Participação especial: Dr. Arthur Riboo da Costa (coautoria)
Resumo: A audiência de custódia vem ratificar que a liberdade é a regra enquanto que a prisão é a exceção, sendo relevante instrumento descarcerização no país.
Palavras-Chave: Audiência de Custódia. Prisão. Princípios constitucionais. Princípios do Processo Penal. Estado Democrático de Direito.
O cenário contemporâneo mundial ostenta que o Brasil possui a quarta maior população carcerária, atrás somente da Rússia, China e Estados Unidos. E, no período de 2004 a 2014 a população carcerária brasileira majorou em oitenta por cento. Especial destaque merece o expressivo número de presos em situação provisória. Segundo as estatísticas oficiais do Ministério da Justiça, cerca de 41% são presos provisórios, isto é, sem a condenação em primeira instância, ou seja, que ainda podem ser presumidos inocentes.
Com o advento da Lei 12.403/2011 que alterou sensivelmente a prisão cautelar, oferecendo ao julgador medidas cautelares diversas da prisão, e que tem o fito de evitar a prisão do indiciado ou acusado antes do julgamento. Aliás, a prisão provisória não é uma exceção, e tem figurado como regra de prima ratio, constituindo verdadeira antecipação da pena, afrontando visceralmente a garantia constitucional de presunção de inocência do réu ou acusado.
O surgimento da referida lei visa combater a cultura do encarceramento em massa existente no Brasil, para tanto é que o Conselho Nacional de Justiça juntamente com o Ministério da Justiça, desde janeiro de 2015, lançaram então o projeto chamado de “Audiência de Custódia[1]” que procurou garantir o contato pessoal da pessoa presa com um juízo logo após sua prisão em flagrante.
Segundo Renato Brasileiro de Lima, a audiência de custódia tem como finalidade não apenas a averiguação da legalidade da prisão em flagrante para fins de possível relaxamento, coibindo, assim eventuais excessos tão comuns no Brasil como torturas e/ou maus-tratos, mas também, o de conferir ao juiz uma ferramenta mais eficaz para aferir a necessidade de decretação da prisão preventiva (ou temporária) ou a imposição isolada ou cumulativa das medidas cautelares diversas da prisão (artigo 310, I, II e III CPP), sem prejuízo de possível substituição da prisão preventiva pela domiciliar, se acaso presentes os pressupostos do artigo 318 CPP[2].
Em verdade, o referido projeto conta com o amparo de normas e tratados internacionais tal como o Pacto de San José da Costa Rica, é assegurar a integridade física[3], evitar possíveis abusos e violações aos direitos humanos dos presos, bem como desafogar o sistema prisional, além de garantir o efetivo controle judicial de prisões e reforçar a utilização de medidas alternativas ao encarceramento provisório[4].
Cumpre. ainda sublinhar. a existência de uma proteção multinível de direitos humanos, seja no âmbito nacional instada na Constituição Federal e no plano internacional outorgada pelo Pacto de San José da Costa Rica e pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
O sistema de proteção multinível tem origem nos debates a respeito da integração europeia nos primeiros anos da década de 1990, tendo surgido como reação ao paradigma dominante até esse momento, segundo o qual o processo de integração parecia criar certos espaços nos quais o mesmo assunto estava sujeito, ao mesmo tempo, à regulação adotada por instituições do âmbito subnacional (seja província ou município), nacional (como ministério) e, até mesmo supranacional (tal como, a Comissão Europeia).
A primeira forma de compreender a interação entre direito nacional e internacional é apelar à ideia de uma Constituição Interamericana, inspirada pela noção de uma Constituição global. E, a principal perspectiva, o objetivo é limitar o poder de instituições globais, Estados e indivíduos através de adoção de valores, como normas jurídicas internacionais que sirvam como defesa contra os abusos de poder, e de forma análoga como uma Constituição nacional limita o exercício da autoridade no âmbito nacional.
Partindo das diretrizes presentes na Declaração Universal de Direitos Humanos, criou a Convenção Europeia para a proteção dos direitos humanos e liberdades (CEDH), em 1950, estabelecendo a necessidade de condução sem demora de toda pessoa detida ou presa à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada para desempenhar tais funções.
E, em 1969, em São José da Costa Rica, os delegados dos Estados-membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), na Conferência Interamericana sobre Direitos Humanos, aprovaram a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH).
Mas, a referida convenção passou a viger somente em 18 de julho de 1978, sendo ratificada pelo Brasil através do Decreto 678, de 9 de julho de 1992, reproduzindo a necessidade de apresentação rápida do preso a um juiz ou autoridade, situação que no Brasil, conforme sustentou Mauro Andrade, acabou por ser conhecida como audiência de custódia.
No Brasil vige o paradoxo em referência à aplicação da audiência de custódia, pois mesmo após ser signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos, mesmo após vinte e três anos, ainda caminhamos lentamente para que o preso tenha rápido contato pessoal com uma autoridade judicial ou com poderes judiciais para rever os motivos da prisão efetuada.
A falta de compromisso do Brasil com a real ratificação[5] da Convenção Americana de Direitos Humanos já produz resultados nas decisões prolatadas por seus tribunais, tendo em vista que, ao denegar a ordem de habeas corpus, o juiz relator in litteris entendeu:
HABEAS CORPUS. PRISÃO CAUTELAR. NECESSIDADE. PRISÃO MANTIDA. 1. A Convenção Americana de Direitos Humanos, que prevê a audiência de custódia, está, segundo o STF[6], hierarquicamente subordinada às normas constitucionais.
