Resumo:
É sabido que o artigo 260 do CPP permite que em caso de não comparecimento injustificado o acusado poderá ser conduzido coercitivamente. E, há correntes doutrinárias que acreditam que não mais se admite a dita condução coercitiva, pois o comparecimento ao interrogatório deve ser aferido pelo indiciado, acusado e seu defensor, evitando-se a obrigatoriedade de participar de cerimônia degradante. Mas, há também outras correntes doutrinárias que afirmam que o dispositivo legal do CPP é plenamente constitucional.
Palavras-Chave: Investigação Criminal. Direito ao Silêncio. Condução Coercitiva. Direito Processual Penal. Constituição Federal brasileira de 1988.
Résumé:
On sait que l’article 260 du CPP permet qu’en cas de non-comparution injustifiée, l’accusé puisse être conduit de manière coercitive. Et, il y a des courants doctrinaux qui pensent qu’une telle conduite coercitive n’est plus admise, car la participation à l’interrogatoire doit être vérifiée par l’accusé, l’accusé et son défenseur, évitant l’obligation de participer à une cérémonie dégradante. Mais, il y a aussi d’autres courants doctrinaux qui prétendent que la disposition légale du CPP est pleinement constitutionnelle.
Mots-clés: Enquête criminelle. Droit au silence. Conduite coercitive. Droit de procédure pénale. Constitution fédérale brésilienne de 1988.
- Introdução.
A razão pela qual pode o Estado conduzir coercitivamente o acusado à audiência de instrução e julgamento, quando houver a necessidade de reconhecimento de pessoa, na produção de prova testemunhal (art. 260, segunda parte, CPP).
Evidentemente, o dispositivo não se aplica ao interrogatório[2], visto tratar-se de meio de defesa, a critério exclusivo da defesa.
Pacelli acredita que também não haver qualquer mácula na exigência de submissão ao conhecido bafômetro, na medida em que aludida providência – abstratamente – não afeta direitos subjetivos, ao menos na intensidade que devam merecer proteção. É certo que estamos nos referindo à medida em abstrato.
Pode ocorrer que determinada diligência nesse sentido, concretamente, venha implicar efetiva violação a direitos individuais, o que ocorreria, por exemplo, na exposição indevida da imagem de alguém à curiosidade pública, durante a realização do exame.
Essa, a exposição, positivamente, violaria direitos; a exigência de soprar o aparelho, por si só, não, a exposição, sim, violaria direitos; a exigência de soprar o aparelho, por si só, não.
Como também não violará direitos fundamentais a submissão a exame clínico para a comprovação da embriaguez, tal como previsto no art. 277 e art. 306, § 3º, da Lei nº 9.503/1997 (CTB), ainda que contra a vontade do agente. Evidentemente, dele não se poderá exigir colaboração, no que tange aos atos que só possam ser por ele praticados.
Segundo Eugênio Pacelli também acredita não haver qualquer mácula na exigência de submissão ao conhecido bafômetro, na medida em que aludida providência – abstratamente – não afeta direitos subjetivos, ao menos na intensidade que devam merecer proteção. É certo que estamos nos referindo à medida em abstrato.
Pode ocorrer que determinada diligência nesse sentido, concretamente, venha implicar efetiva violação a direitos individuais, o que ocorreria, por exemplo, na exposição indevida da imagem de alguém à curiosidade pública, durante a realização do exame. Essa, a exposição, sim, violaria direitos; a exigência de soprar o aparelho, por si só, não, a exposição, sim, violaria direitos; a exigência de soprar o aparelho, por si só, não.
Como também não violará direitos fundamentais a submissão a exame clínico para a comprovação da embriaguez, tal como previsto no art. 277 e art. 306, § 3º, da Lei nº 9.503/1997 (CTB), ainda que contra a vontade do agente. Evidentemente, deste não se poderá exigir colaboração, no que tange aos atos que só possam ser por ele praticados.
