Garantia ou Instrumento?

Sem maiores pretensões, limitando-se apenas à demonstração que o instituto do Processo é analisado por dois pontos de vistas completamente distintos, quiçá incompatíveis, pela doutrina nacional, é que esse ensaio se justifica. Mas como esse autor tende a interpretar o direito de forma ideológica, assim como qualquer outro intérprete (seja consciente ou inconscientemente), por razões de honestidade intelectual, ao longo do texto será explicitada sua preferência.

De um lado, há a doutrina instrumentalista, segundo a qual o processo é instrumento do Poder, seja ele administrativo (Poder Executivo), jurislativo (Poder Legislativo) ou jurisdicional (Poder Judiciário). Desse ponto de vista, o instrumento processual é meio pelo qual se busca perfazer a harmonia dos conflitos.

Em sede jurisdicional, de forma mais latente, em virtude da função preponderante da jurisdição, verifica-se que o Poder Judiciário, por meio de seus órgãos (Juizeis ou Tribunais), utiliza-se do processo para que seja feita justiça. Nesse particular, há de se fazer uma ponderação importante, pois embora a expressão “fazer justiça” seja muito utilizada pelos instrumentalistas, não há com ela uma teoria clara e objetiva acerca do que venha ser a própria justiça (seu significado), de modo que a expressão queda-se tão vazia quanto um saco de guloseimas ao fim da refeição.

Abaixo, para fins de melhor análise sobre a corrente de pensamento instrumentalista, veja-se dois trechos de renomados doutrinadores brasileiros:

  • “Mas não é apenas a argumentação (em detrimento da dialética) que destaca e define o processo. A natureza argumentativa é elemento que define o método estatal. Outra nota essencial para definir o fenômeno “processo” é o seu escopo de realização do direito material e o modo de satisfação desse direito, incluindo a pretensão de correção na prestação jurisdicional. Incluir na natureza jurídica do processo o seu escopo de compor a lide, permite revelar sua verdadeira função: a de simples instrumento de solução dos conflitos de interesses. Permite, ainda, justificar o afastamento de regra processual quando a mesma não for necessária ou adequada para a realização dos escopos da jurisdição. Em outras palavras, permite compreendermos o processo na sua concepção instrumentalista plena. O perigo de não incluirmos o escopo de realização do direito material na definição da natureza jurídica do processo é o de transformar o processo em um fim em si mesmo, já que não buscaria outra coisa a não ser o método pelo qual se desenvolve. Portanto, a definição de processo deve também destacar a sua característica finalística de mero instrumento na realização da justiça. Processo é, assim, um método de natureza argumentativa, com o escopo de realização do direito material, de restabelecimento da ordem jurídica justa.” (BRASIL, Samuel Meira. PROCESSO COMO MÉTODO ARGUMENTATIVO ESTATAL DE SOLUÇÃO JUSTA DAS CONTROVÉRSIAS. In: Processo Civil Contemporâneo. Homenagem aos 80 anos do professor Humberto Theodoro Júnior. Orgs. Paulo Henrique dos Santos Lucon, Juliana Cordeiro de Faria, Edgard Audomar Marx Neto, Ester Camila Gomes Norato Rezende. Rio de Janeiro: Forense, 2018, versão eletrônica, posição 248.)

 

  • “O direito ao processo justo é um direito de natureza processual. Esse impõe deveres organizacionais ao Estado na sua função legislativa, judiciária e executiva. É por essa razão que se enquadra dentro da categoria dos direitos à organização e ao procedimento. Nesse contexto, é um equívoco imaginar o direito ao processo justo como uma simples garantia. Na verdade, trata-se mais propriamente de um direito fundamental. A legislação infraconstitucional constitui um meio de densificação do direito ao processo justo pelo legislador. É a forma pela qual esse cumpre com o seu dever de organizar um processo idôneo à tutela dos direitos. As leis processuais não são nada mais nada menos do que concretizações do direito ao processo justo. O mesmo se passa com a atuação do Executivo e do Judiciário. A atuação da administração judiciária tem de ser compreendida como uma forma de concretização do direito ao processo justo. O juiz tem o dever de interpretar e aplicar a legislação processual em conformidade com o direito fundamental ao processo justo. Portanto, passa-se a pensar o processo civil não mais do ponto de vista das garantias constitucionais – mote da primeira constitucionalização do processo civil, cujo ponto de chegada está justamente na Constituição de 1988. Começa-se a trabalhar com o processo na perspectiva dos direitos fundamentais, procurando estruturá-lo a partir da eficácia dos direitos fundamentais – mote da segunda constitucionalização do processo civil, cujo ponto de partida está justamente na Constituição de 1988.” (MITIDIERO, Daniel. A JUSTIÇA CIVIL NO BRASIL ENTRE A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E O CÓDIGO REFORMADO. In: Processo Civil Contemporâneo. Homenagem aos 80 anos do professor Humberto Theodoro Júnior. Orgs. Paulo Henrique dos Santos Lucon, Juliana Cordeiro de Faria, Edgard Audomar Marx Neto, Ester Camila Gomes Norato Rezende. Rio de Janeiro: Forense, 2018, versão eletrônica, posição 49.)