A Constituição Federal exige que a prisão seja comunicada ao juiz em 24 horas, direito garantido, também, pelo artigo 306 do Código de Processo Penal, o que foi assegurado à paciente no momento do flagrante. Assim, em que pese a iniciativa do Conselho Nacional de Justiça, juntamente com o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e o Ministério da Justiça, que originaram o “Projeto Audiência de Custódia”, e o Projeto de Lei nº 554/2011, que tramita no Congresso Nacional, não há, por ora, flagrante ilegalidade na não realização da solenidade, medida que se beneficiará de efetiva regularização procedimental, a considerar a atual praxe forense. Ademais, a medida tem como objetivo prevenir e combater a tortura, bem como implementar o efetivo controle das prisões cautelares. No caso, no entanto, não foi alegado abuso por parte dos agentes, inexistindo, portanto, a ilegalidade suscitada. ORDEM DENEGADA. Habeas Corpus nº 70065554859, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS. Relator: Jayme Weingartner Neto. Julgado em 12/08/2015.
É relevante que os debates produzidos sobre o tema produzam uma mudança de entendimento do Poder Legislativo que necessita de maior celeridade, regulamentando de vez o instituto da audiência de custódia em nosso ordenamento jurídico. E, nesse aspecto, a proteção multinível dos direitos humanos implica em redistribuição do poder institucional, no contexto nacional que deve ser considerado.
O modelo de proteção discutido fornece maior poder aos tribunais e, especialmente, aos juízes, em detrimento dos Poderes do Legislativo e Executivo. O discurso da proteção multinível dos direitos humanos pareceu higienizar a política dos conflitos sociais.
A audiência de custódia consiste na condução do preso, sem demora, à presença de uma autoridade judicial que deverá, após a realização de contraditório entre acusação e defesa, exercendo imediato controle de legalidade e da necessidade da prisão, além de verificar as questões relativas à pessoa do conduzido, em relação a maus-tratos e tortura.
Portanto, a audiência de custódia assegura a integridade física e os direitos humanos dos presos, consolidando também o direito de acesso à justiça do preso, com a ampla defesa garantida no momento de persecução penal.
Trata-se de garantia do cidadão em face do Estado, condizente com a presunção de inocência. Lastreado nos tratos internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil tal como o Pacto de San José da Costa Rica, conforme o art. 7.5, in litteris:
“toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em um prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo”.
A audiência de custódia serve para conter o poder punitivo, de potencializar a função do processo penal e da jurisdição como instrumento de proteção dos direitos humanos e dos princípios processuais.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos já decidiu que a apresentação imediata ao juiz é essencial para a proteção do direito à liberdade pessoal e para outorgar proteção a outros direitos, como a vida e a integridade pessoal, advertindo que o simples conhecimento por parte de um juiz de que uma pessoa está detida não satisfaz essa garantia.
A audiência de custódia[7] visa corrigir de forma singela e eficiente a dicotomia gerada, pois de um lado, o preso em flagrante será imediatamente conduzido à presença de um juiz para ser ouvido, momento em que o magistrado decidirá sobre as medidas previstas no artigo 310 do CPP[8].
É procedimento indispensável para analisar o processo penal brasileiro através do viés constitucional, onde estão presentes os valorosos princípios processuais, como presunção de inocência, ampla defesa e contraditório.
Tais como o princípio da legalidade expresso em: “Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela lei e de acordo com as formas por esta prescrita”.
Princípio da igualdade que afirma que todos são iguais perante a lei, em direitos e obrigações; princípio da humanidade e da dignidade considerados como os mais relevantes, conforme o preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, in litteris: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo (…).
Considerando que as Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e valor da pessoa humana (…)”.
Princípio do devido processo legal expresso em: “Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela lei e de acordo com as formas por esta prescrita. Os que solicitam, expedem executam ou mandam executar ordens arbitrárias devem ser punidos (…)”. A Declaração das Nações Unidas, de 1948, repete a regra no seu art. IX: “Ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado”.
O princípio do Contraditório identificado como: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, pois garante a ampla defesa do acusado”.
Esse princípio é uma garantia fundamental da justiça, isso porque deve ser permitida a ambas partes a paridade de armas, sendo assim todo ato produzido dentro do processo caberá igual direito à outra parte de discordar, aceitar ou simplesmente modificar os fatos e o direito alegado pelo autor, de acordo com o que lhe seja mais conveniente; princípio do juiz natural que diz que: “Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”.
Daí a garantia de ser ter um juiz imparcial, técnico, competente para resolver os conflitos demandados no Poder Judiciário, evitando assim o que ocorra nulla pena sine judice; princípio do estado de inocência expresso na Declaração Universal dos Direitos do Homem relata também: “Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente, até que a culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público, no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa” (art. XI).
A Constituição Federal também prevê no art. 5°, inciso LVII, “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”; “O processo penal condenatório não é um instrumento de arbítrio do Estado. Ele representa, antes, um poderoso meio de contenção da persecução penal.
Ao delinear um círculo de proteção em torno da pessoa do réu, que jamais presume culpado, até que sobrevenha irrecorrível sentença condenatória, o processo penal revela-se instrumento que inibe a opressão judicial e que, condicionado por parâmetros ético-jurídicos, impõe ao órgão acusador o ônus integral da prova, ao mesmo tempo em que faculta ao acusado, que jamais necessita demonstrar sua inocência, o direito de defender-se e de questionar, criticamente, sob a égide do contraditório, todos os elementos probatórios apresentados pelo Ministério Público”.