O direito brasileiro não contempla muitas hipóteses de intervenções corporais, embora esse conjunto de alternativas tenha sido ampliado com a Lei nº 12.654/2012, que instituiu a identificação genética (o tema foi submetido ao Plenário do Supremo Tribunal Federal para discussão sobre a constitucionalidade das Medidas no dia 23.5.2016, acórdão publicado em 11.10.2016), e com a Lei nº 12.760/2012, que, alterando diversos dispositivos da Lei nº 9.503/1997 (Código de Trânsito Brasileiro), prevê também a perícia médica para comprovação de alcoolemia, vedada, contudo, por ausência de previsão, a extração de sangue.
Destaque-se, igualmente, a edição da Resolução nº. 9, de 13 de abril de 2018, do Comitê Gestor da Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos, que dispôs sobre a padronização de procedimentos relativos à coleta compulsória de material biológico para fins de inclusão, armazenamento e manutenção dos perfis genéticos nos bancos de dados que compõem a Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos.
Quanto à recusa ao bafômetro: Ainda que não se reconheça a existência de qualquer direito subjetivo à recusa ao bafômetro, não se pode, por outro lado, autorizar a formação de convencimento judicial a partir unicamente da recusa.
E, não constituindo direito subjetivo, pode-se afirmar, em princípio, a validade abstrata da norma contida no art. 277, § 3º, Lei nº 9.503/1997, com redação dada pela Lei nº 12.760/2012, que impõe penalidades administrativas à recusa de submissão aos testes de alcoolemia previstos na lei (bafômetro, exames clínicos ou perícia técnica-médica).
O fato de prever o atual art. 306 CPP, conforme a Lei nº 9.503/1997, não só a constatação de índices técnicos de consumo de álcool (0,6 por litro de sangue ou 0,3 miligramas por litro de ar), mas também a existência de sinais de embriaguez ou perda da capacidade psicomotora (Lei nº 12.760/2012), não implica, por si só, a possibilidade de formação do convencimento judicial exclusivamente pela recusa aos testes.
Naturalmente, a alteração legislativa introduzida pela Lei nº 12.760/2012 terá consequências imediatas na comprovação da embriaguez, na medida em que ali se permite a aferição da perda de capacidade psicomotora por outros meios de prova que não o bafômetro, casos específicos da prova testemunhal, da perícia médica, de gravações de vídeos e imagens etc. (art. 306, § 2º, CTB).
Desta forma, a recusa ao bafômetro não impedirá a submissão ao exame clínico – intervenção passiva, pois – se a tempo e modo. Não se olvide ainda a disposição inserida no § 4º do art. 306, pela Lei nº 13.840/2019, dispondo que será possível empregar “qualquer aparelho homologado pelo Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia – INMETRO – para se determinar o previsto no caput”.
Deve atentar-se, contudo, que embora os sinais de embriaguez sejam suficientes para a caracterização do tipo penal, será necessário que a prova colhida aponte um grau mínimo de comprometimento da capacidade de direção ao agente, sobretudo porque o art. 306 não afastou os níveis técnicos de consumo alcoólico que o legislador considera necessários para a aludida perda da capacidade psicomotora (art. 306, § 1º, I, CTB).
Nas hipóteses de acidente de trânsito, a prova testemunhal poderá oferecer maior força de convencimento, sobretudo se restar induvidosa a culpa do agente. Tragicamente, há motoristas que são flagrados ao volante sem a menor condição de sequer permanecerem de pé, sem falar naqueles que não conseguem pronunciar qualquer frase com sentido de articulação da fala. Em tais situações, a prova da infração será mais facilmente obtida. Resta afirmar que a recusa, por si só, não pode fundamentar o juízo de condenação.
O silêncio e o convencimento judicial, nada há, portanto, que justifique qualquer convencimento judicial baseado no silêncio do acusado. Quaisquer que sejam as razões da escolha (quanto ao silêncio), o que importa é que o Estado não estará autorizado a emitir juízo de convencimento sobre esta. A prova penal há de ser provada e não pressuposta ou suposta.
[…] O parágrafo único do art. 186 do Código de Processo Penal é claro ao afirmar que o silêncio do investigado ou do acusado não poderá ser interpretado e, logicamente, valorado em prejuízo da defesa. Na hipótese, porém, o silêncio do paciente na fase extrajudicial foi apenas um dos elementos que levaram à convicção do órgão julgador, já que a sua condenação se baseou na prisão em flagrante, nos depoimentos da vítima e dos policiais que participaram da ocorrência. Destarte, ainda que o acórdão devesse omitir referência ao silêncio do acusado, não houve prejuízo ao réu, pois a sua condenação não está calcada apenas nessa circunstância, mas em fortes elementos de prova.