Sem saber o que é Justiça, pela inexistência de uma Teoria da Justiça desenvolvida por aqueles que a defendem, o justo pode ser dado a depender daquele que julga, manipulando-se, portanto, o seu pretenso ideal. Não é por acaso, então, que se verifica no âmbito da pragmática centenas de interpretações distintas e, ao cabo, de decisões divergentes sobre uma mesma matéria, embora cada uma invoque como pano de fundo o mesmo fundamento da justiça.

Como se explica, então, decisões antagônicas que se fundamentam no mesmo argumento de “fazer justiça”? E, pior, ao final, levando-se o processo à uma exegese mais apurada, a decisão “justa” será tão somente aquela não suscetível mais a recursos, independentemente do seu conteúdo. E se isso for verdade, as decisões inferiores exaradas ao longo do processo, as quais contrastam com a decisão superior agora irrecorrível, precisam ser caracterizadas como injustas. Pelo método dedutivo, portanto, pode-se concluir que as decisões dos juízes de patamares hierárquicos inferiores serão sempre injustas à luz daquelas decisões dos Tribunais que as substituem.

Nota-se que, assim, o critério de justiça torna-se apenas hierárquico, independentemente do real conteúdo decisório dos atos judiciais. Por um lado, os Magistrados pela ótica dos instrumentalistas precisam ser cada vez mais empoderados (leia-se com maiores poderes no curso do processo) e até mesmo iluministas, segundo lições acadêmicas do Ministro do STF – Luis Barroso, mas em contrapartida não fazem jus a tal fortalecimento de suas condutas, pois ao final suas decisões tornam-se injustas pela simples modificação eventual e posterior dos Tribunais. Seria razoável aumentar os poderes daqueles que julgam injustamente?

Parece-me que o instrumentalismo não possui alicerces fortes para manutenção e edificação da teoria instrumentalista, muito porque depende tão somente da noção abstrata de justiça daqueles que julgam, tomando-se lições frouxas e de razões individuais, conforme disseminado por Kant, que pode ser contraditória como visto alhures.

Noutra ponta da doutrina, encontram-se aqueles denominados garantistas, os quais enxergam o processo não como instrumento da jurisdição, mas sim como garantia individual, com sólida fundamentação no artigo 5º, LIV, da Constituição Federal (“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal). O próprio topus, ou seja, lugar de positivação da garantia já seria suficiente para caracterizá-la como tutela contra o poder (contra-jurisdicional, contra-administrativa e/ou contra-legislativa), já que inserida no rol dos direitos e garantia individuais, cuja proteção é endereçada para os jurisdicionados, e não como instrumentação de (ou para) qualquer dos Poderes. (Essas lições foram extraídas pela leitura frequente e constante da coluna Garantismo Processual do endereço eletrônico Empório do Direito. São inúmeros textos que destacam as ideais aqui desenvolvidas, em especial dos autores: Eduardo José da Fonseca Costa, Diego Crevelin de Sousa, Antônio Carvalho Filho, Glauco Gumerato Ramos, Igor Raatz, Natascha Anchieta, Lúcio Delfino, Mateus da Costa Pereira, Júlio César Rossi, Luciana Benassi, William Galle Dietrich, entre inúmeros outros. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/colunas/garantismo-processual. Acesso em 03/07/2020.)

Indo além da localização dispositiva do instituto processual e dissecando-o interpretativamente, percebe-se que o processo (garantia contra o Poder) é devido, uma vez que obrigatório e não facultativo para que se possa chegar a concretização dos poderes do Estado e limitação dos direitos subjetivos dos litigantes, bem como é legal, não no sentido de ser “bom”, “maneiro”, “divertido”, mas sim por necessariamente ser proveniente de lei e/ou por vontade das partes (negócio jurídico processual – art. 190, CPC). E, ao ser oriundo de norma legal, criada e instituída democraticamente pelos representantes do povo, ou então das próprias partes diretamente interessadas, não pode ser instrumento de concretização de determinismos e decisionismos dos agentes de Poder, aqui mais evidenciados pelos magistrados, salvo se as próprias fontes (lei e/ou partes) assim autorizar (ex, art. 139, VI, do CPC).

Não se quer falar, de forma nenhuma, que o processo é das partes, como forma de pertencimento ou então de caracterização privatística, como tentou rotular Barbosa Moreira em artigo intitulado “El neoprivatismo em el processo civil” do livro Processo Civil e Ideologia coordenado pelo professor Juan Montero Arouca (2006). Pelo contrário, assume-se o processo como público na sua estrutura (normas cogentes, etc.), embora com finalidade privada, pois de forma clara e específica deve se voltar para os interesses daqueles que litigam, conforme leciona Eduardo José da Fonseca Costa no artigo “Processo e Razões de Estado” (2019. Disponível em https://emporiododireito.com.br/leitura/36-processo-e-razoes-de-estado. Acesso em 03/07/2020).

Assim, como dito no parágrafo inicial, agasalho a segundo teoria, do Garantismo Processual, por ter pilares sólidos e objetivos, não se determinando por subjetivismos dos tidos “infalíveis” homens do Poder.

Corrige-se, assim, o grande equívoco do instrumentalismo que é tratar o processo como instrumento do Poder e não como garantia para limitá-lo, especialmente por frear as arbitrariedades cometidas pela concretização dos poderes à margem da previsão legal, consagrando ideia subjetiva da justiça, embora seja claro que pelo garantismo a justiça encontra-se premente no que a própria lei dispõe.