O direito à presunção de inocência constitui o princípio inspirador e dirigente por excelência, pois os excessos em sua aplicação rotineira levam ao questionamento sobre a eventual redução desse princípio à categoria de mito, apesar de a presunção de inocência constituir uma salvaguarda processual dirigida às autoridades para que os inocentes sejam tratados, conforme devam ser, em princípio, aguardar seu julgamento em liberdade.
Realmente a presunção de inocência está presente ao longo de todas as fases do processo penal em todas as instâncias. Em priscas eras, Cesare Beccaria já qualificava que era tirânica a prática de condenar o imputado sem haver cumprido a carga de demonstrar com certeza sua culpabilidade, sustentando que ainda nos delitos de difícil comprovação, que são recebidos pelos princípios admitem hipóteses tirânicas, as quase evidências, as semiprovas (como se um homem pudesse ser semi-inocente ou semiculpado e, sendo, assim ser por consequência, ser semipunível ou semiabsolvido).
In litteris, Beccaria esclarece:
“um homem não pode ser chamado culpado antes da sentença do juiz, e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública após ter decidido que ele violou os pactos por meio dos quais ela lhe foi outorgada. Qual é, pois, o direito, senão o da força, que dá ao juiz o poder de aplicar pena ao cidadão, enquanto existe dúvida sobre sua culpabilidade ou inocência?”
Em suma, ao exigir que toda privação da liberdade[9], antes do trânsito em julgado, deva ostentar natureza cautelar, com a imposição de ordem judicial devidamente motivada.
A Constituição Da República brasileira vigente em seu artigo 5, inciso LV consagra que aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
E, ainda, pela Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, chamada de Pacto de San José da Costa Rica, aprovada pelo Congresso Nacional através do Decreto Legislativo 27, de 26 de maio de 1992, garante o contraditório e a ampla defesa em seu artigo 8º.
O princípio do contraditório consiste na garantia de participação no processo como meio de permitir a contribuição das partes para formação do convencimento do juiz e, assim, para o provimento final desejado.
É preciso salientar que o contraditório é, principalmente, por ocasião das abordagens relativas às provas, um dos princípios mais caros e preciosos para o processo penal, constituindo verdadeiro requisito de validade do processo, na medida em que a sua não observância é passível até de nulidade absoluta, quando em prejuízo do acusado.
Cumpre ainda evidenciar que o dever de imparcialidade do órgão decisor exige inteirar-se da controvérsia, o que supõe audiência de ambas as partes, que não confere audiência a ambas as partes por este só fato já há cometido uma imparcialidade, porque não há investigado se não a metade do que tinha que indagar.
Em doutrina mais recente, sobretudo a partir do jurista italiano Elio Fazzalari, progrediu sensivelmente para trazer nova formulação do instituto, com a finalidade de incluir na mesma seara o princípio da par conditio ou da paridade de armas, traduzindo assim, uma efetiva igualdade processual.
De forma que o contraditório deixaria de ser apenas o direito à informação de qualquer fato ou alegação contrária ao interesse das partes e o direito à reação (contrariedade) e ambos, vistos, como garantia de participação, mas igualmente exigindo a garantia de participação em simétrica paridade.
Nesse diapasão, o ato jurídica que garante a audiência de custódia possibilita ao conduzido seu primeiro contato com o Poder Judiciário, além da possibilidade real e efetiva de realizar o contraditório, quando ouvido em audiência, relatando os fatos conforme seu ponto de vista, ou mesmo negando-se a falar ou depor, sem que o silêncio mantido traga qualquer prejuízo em sua soltura ou mesmo na manutenção da prisão, quando for o caso.
Destaca-se a lição de Antonio Scarance Fernandes, in verbis:
“no processo penal é necessário que a informação e a possibilidade de reação permitam um contraditório pleno e efetivo. Pleno porque se exige a observância do contraditório durante todo o desenrolar da causa, até seu encerramento. Efetivo porque não é suficiente dar à parte a possibilidade formal de se pronunciar sobre os atos da parte contrária, sendo imprescindível proporcionar-lhe os meios para que tenha condições reais de contrariá-los”.
Em síntese, o contraditório, juntamente com a ampla defesa, instituiu-se como a pedra fundamental de todo o processo, especialmente, do processo penal, posto que seja a cláusula de garantia instituída para a proteção do cidadão diante da persecução penal.
De outro viés, o ato criminoso por si só representa algo maléfico e que traz tanta dor e sofrimento para a vítima e também para o autor. Jamais nos lembraremos de um sujeito acusado de um fato criminoso como alguém respeitador e educador, mas sim, de um sujeito que congrega em si todos os atributos maléficos. Tal conduta humana cria o chamado efeito priming[10], isto é, conforme lecionam Alexandre Morais da Rosa e Aury Lopes Junior:
“[o] efeito que a rede de associações de significantes opera individualmente sem que nos demos conta, fundados naquilo que acabamos de perceber, mesmo na ausência de informações do caso. Daí que a simples leitura da peça acusatória ou do auto de prisão em flagrante gera, aos metidos em processo penal, a antecipação de sentido”.
Com a apresentação pessoal do conduzido ao magistrado para que faça a análise de forma mais humana, pois não se trata apenas de um processo que representa um calhamaço de documentos, que por vezes, retratam situações completamente diferentes da realidade.