Portanto, a referida norma penal, na espécie, deve ser mitigada. De outra parte, não há se cogitar em ofensa à regra processual da inversão do ônus da prova[3], contida no art. 156 do Código de Processo Penal, visto que os álibis apontados pelo paciente foram apreciados pelas instâncias ordinárias, entretanto, revelaram-se frágeis e inverossímeis diante do harmônico contexto probatório constante nos autos. (Habeas Corpus nº 37.522-SP, STJ, 6ª Turma, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 3.3.2009, publicado no DJ em 23.3.2009).
Ressalva-se que quanto ao silêncio parcial: Nada impede que o acusado trilhe o caminho do silêncio apenas em relação a uma ou algumas das perguntas que lhe forem dirigidas. De fato, a lei assegura tal possibilidade, ao contrário do que ocorre no direito anglo-americano.
Eis que, caso o réu se dispuser a depor, por vontade própria, será ouvido como testemunha, sob o compromisso de dizer a verdade, podendo até vir a responder por crime de falso testemunho.
O problema desafiador no silêncio parcial é que a versão apresentada pelo acusado poderá perder completamente qualquer credibilidade. Pior. Poderá se voltar contra ele, dado que a inconsistência na narrativa, sobretudo, em relação ao tempo e lugar e demais circunstâncias relevantes dos fatos, poderá conduzir até mesmo a uma confissão, indireta que seja. Ou, por vias oblíquas.
O interrogatório, como se sabe, é meio de autodefesa. Que poderá ser ativa ou passiva. No segundo caso, o silêncio é o melhor caminho. A autodefesa ativa permite a contribuição efetiva do réu, pessoalmente, em seu favor. Os riscos, no entanto, existem. Confissões nem sempre são voluntárias; mas podem ser espontâneas, obtidas até mesmo contra a vontade originária na atuação defensiva.
Vide a jurisprudência, in litteris:
[…] O interrogatório, nos termos da novel legislação (Lei nº 10.792/2003), continua sendo, também, um meio de prova da defesa (arts. 185, § 2º, 186, caput e parágrafo único, do CPP), deixando apenas de ser ato personalíssimo do juiz (art. 188, do CPP), uma vez que oportuniza à acusação e ao advogado do interrogado a sugestão de esclarecimento de situação fática olvidada. A sistemática moderna não transformou, de forma alguma, o interrogado em testemunha.
Ao passo que esta não pode se manter silente, aquele, por seu turno, não pode ser induzido a se autoacusar (o silêncio, total ou parcial, é uma garantia do réu, ex vi art. 5º, LXIII, da CF/1988 e art. 186, parágrafo único, do CPP). Apesar de ser meio de prova da defesa, aquilo que é dito no interrogatório integra o material cognitivo por força do princípio da comunhão probatória. A participação de advogados dos corréus não tem amparo legal, visto que criaria uma forma de constrangimento para o interrogado (Precedentes desta Corte). Writ denegado (Habeas Corpus nº 100.792-RJ, STJ, 5ª Turma, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 28.5.2008, publicado no DJ em 30.6.2008).
O não comparecimento do acusado, depois da reforma procedimental promovida pela Lei nº 11.719/2008, que unificou a instrução, deixando o interrogatório do acusado como a última etapa da referida fase, provavelmente não se discutirá, ao menos na mesma intensidade, a questão relativa ao não comparecimento dele para o ato.
Esclareça-se ainda que, desde a Constituição Federal brasileira de 1988, não há qualquer obrigatoriedade de comparecimento do acusado ao ato de interrogatório.
Portanto, o direito ao silêncio significa livre escolha quanto ao exercício ou não de meio específico de prova da defesa. Não se pode, por isso mesmo, exigir que o réu compareça em juízo, unicamente para ali manifestar seu desejo de não participação.
