em comento jamais poderia ser cobrado apenas dos empregadores, afinal, já tendo eles efetuado o depósito que lhe era exigível a título de FGTS devido em razão da relação de emprego, não há por que suportarem, apenas eles, os custos das condenações judiciais sofridas pela CEF e pela União relacionadas à administração do fundo e das contas vinculadas.
Como já afirmado, a finalidade para a qual foi instituída a contribuição em tela era temporária e já foi atendida e, como as contribuições têm como característica peculiar a vinculação a uma finalidade constitucionalmente prevista, atendidos os objetivos fixados pela norma, nada há que justifique a cobrança dessas contribuições. Por isso, não se pode continuar exigindo do empregador a contribuição instituída pela Lei Complementar nº 1103.
Por fim, Leandro Paulsen e Andrei Pitten Velloso3 destacam a impossibilidade de se admitir que o Executivo atribua aos recursos arrecadados outro destino que não aquele estabelecido pela LC 110. Aliás, não é dado sequer ao legislador complementar alterar a destinação da contribuição de 10% devida na despedida sem justa causa, a menos que a nova destinação venha a guardar adequação às finalidades constitucionalmente autorizadoras da instituição de contribuições e observe a referibilidade que lhe caracteriza como espécie tributária autônoma. Note-se que a alteração da finalidade equivale à instituição de nova contribuição, exigindo observância de todo o regime jurídico constitucional das contribuições, incluindo a necessidade de observância das garantias de anterioridade.
Conclusão
Com efeito, a decisão do STF que assentou a constitucionalidade da cobrança, aos empregadores, do percentual de 10% sobre o valor dos depósitos e acréscimos das contas do FGTS, não se mostra a mais adequada, haja vista que a contribuição social em destaque deixou de ser válida pela perda de seu objeto, de modo que a permanência de supracitada cobrança submete o empregador à notória injustiça (ratificada pela Suprema Corte).
Referências
- http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=27191
- <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/ _Ato2011-2014/2013/Msg/Vet/VET-301.htm>
- PAULSEN, LEANDRO; PITTEN VELLOSO, ANDREI. Contribuições: Teoria Geral. Contribuições em Espécie. 3.ed. Porto Alegre:Livraria do Advogado, 2015, pp. 113-116.