Assim, perante ao juiz é apresentado o preso, um sujeito de carne e osso, com nome, sobrenome, idade, vida pregressa e, ainda, poderá esclarecer sobre os fatos relacionados com sua prisão.
Destaque-se que a Resolução CM. 8/2018 estabeleceu, contudo, situações em que é possível que a realização da audiência de custódia seja dispensada (art. 5º, § 1º): a) recolhimento de fiança arbitrada pela autoridade policial; b) prisão ilegal imediatamente relaxada pela autoridade judiciária; c) liberdade provisória concedida previamente pela autoridade judiciária.
Traduz-se então, uma mudança meramente legislativa, sendo a audiência de custódia é elemento extremamente necessário para o aperfeiçoamento de um devido processo penal brasileiro, proporcionando melhor desempenho da justiça efetivamente humanitária em respeito aos direitos do preso em situação cautelar.
A audiência de custódia fora proclamada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.240/SP, cujo acórdão foi publicado em 31 de agosto de 2015. O processo constitucional foi instaurado pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (ACADEPOL), para impugnar a constitucionalidade do Provimento Conjunto 3, de 22 de janeiro de 2015, de autoria da Presidência e da Corregedoria-Geral da Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo, cujo teor celebrava com qualidade de ato normativo a necessidade de apresentação da pessoa presa.
a norma jurídica de direitos humanos em 1992, tornada, pois, superveniente norma jurídica de direito fundamental, instalou-se sobre ela a configuração de ato normativo exigível em termos de sua eficácia, já reconhecidamente afim e complementar ao perfil protetivo de direitos e garantias proveniente de nossa Constituição, na esteira do artigo 5º, §2º, originário de seu texto promulgado em 1988. Como se não bastasse, com o advento da Emenda Constitucional 45/2004, erigiu-se novo comando ao artigo 5º, quando o inédito §3º veio a estabelecer a possibilidade de os tratados e as convenções sobre direitos humanos alcançarem – mediante o crivo legislativo análogo ao exercício do poder constituinte derivado reformador (de acordo com as regras de aprovação, portanto, de emenda constitucional) – um patamar normativo com equivalência constitucional. Em paradigmática decisão do STF cerca de cinco anos depois daquele acréscimo ao texto da Constituição, engendrou-se caráter supralegal (com prevalência aos ditames legais do corpo legislativo interno), embora com posição hierárquico-normativa abaixo do Texto Maior, às normas internalizadas pelo Brasil com ascendência em tratados internacionais de direitos humanos.
O Supremo Tribunal Federal, em sessão realizada em 9 de setembro de 2015, concedeu parcialmente cautelar solicitada na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, que pede providências para a crise prisional do país, a fim de determinar aos juízes e tribunais que passem a realizar audiências de custódia, no prazo máximo de 90 dias, de modo a viabilizar o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária em até 24 horas contadas do momento da prisão.
Diante do exposto, normativamente reconhecida e reivindicada a obrigatoriedade de sua adoção pela Corte Suprema de nosso país, podemos afirmar que a audiência de custódia atualmente efetivamente consiste em direito fundamental do preso e do detido.
A audiência de custódia consumou-se procedente e, pois, reivindicável, do ponto de vista normativo da interpretação jurídica. Mas, ainda há o déficit, o mais proeminente, de efetividade. A verdadeira interpretação jurídica que a realidade, igualmente interpretativa insiste em consagrar eficaz na verdade inevitável do acontecimento sensível que nos interpela.
O § 1º do art. 8º da Resolução CNJ n. 213/2015 estabelece a sequência do procedimento:
- 1º Após a oitiva da pessoa presa em flagrante delito, o juiz deferirá ao Ministério Público e à defesa técnica, nesta ordem, reperguntas compatíveis com a natureza do ato, devendo indeferir as perguntas relativas ao mérito dos fatos que possam constituir eventual imputação, permitindo-lhes, em seguida, requerer:
I – o relaxamento da prisão em flagrante;
II – a concessão da liberdade provisória sem ou com aplicação de medida cautelar diversa da prisão;
III – a decretação de prisão preventiva;
IV – a adoção de outras medidas necessárias à preservação de direitos da pessoa presa.
Em seguida, o juiz deliberará, fundamentadamente, acerca da legalidade e da necessidade de manutenção da prisão ou do cabimento de liberdade provisória, com ou sem imposição de medidas cautelares diversas da prisão, assim como sobre as providências adotadas ante constatação de indícios de tortura e maus-tratos (Resolução CNJ n. 213/2015, art. 8º, § 3º).
Concluída a audiência, cópia do termo, contendo a decisão fundamentada do magistrado, será entregue à pessoa presa em flagrante delito, ao defensor e ao Ministério Público, tomando-se a ciência de todos, e apenas o auto de prisão em flagrante, com antecedentes e cópia[11] do termo, seguirá para livre distribuição (Resolução CNJ n. 213/2015, art. 8º, § 4º).
E, a moldura interpretativa do mundo, reconhece a segurança como um legado da modernidade cartesiana, o que em contrapartida traz a responsabilidade por um tempo histórico hermenêutico, onde a última palavra depende da própria humanidade e de suas instituições, ou seja, cuja lupa aponta para a metafísica do conhecimento.