Tendo sido este devidamente citado pessoalmente, o simples não comparecimento, em princípio, implicará desinteresse na instrução, o que, de modo algum, poderá autorizar o Estado a adotar providências de natureza coercitivas contra ele.
Por outro viés, comprovando-se depois que o acusado esteve impedido de participar do ato, deverá o juiz reabrir tal oportunidade, já que o acusado tem direito a ser ouvido pelo juiz da causa. Evidentemente, em casos que tais, deve o juiz acautelar-se antes de sentenciar o processo, o que poderá ocorrer em razão da unidade da instrução e previsão legal de oferecimento de alegações finais e de prolação da sentença na própria audiência.
A consulta ao advogado, portanto, sob a fé de seu grau, poderá evitar transtornos à atividade jurisdicional. Sendo justificado o impedimento, a sentença assim proferida será nula, por violação à ampla defesa.
Nada impede, porém, que se realize a instrução, sem o interrogatório. Certamente que, em tais situações, também poderá haver risco ao processo; contudo, nessa situação, como não se trata de ato que somente pode ser realizado com a presença do réu, a nulidade do processo dependerá da prova do prejuízo efetivo pela não participação na audiência de instrução.
O direito ao silêncio e testemunhas, frequentemente no Brasil a intimação de pessoas sejam estas investigadas ou não para participar de investigações, sem que se atribua a elas qualquer condição prévia e específica, tal como ocorre nas Comissões Parlamentares de Inquérito e também em inquéritos policiais.
Sublinhe-se que não é a qualificação técnica que se lhes dá o órgão investigante (testemunha, declarante, informante etc.), mas a condição e a posição pessoal do depoente diante dos fatos, sob a perspectiva de uma eventual responsabilidade penal que se queira ou que se lhe possa atribuir, mesmo em tese.
O dever de depoimento e, assim, de verdade, imposto a todos aqueles que devam depor na condição de testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete (e, incluímos nós, o assistente técnico da perícia), somente abrange as pessoas cujo conhecimento acerca dos fatos seja exterior à responsabilidade penal deles decorrentes.
Evidentemente, segundo Pacelli, os autores, coautores e partícipes não podem ser arrolados como testemunhas, na medida das respectivas responsabilidades pelos crimes.
E se o forem, poderão se calar sobre as imputações que eventualmente se lhes recaiam, devendo a autoridade judiciária, inclusive, alertá-las sobre essa possibilidade. Não é incomum a escolha de determinado autor ou partícipe para constar como testemunha, com o objetivo de fortalecimento da acusação.
E, sequer estamos refere-se, às hipóteses em que legalmente cabível a delação premiada[4]. E mesmo em tais situações, da delação premiada, é bem de ver que a pessoa ouvida, ainda quando diminuída ou afastada a sua punibilidade, não atua na condição de testemunha, mas de réu.
A delação constitui exercício de autodefesa ativa, dado que o réu não exerce ali o direito ao silêncio; ao contrário, confessa os fatos e aponta outros culpados.
Sublinhe-se apenas que o juiz deve estar atento ao conteúdo dos depoimentos prestados na delação, já que essa pode ser uma alternativa utilizada unicamente para se afastar a responsabilidade penal do delator, que, inclusive, poderá ser maior e mais significativa que aquela dos delatados.
Por isso, independentemente da posição em que se encontrar no processo, pode a pessoa inquirida manifestar o seu direito ao silêncio sobre fatos que possam implicar a sua responsabilidade penal.
Obviamente, há que se examinar tais questões em cada caso concreto, a fim de se aferir tratar-se de direito ao silêncio ou de silêncio proibido pelo dever de depor (art. 203, CPP).
Um dos casos mais frequentes ocorre nas citadas CPIs no Congresso Nacional. Onde, a pessoa é intimada para depoimento, sem qualquer esclarecimento acerca da condição em que será ouvida (investigado ou testemunha). Por isso, tem sido frequente a impetração de habeas corpus preventivo[5] ou de mandado de segurança, com o objetivo de legitimar o exercício do silêncio na Comissão, acerca de fatos que podem incriminar o depoente.