A resposta hermenêutica filosófica para atual crise contemporânea, é substituir o método do monólogo soberano (como o cogito de Descartes) de paradigmas absolutos e refratários à historicidade, propondo uma forma epistemológica, como o lugar de uma necessária reavaliação da racionalidade.
Merece reprimenda o contraponto interpretativo que instituiu a tendência de entender o direito como interpretação, inflacionando o fenômeno interpretativo a tal ponto de impossibilitar o juízo comensurável entre boas e más interpretações de um objeto (como interpretação jurídica de uma regra) consiste num dos mais flagrantes equívocos dessa concepção filosófica, na medida em que se promove a identificação entre a lei e a sua interpretação, incapacitando-os de distinguir objetivamente o cumprimento de uma regra e sua respectiva violação.
Com a hermenêutica incorreria numa espécie de solipsismo imunizador de qualquer interpretação, suportada pelo escafandro de quem interpreta o direito desta ou daquela maneira. Se a hermenêutica filosófica propusesse esse tamanho relativismo desenfreado, o que não o faz, pelo menos dentro da perspectiva desta hermenêutica filosófica de Gadamer em que se ampara o discurso.
O desenvolvimento de meios a serem empregados rumo à concretização de um direito fundamental – no caso, o direito à audiência de custódia ou, renomeada pelo Supremo Tribunal Federal, audiência de apresentação – não pode ser desrespeitado a tamanho ponto.
Há dispositivo constitucional específico que, situado onde está em ambiente intencionalmente sistemático a lhe guarnecer uma posição de parâmetro normativo da organização político-administrativa do Brasil, funciona como embasamento hermenêutico de vetor principiológico para promover em específico a tutela da igualdade no horizonte da adotada República federativa, orientando duplamente as relações entre as unidades federativas.
Por um lado, o artigo 19, inciso III, do texto constitucional em vigor, ao vedar às entidades federativas (União, Estados, Distrito Federal e municípios) o estabelecimento de distinções entre brasileiros, proscreve o favorecimento ou prejuízo de brasileiros pelo fato de serem naturais de determinado local ou região, ou ainda em virtude de possuírem algum tipo de vínculo com qualquer unidade federativa.
O dispositivo em comento proíbe a criação de preferências entre os próprios entes federativos, num inequívoco mandamento constitucional derivado do princípio da isonomia, aqui delineado nos moldes do arranjo integrado de nosso federalismo republicano.
Também se poderia identificar aqui o consectário da simetria federativa no horizonte de um Estado nacional organizado a partir de eixos jurídicos homogêneos, voltados para evitar a ocorrência de injustificáveis discrepâncias e contrastes com supedâneo em arbitrárias considerações com eco na realidade local de destino.
O princípio da simetria federativa, tido por implícito para alguns doutrinadores, pode ser facilmente retirado de outras duas normas constitucionais: o artigo 22, que define a competência privativa da União em legislar sobre determinados assuntos, com notória eficácia uniforme em caráter nacional (sem ignorar que o parágrafo único desse dispositivo autoriza lei complementar federal a delegar competência legislativa decorrente para todas as unidades estaduais regulamentarem “questões específicas das matérias relacionadas neste artigo”) e o artigo 24, que define a competência legislativa concorrente entre União, Estados, Distrito Federal e municípios, competindo ao ente federal a competência de editar sobre as normas gerais atinentes às matérias daquele preceito constitucional.
Em apelo ao artigo 22, inciso I, da Constituição, militam igualmente Mauro Andrade e Pablo Alflen (Audiência de custódia e o processo penal brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 98).
A propósito, existem julgamentos do Supremo Tribunal Federal que se apegam ao princípio da simetria federativa com o condão de robustecer, a partir de casos concretos, o irrestrito e generalizado respeito às garantias e aos direitos fundamentais de todas as pessoas, a outra face da moeda do princípio da supremacia da Constituição, também abrangente e direcionado uniformemente a todas as unidades federativas (HC 89.837/DF e 85.419/RJ, Relator Ministro Celso de Mello, DJ 20/11/2009 e 27/11/2009, respectivamente).
Frise-se que não se mostra objeto deste trabalho averiguar a natureza jurídica do postulado da simetria (tampouco acerca da controvérsia sobre sua efetiva existência, que a pressupomos), aqui denominado de princípio em virtude de sua potencialidade interpretativa tendente a casuisticamente ponderar, a partir do conjunto sistemático de normas constitucionais, uma estruturação equilibrada, coerente e sintonizada com a complexa teia de relações característica de um modelo federativo de Estado.
Trata-se de, por intermédio da simetria, conduzir-se a uma prudente consolidação de parâmetros normativos nacionais válidos de maneira uniforme em todo o território nacional, e não de promover maniqueísmos exacerbados, seja em prol de uma verticalização excessiva magnetizada pelo poder federal, seja em benefício de disparates quaisquer camuflados pelo endosso nebuloso em torno dos interesses locais e regionais.
Conforme preceituou Pontes de Miranda, no concernente ao tema da taxatividade dos princípios constitucionais, em especial na matéria relativa ao elastério normativo das diretrizes principiológicas cuja ofensa seria passível de intervenção federal nos Estados, “não havia, nem há, cânones a priori, para a determinação de tais princípios” (Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969. Rio de Janeiro: Forense, 1987. p. 196).
A respeito do caos de desigualdade em nosso país na regulamentação do tema: “Embora estejamos tratando de um mesmo ato processual, o provimento a ser aplicado pelo Poder Judiciário de São Paulo, em certas situações, posicionou-se de forma diametralmente oposta à forma como a audiência de custódia foi regulamentada pelo Poder Judiciário do Maranhão. A título de exemplo, rechaçou-se a realização da audiência de custódia por meio de sistema de teleaudiência, bem como, a realização daquele ato durante o horário de plantão ordinário e nos finais de semana.
Da mesma forma, a existência desse projeto capitaneado pelo CNJ, Ministério da Justiça e Tribunal de Justiça de São Paulo em nada obstaculiza que outros Tribunais ou juízes de 1º grau venham a se manifestar de forma dissonante às disposições previstas naquele provimento, já que a ele não estão vinculados, seja em relação à forma como essa audiência deveria se realizar ou, até mesmo, se esta deve se realizar.
Aliás, essa é a realidade que vem se verificando: de um lado, há Tribunais que não demonstraram qualquer intenção em aderir a tal projeto-piloto em seus Estados; de outro, os Tribunais que aderiram ao projeto-piloto do CNJ, e já implantaram a audiência de custódia em seus Estados […] acabaram por regulamentar a audiência de custódia também por ato administrativo, mas apresentando pequenas modificações […]” (In: ANDRADE, Mauro Fonseca; ALFLEN, Pablo Rodrigo. Audiência de custódia e o processo penal brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 28). O desacordo normativo é depois retomado em páginas subsequentes (por exemplo, ibidem, p. 56-57).
Em síntese conclusiva, sugere-se, pois, que a interpretação conforme a Constituição Federal seja um meio de prevenir ou, no limite, remediar a ocorrência de bipolaridades injustificadas no âmbito da jurisdição.
Trata-se de considerar esse instrumento, pela sua valência casuística e argumentativa, como um mecanismo para legitimar um direito fundamental de índole processual e material (audiência de custódia), dissuadindo a ocorrência de controvérsias infundadas violadoras do princípio da igualdade.
O vigente CPC não inova no tema dos precedentes obrigatórios, eis que o sistema constitucional de 1988 já estabelece o caráter vinculante das decisões do STF em controle concentrado e difuso, sem esquecer a vigência das leis 9.868/99 e 9.882/99 no trato da jurisdição constitucional (inclusive a interpretação conforme a Constituição), tampouco sem olvidar o incidente de uniformização de jurisprudência sempre acatado em nosso regime processual em vigor (artigos 479 e 480 do atual Código de Processo Civil).
Registre-se que o tema da jurisdição constitucional e do caráter congruente das decisões interpretativas remonta a uma dimensão geral do direito, ou seja, propedeuticamente hermenêutica, insuscetível, pois, de contemporizações tópicas (capazes de relativizar os seus postulados teóricos) nessa ou naquela área jurídica, só pode acarretar prejuízos semânticos.
Importante destacar que o rito[12] da audiência de custódia é caracterizado pelos seguintes procedimentos, a saber: defensor, sem a presença de agentes policiais; entrevista em que a autoridade judicial interpela a pessoa presa sobre as circunstâncias da prisão, abstendo-se tal autoridade de formular perguntas com o fim de produzir prova para a investigação ou ação penal, sendo vedada, durante toda a audiência, a presença dos agentes que efetuaram a prisão ou a investigação; reperguntas pelo Ministério Público e pela defesa técnica, nessa ordem, compatíveis com a natureza do ato, sendo vedadas perguntas relativas ao mérito dos fatos que possam constituir eventual imputação; deliberação do magistrado acerca da legalidade e da necessidade de manutenção da prisão ou do cabimento de liberdade provisória, com ou sem imposição de medidas cautelares diversas da prisão, assim como sobre as providências adotadas ante constatação de indícios de tortura e maus-tratos.
Aliás, com a Lei Anticrime, a Lei 13.964/2019 alterou-se a regulamentação da audiência de custódia e dispositivos do Código de Processo Penal brasileiros, nos seus artigos 287 ao 310. Afinal, com a regulamentação da realização das audiências de custódia, diante dos casos de prisão em flagrante delito, restou a lacuna sobre a apresentação do preso em decorrência de cumprimento de mandado de prisão, quer seja a prisão preventiva ou prisão temporária.
Com a atual redação do artigo 287 CPP, aquele que for preso em decorrência de mandado de prisão igualmente deverá passar pela audiência de custódia, que será realizada pelo juiz que decretou a referida prisão. E, tal entendimento é corroborado com o acréscimo ao dispositivo da expressão “para realização de audiência de custódia” ao artigo 287 CPP.
Interpretando o advérbio “imediatamente” como sendo o prazo de vinte e quatro horas, bem como nas demais hipóteses contidas no CPP. Quando se cogita na falta de exibição de mandado, não se trata realmente de total inexistência de mandado de prisão, mas apenas a impossibilidade de, naquele momento, ou seja, no ato da prisão apresentar o mandado, o qual, segundo o atual artigo 288 CPP é imprescindível para que se recolha o preso para unidade prisional.
No que se refere ao artigo 310 CPP, uma das vantajosas mudanças reside em seu caput quando regulamenta a audiência de custódia após a prisão em flagrante, que deverá ser realizado no prazo de vinte e quatro horas após o flagrante. Há, também a regulamentação da concessão da liberdade provisória, principalmente diante das hipóteses de excludente de ilicitude. Apesar de que essa exige uma maior dilação probatória.
A maior controvérsia, em face da inconstitucionalidade é o disposto que impossibilita a concessão de liberdade provisória para os casos de reincidência, organização criminosa armada ou milícia e, ainda, porte de arma de fogo de uso restrito.