A Lei nº 12.654, de 28 de maio de 2012, com vigência prevista para 180 (cento e oitenta) dias após sua publicação, trouxe importantíssima alteração no quadro das intervenções corporais na legislação brasileira, com modificações também ulteriores pela Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019.
Outrora eram limitadas aos exames grafotécnicos, ao teste de alcoolemia (bafômetro), ao reconhecimento de pessoa e à identificação datiloscópica e fotográfica, introduziu-se, então, a coleta de material genético, para fins de identificação da autoria por esse meio.
A via escolhida foi a alteração da Lei nº 12.037/2009, que cuida da identificação criminal. Digna de registro, também aqui, a ampliação dos testes de alcoolemia trazidos pela Lei nº 12.760/2012, que, ao lado do bafômetro, prevê a perícia médica e exames clínicos (art. 277, Lei nº 9.503/1997, com redação dada pela Lei nº 12.760/2012).
Referida legislação prevê duas espécies distintas de coleta de material genético, a saber: (a) a primeira, para fins tipicamente investigatórios, submetida ao atendimento de importantes requisitos, conforme adiante veremos; e (b) a segunda, imposta coercitivamente (obrigatoriamente) a todos aqueles que tiverem sido condenados (com trânsito em julgado) por crimes praticados com violência grave. Se não vemos maiores problemas na primeira espécie probatória, desde que atendidos os mencionados e inafastáveis requisitos legais, já em relação à segunda modalidade, não há como não guardarmos reservas quanto ao seu campo de validade.
Vejamos, então, o conteúdo normativo das novas regras, iniciando com aquela do art. 3º, IV, c/c art. 5º, parágrafo único, Lei nº 12.037/2009, com redação dada pela Lei nº 12.654/2012.
A identificação bem como a coleta de material genético para fins de investigação encontra seu fundamento de validade, primeiro, na Constituição da República, art. 5º, XII, no qual se declina a extensão da proteção de direitos individuais inclusive para fins de processo criminal, e se encontra, claramente, uma regra de exceção, constitucionalmente adequada, é dizer: a cláusula da reserva da jurisdição[6], para o controle de legalidade do tangenciamento dos direitos ali consagrados expressamente (intimidade, privacidade e imagem, sobretudo).
Nesse sentido, pode-se concluir que o constituinte pátrio acatou a possibilidade de previsão legal de intervenções estatais no âmbito da vida privada, se e desde que: (a) atendido o princípio da legalidade; (b) a medida se fizesse necessária, em uma relação de meio a fim (prova indispensável para a apuração da autoria); (c) a diligência probatória não seja demasiado invasiva, ao menos em níveis superiores àqueles mencionados no próprio texto constitucional (violabilidade de domicílio, de comunicações telefônicas e de dados etc.); e (d) tudo isso a ser examinado, fundamentadamente, por ordem judicial.
Não há, nesse caso, qualquer violação ao tantas vezes reclamado nemo tenetur se detegere. Desnecessário repetir o que já lançamos ao exame do aludido princípio, em abordagem feita nesse mesmo art. 186 do CPP, aos quais remetemos o leitor. E, no particular, a Lei nº 12.654/2012 se acomoda perfeitamente às exigências constitucionais do controle judicial das intervenções na vida privada.
Legalmente, segundo fundamento de validade da medida, tem-se que referida modalidade de identificação não ultrapassa os limites do devido respeito à dignidade corporal e ao princípio da não culpabilidade, tal como se encontra disposto na Lei nº 12.037/2009, relativamente às já previstas e aceitas identificações datiloscópicas e fotográficas. A coleta de saliva, por exemplo, meio muito utilizado no direito comparado, não produz um constrangimento ou uma violação corporal superior à corriqueira coleta de impressões digitais.
Enfim em derradeira consideração, ocorrendo a recusa ao teste do bafômetro impede a produção da prova, na medida em que a pessoa não poderá ser coagida ou compelida a fazer o exame, trata-se de comportamento há de ser ativo, já na identificação genética isso não corre.
A recusa, com efeito, não impedirá a coleta forçada do material genético, feitas as ponderações e observações antes mencionadas, sobretudo no que toca ao grau de invasão corporal do meio utilizado (por isso, falamos em saliva, fio de cabelo etc.).