Em tempo, é salutar recordar que o STJ já reconheceu a inconstitucionalidade da vedação da concessão de liberdade provisória em face do artigo 44 da Lei de Tóxicos, bem como já fora reconhecida a inconstitucionalidade da vedação constante na Lei de Crimes Hediondos, o que é incompatível com a presunção de inocência do réu e devido processo legal, dentre outros princípios constitucionais pertinentes.
Apesar de estar suspenso pela decisão do Ministro Fux[13], atual presidente do STF, há a inclusão da ilegalidade da prisão em flagrante delito, com a necessidade de relaxamento, diante da não realização dentro de vinte e quatro horas, da audiência de custódia, o que não impede, porém, a decretação de prisão preventiva, desde que presentes os requisitos do artigo 312 CPP e incabíveis as demais medidas cautelares diversas de prisão.
Referências
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CUNHA, Rogério Sanches.663: Não há previsão legal para a realização de audiência de custódia por videoconferência. Disponível em: https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2020/02/20/663-nao-ha-previsao-legal-para-realizacao-de-audiencia-de-custodia-por-videoconferencia/ Acesso em 20.9.2020.
GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Comentários à convenção americana sobre direitos humanos. 4.ed. São Paulo: RT, 2013
________________; BRASILEIRO, Renato de. Manual de processo penal: volume único. 5.ed. Salvador: JusPodivm, 2017.
GONÇALVES, Rafaela Caldeira. Da audiência de custódia e seu impacto no processo penal brasileiro. Disponível em: http://www.tjsp.jus.br/download/EPM/Publicacoes/CadernosJuridicos/pp%204.pdf?d=636685514639607632 Acesso em 20.09.2020.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 3ª ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2015.
LOPES JR., Aury; PAIVA, Caio. Audiência de custódia e a imediata apresentação do preso ao juiz: rumo a evolução civilizatória do processo penal. Disponível em: http://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/11256/2/Audiencia_de_custodia_e_a_imediata_apresentacao_do_preso_ao_juiz_Rumo_a_evolucao_civilizatoria_do_Processo_Penal.pdf Acesso em 20.9.2020.
PAIVA, Caio. Na Série “Audiência de Custódia”: conceito, previsão normativa e finalidades. Disponível em: http://www.justificando.com/2015/03/03/na-serie-audiencia-de-custodia-conceito-previsao-normativa-e-finalidades/ Acesso em 19.9.2020.
[1] O conceito de custódia se relaciona com o ato de guardar, de proteger. A audiência de custódia consiste, portanto, na condução do preso, sem demora, à presença de uma autoridade judicial, que deverá, a partir de prévio contraditório estabelecido entre o Ministério Público e a Defesa, exercer um controle imediato da legalidade e da necessidade da prisão, assim como apreciar questões relativas à pessoa do cidadão conduzido, notadamente a presença de maus tratos ou tortura. Assim, a audiência de custódia pode ser considerada como uma relevantíssima hipótese de acesso à jurisdição penal, tratando-se, então, de uma “das garantias da liberdade pessoal que se traduz em obrigações positivas a cargo do Estado”. In: CASAL, Jesús María. In: Convención Americana sobre Derechos Humanos- Comentário. Fundación Bogotá, Colômbia: Konrad Adenauer, 2014 p. 195.
[2] A chamada lei anticrime conferiu nova redação ao artigo 287 do CPP, inserindo a previsão da realização da audiência de custódia: “Art. 287. Se a infração for inafiançável, a falta de exibição do mandado não obstará a prisão, e o preso, em tal caso, será imediatamente apresentado ao juiz que tiver expedido o mandado, para a realização de audiência de custódia.” (NR). Foi feita a opção correta em não se limitar a audiência de custódia à prisão em flagrante, estendendo-a aos outros tipos de prisões cautelares. Abusos podem ocorrer em qualquer forma de prisão, bem como a presença do detido pode facilitar a análise da necessidade de manutenção da constrição pelo Juiz.
[3] Nos casos em que for realizada a audiência de custódia, o exame de corpo de delito somente será determinado se houver dúvida sobre a integridade física da pessoa presa, como marcas visíveis de agressão ou alegação do preso de que foi torturado (Resolução CM n. 8/2018, art. 10).
[4] A principal e mais elementar finalidade da implementação da audiência de custódia no Brasil é ajustar o processo penal brasileiro aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Tal premissa implica considerar que as finalidades da audiência de custódia, ainda que não convençam os seus opositores, não os desobriga de observar o seu cumprimento. Pouca ou nenhuma importância teria o Direito Internacional dos Direitos Humanos se cada país dispusesse de uma “margem de apreciação” a respeito da utilidade dos direitos e garantias veiculados nos Tratados a que – voluntariamente – aderiram.
[5] Não é cabível a realização de audiência de custódia por meio de videoconferência. – e se a prisão cautelar (antes do trânsito em julgado) deve ser decretada (art. 310, II) ou se o preso poderá receber a liberdade provisória (art. 310, III) ou medida cautelar diversa da prisão. A Resolução 213/2015 aclara (e muito) lacunas deixadas pela lei. É o caso do art. 13, segundo o qual a audiência deve ser realizada também “em decorrência de cumprimento de mandados de prisão cautelar ou definitiva”, sendo que os “mandados de prisão deverão conter, expressamente, a determinação para que, no momento de seu cumprimento, a pessoa presa seja imediatamente apresentada à autoridade judicial que determinou a expedição da ordem de custódia ou, nos casos em que forem cumpridos fora da jurisdição do juiz processante, à autoridade judicial competente, conforme lei de organização judiciária local” .