Do mesmo modo que a submissão à perícia médica ou ao exame clínico dos quais não se exige qualquer comportamento ativo do agente, nos termos do art. 277, Lei nº 9.503/1997, com redação dada pela Lei nº 12.760/2012, nada tem de inconstitucional, abstratamente. A segunda modalidade de identificação genética, conduzida pela inclusão do art. 9º-A, na Lei de Execuções Penais (Lei nº 7.210/1984), é bem mais complexa e problemática.
É que ela institui a obrigatoriedade de recolhimento compulsório de material genético de todos aqueles que estejam em cumprimento de pena pela prática de crimes praticados com grave violência.
A finalidade, ainda que não expressamente declarada, seria a de facilitação da descoberta de futuros delitos para os quais, tendo sido deixados vestígios no local do crime, seja possível a identificação de autoria por meio da comparação de material genético. Institui-se, para tanto e então, um Cadastro ou Banco Geral de material genético de condenados (naqueles crimes já apontados).
Relembre-se que a Lei nº 13.964/2019 previu que a recusa à realização dessa coleta de dados caracteriza-se como falta grave, nos termos do § 8º do art. 9-A c/c art. 50, VII, ambos incorporados à Lei nº 7.210/1984.
A medida, em princípio, pode até comportar uma interpretação conforme a Constituição, para fins de redução necessária do alcance da norma. E, a referência legislativa aos crimes praticados mediante grave violência não parece suficiente para acautelar os receios do legislador quanto a possíveis reiterações criminosas de idêntica natureza.
Há, com efeito, nos homicídios passionais, praticados com grave violência, mas que não indicam razões suficientes para as preocupações e para a justificativa de inclusão no citado Cadastro Geral de condenados. E, nem todos os crimes dessa natureza costumam deixar vestígios de autoria, ou seja, nem sempre o agente deixa no local material genético suficiente e passível de exame. Já por isso, a ampla extensão dada pela Lei nº 12.654/2012 ao Cadastro Geral pode se revelar desnecessária e abusiva.
É verdade que a legislação contemporânea já autoriza a manutenção temporária do registro de condenações, para fins de antecedentes criminais. No entanto, a diferença de fundamentação para as duas espécies de registros (o genético e o da condenação) é rica em consequências no que toca à legitimidade e à validade da nova regra.
Percebe-se que um fato é a manutenção de registros para fins de controle de política criminal e, inclusive, para justificar o agravamento de apenação em caso de futura aplicação de pena. Outro fato, muito diferente, é a instituição de um banco genético de condenados com o propósito indisfarçável de facilitar futuras investigações.
E, eis aqui o busilis. A existência do Cadastro Geral pode prestar-se a uma perigosa inversão de rumos da investigação, partindo-se das informações disponíveis para o início das investigações, ao invés de se iniciar a busca de elementos informativos pelos meios e fontes de prova disponíveis a cada caso concreto.
Em síntese, corre-se o risco de se partir do autor do crime passado para a identificação do crime presente. Assim, dificilmente se deixará de arranhar o princípio da não culpabilidade.
Há outra questão. Informa a vigente Constituição da República que aquele civilmente identificado não se submeterá à identificação criminal, conforme dispuser a lei. Eis que, tem-se aqui, à evidência, regra geral no sentido de se reservar apenas às situações especiais outras formas de identificação daquele já civilmente identificado. Isto é, a regra seria a suficiência da identificação civil; a criminal, ou outra, deverá ser excepcional e constitucionalmente adequada.
E, conforme a boa doutrina ensina, algumas infrações penais, segundo os dados disponíveis no percurso das estatísticas de criminalidade, produzem alarmes suficientes para eventual receio de reiteração criminosa. É o caso dos crimes contra a dignidade sexual, por exemplo.
Via de regra, pode-se recolher algum material genético do agente do delito, diante das singularidades presentes em sua execução. Desta forma, o cadastro genético para tais delitos não nos soa demasiado ou abusivo, desde que somente se tenha acesso a ele nos casos em que o delito tenha efetivamente deixado vestígios, para fins de comparação.
Caso a infração não deixar vestígios, o acesso ao banco ou cadastro, sem outros elementos de prova, incorrerá naquele mesmo risco já apontado: o de partir-se da presunção de culpa daquele que já tenha sido condenado.
De qualquer maneira, registre-se a preocupação inserida pela Lei nº 13.964/2019 ao § 3º do art. 9-A da Lei nº 7.210/1984, dispondo que se deve viabilizar ao “titular de dados genéticos o acesso aos seus dados constantes nos bancos de perfis genéticos, bem como a todos os documentos da cadeia de custódia que gerou esse dado, de maneira que possa ser contraditado pela defesa”.
Pacelli entende, ainda, que o direito ao silêncio e a condução coercitiva seja impossível para fins de interrogatório. Afinal, o dispositivo legal fora ab-rogado pela Constituição Federal da República, desde da década de oitenta do século passado.
Continua vigente e válida a exigência de comparecimento do acusado para fins de produção testemunhal ou mesmo para a inquirição do ofendido. E, em tais situações, e em inúmeras outras oportunidades, não haverá qualquer violação a direito fundamental do réu e muitos menos a garantia do direito ao silêncio. Cumpre identificar a diferença entre a controle da qualidade da prova oral (interrogatório do acusado) e a garantia de assegurada a ele a proteção de sua consciência moral e de sua integridade física e psíquica.
O que é muito diferente, é impedir a produção de uma prova que não causa a menor afetação aos direitos fundamentais da pessoa, como parece ser o caso de reconhecimento de pessoa.
O reconhecimento de pessoa é meio de prova absolutamente inatacável. Ao mais, remetemos o Leitor aos comentários ao art. 185 e seguintes, CPP. Como dito, ninguém é obrigado a produzir qualquer prova especialmente em seu desfavor. A prova de eventual prática criminosa é atribuição exclusiva da acusação.
A questão tem gerado muitos debates, especialmente após o ajuizamento da ADPF 395 em que se postula seja reconhecida a não recepção parcial do art. 260 do CPP, na parte em que permite a condução coercitiva para a realização de interrogatórios, excluindo do dispositivo a expressão “interrogatório”, de modo que o artigo fique assim redigido em conformação constitucional: “Art. 260. Se o acusado não atender à intimação para […] reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença”.
Em junho de 2018, no bojo das ADPFs 395 e 444, o Plenário do STF, por maioria, ratificando essa nossa posição, declarou não ter havido recepção da expressão “para o interrogatório” constante no art. 260 do CPP, bem assim a incompatibilidade com a Constituição Federal da condução coercitiva de investigados ou de réus para interrogatório, sob pena de responsabilidades civil, disciplinar e penal do agente ou da autoridade que a autorizar, bem como a ilicitude das provas obtidas.
Registramos que, no ano de 2020, o STJ entendeu que, no caso de adolescente que pratica ato infracional, seria obrigatória sua presença na chamada audiência de apresentação ao juízo competente, conforme preceitua o art. 187 do ECA. Nos demais casos, não poderia haver a condução (Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.886.148-MG, 5ª Turma, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJ de 21.9.2020).
O que se deve verificar é que, no ordenamento jurídico pátrio, podem-se antever duas “espécies” de condução coercitiva: a primeira, a condução para a prática de algum ato processual tal como medida de coação; a segunda, como medida cautelar inominada[7] – voltada, assim, para neutralizar o risco para a garantia à ordem pública, à instrução criminal ou para assegurar a aplicação penal –, como uma decorrência do princípio da proporcionalidade que é subprincípio da necessidade, para evitar a decretação de alguma medida cautelar mais gravosa.
Realmente, para a primeira forma de condução coercitiva para a prática de algum ato processual –, decorre do poder de coação assegurado ao Estado, no exercício de suas atividades de investigação e apuração das infrações penais.
A segunda hipótese de condução coercitiva prevista no ordenamento jurídico – que também extrai sua cobertura legal do art. 260 do CPP, mas em aplicação conjunta com o princípio constitucional da proporcionalidade/subprincípio da necessidade (interpretação sistêmica[8]) – é a que possui natureza cautelar – ou seja, com o fito de neutralizar riscos para o processo, mais especificamente risco para a aplicação da lei penal, para a investigação ou instrução criminal e para a ordem pública. Em geral, a condução coercitiva é decretada para evitar que os investigados sobretudo destruam provas.