[6] O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar duas ações de controle concentrado, decidiu pela constitucionalidade da audiência, bem como pela sua importância no combate ao estado de coisas inconstitucional em que se encontra o sistema prisional brasileiro1. Transcreve-se, no que importa, trecho da ementa do acórdão da medida cautelar na ADPF 347, julgada pelo Plenário do STF, sob relatoria do ministro Marco Aurélio: “AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA – OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA. Estão obrigados juízes e tribunais, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a realizarem, em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contado do momento da prisão.”
[7] Veio a Resolução 213/2015 do CNJ aclarar as lacunas deixadas pela lei. É o caso do art. 13 da Lei 13.9696/2019 segundo o qual a audiência deve ser realizada também em decorrência de cumprimento de mandados de prisão cautelar ou definitiva, sendo que os mandados de prisão deverão conter, expressamente, a determinação para que, no momento de seu cumprimento, a pessoa presa seja imediatamente apresentada à autoridade judicial que determinou a expedição da ordem de custódia, ou nos casos em que forem cumpridos fora da jurisdição do juiz processante, à autoridade judicial competente, conforme a lei de organização judiciária local.
[8] Frise-se que o Supremo Tribunal Federal iniciou discussão sobre o cabimento da audiência em outros tipos de prisão no julgamento da reclamação 293032. Resta saber se, após a edição da lei 13.964/19, a questão será mantida ou se será considerada superada pelo advento de disciplina legal. Também sofreu alteração o artigo 310, do Código de Processo de Penal, nos termos abaixo apresentados: “Art. 310. Após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente: …………………………………………………………………………………………………..
- 1º Se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato em qualquer das condições constantes dos incisos I, II ou III do caput do art. 23 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento obrigatório a todos os atos processuais, sob pena de revogação.
- 2º Se o juiz verificar que o agente é reincidente ou que integra organização criminosa armada ou milícia, ou que porta arma de fogo de uso restrito, deverá denegar a liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares.
- 3º A autoridade que deu causa, sem motivação idônea, à não realização da audiência de custódia no prazo estabelecido no caput deste artigo responderá administrativa, civil e penalmente pela omissão.
- 4º Transcorridas 24 (vinte e quatro) horas após o decurso do prazo estabelecido no caput deste artigo, a não realização de audiência de custódia sem motivação idônea ensejará também a ilegalidade da prisão, a ser relaxada pela autoridade competente, sem prejuízo da possibilidade de imediata decretação de prisão preventiva.”
[9] Em caso de recolhimento de fiança arbitrada pela autoridade policial, o auto de prisão em flagrante será distribuído diretamente ao juízo competente para o processamento da ação penal. De outro lado, somente o juiz responsável pela realização da audiência de custódia (Resolução CM n. 8, art. 3º e art. 4º, § 2º) é competente para análise da possibilidade de imediato relaxamento do flagrante ou prévia concessão de liberdade provisória, com dispensa de apresentação do preso (art. 5º, § 1º, parte final).
[10] A explicação para o Efeito Priming, na verdade, é muito simples. Etimologicamente, priming é oriundo de prime que significa primeiro. O efeito priming, portanto, é o efeito que uma palavra ou signo tem sobre uma segunda palavra ou signo. Na linguística, estudos revelaram que palavras que compartilham características semânticas (médico/hospital), fonológicas (hora/oca) ou morfológicas (dança/dançarino) são lidas e entendidas mais rápido se aparecem em sequência. Da mesma forma, se elas não têm essa ligação (ou se nós não somos capazes de fazê-la), o processo passa a ser mais demorado. Na psicologia, porém, a aplicação do efeito priming foi mais impressionante ainda. Daniel Kahneman, um teórico da finança comportamental premiado com o Nobel de economia em 2002, foi apenas um dos pesquisadores que conduziram estudos que mostraram que o comportamento das pessoas muda a partir de estímulos que elas nem perceberam.
[11] Em que pese a resolução do CNJ fazer menção à entrega de cópia do termo ao defensor e ao Ministério Público, essa fica dispensada, em razão de o processo ser eletrônico e ambos possuírem acesso aos autos digitais. Todavia, caso solicitada a cópia, não há óbice ao fornecimento.
[12] Iniciada a audiência de custódia, a autoridade judicial entrevistará a pessoa presa em flagrante, devendo esclarecer-lhe o procedimento e as questões que serão analisadas e indagar-lhe sobre as circunstâncias de sua prisão, abstendo-se de formular perguntas com o fim de produzir prova para a investigação ou ação penal atinentes aos fatos do auto de prisão em flagrante (Resolução CNJ n. 213/2015, art. 8º).
[13] Ao decidir que a implementação do juiz das garantias fica suspensa até decisão em Plenário, o ministro Luiz Fux também liberou que prisões sejam feitas sem audiência de custódia em até 24 horas. Conforme a redação do artigo 310, §4°, introduzido ao Código de Processo Penal pela Lei 13.964/19, apelidada de “anticrime”, é ilegal toda prisão em que a pessoa não seja apresentada à autoridade judicial no prazo de 24 horas. As audiências são também definidas pela Resolução 213/2015, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Vide em: ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6305.