Assim, a condução coercitiva precisa ser compreendida como uma medida cautelar menos gravosa que a prisão temporária ou a prisão preventiva. Quando devidamente fundamentada e justificada diante do caso concreto (e sempre excepcionalmente, frise-se), a condução coercitiva traz em seu bojo, de forma equilibrada (sem excessos, nem deficiências), a garantia da eficácia de demais medidas cautelares[9] que estejam sendo realizadas concomitantemente sem interferir de forma injustificada (para além do tempo necessário) na restrição da liberdade daquela pessoa que for conduzida coercitivamente.
Noutras palavras, significa que, mesmo sem previsão legal expressa, mas sempre mediante a devida e prévia justificação da necessidade e adequação pelo juiz competente, a condução coercitiva é um meio de garantir eficácia (não prejuízos) à produção de provas no processo penal sem que se lance mão, para tanto, de uma restrição de liberdade muito mais gravosa, como é o caso de prisões temporárias ou preventivas.
Nesses termos, a condução coercitiva precisa ser compreendida sistemicamente como uma medida decorrente do poder geral de cautela que é conferido aos membros do Poder Judiciário – inclusive o brasileiro – pela compreensão sistêmica dos princípios orientadores da atuação jurisdicional, sem malferir a legalidade estrita.
Pacelli acredita em modo diverso, ainda que parcialmente. Primeiramente, a admissibilidade de um poder geral de cautela ao juiz criminal, para além dos limites expressos na Lei, não nos parece boa política criminal, embora se possa admitir o seu manejo em determinadas situações, para que, de acordo com as condições pessoais do agente e com sua expressa concordância, seja substituída uma medida cautelar legal por outra, menos onerosa.
Contudo, mesmo in casu, nos casos de alternativas mais favoráveis ao réu (em comparação a uma prisão temporária, por exemplo), ainda assim a condução coercitiva à presença da autoridade judicial para a não interferência em diligências realizadas concomitantemente não parece ser o melhor caminho. Primeiro porque a cautelar não se prestaria à tomada de depoimento do conduzido, sendo outra sua justificativa. No entanto, é exatamente o contrário que vem ocorrendo.
Em segundo lugar, porque, se o propósito da medida for o de assegurar o sucesso de outra providência simultânea, que poderia ser prejudicada pela presença do acusado (destruição de provas, por exemplo), bastaria a sua retenção no local em que for encontrado, até a ultimação das medidas em curso. E essa retenção, embora não prevista em Lei, tanto quanto a condução coercitiva, reduziria significativamente o inevitável constrangimento causado por esta última providência, e, de outro lado, atenderia perfeitamente às finalidades cautelares do ato.
Conduzir coercitivamente o investigado para não prestar declarações é mais oneroso que mantê-lo afastado de qualquer intervenção por retenção coercitiva. De todo modo, é inadmissível a tomada de depoimento de quem é conduzido coercitivamente para outra finalidade que não essa, proibida constitucionalmente.
Analisando a ordem judicial e a condução coercitiva, esta é medida de evidente que impõe tangenciamento da liberdade individual. E, é assim para a testemunha e, também, para qualquer pessoa que tenha que atuar no processo penal.
Por isso, somente a autoridade judiciária pode determinar a adoção da providência, devendo constar do mandado judicial os requisitos do art. 352, do CPP, que cuida do mandado de citação.
E, dentre aqueles mais importantes (requisitos do mandado), impõe-se a completa identificação do processo e da finalidade do ato (fins específicos de reconhecimento de pessoa). Aliás, frise-se que a finalidade de qualquer mandado judicial é inerente à autoridade do magistrado que o mandou expedir. Daí, indispensável a descrição dos fins a que se destina o mandado, como reprodução fiel da decisão judicial. Ainda que muito resumidamente, é claro.
A finalidade do ato, enfim, deve ser lida pelo executor do mandado, com o objetivo de evitar-se a coerção ou o uso da força, conforme seja a escolha daquele que será (ou não) conduzido.
A condução coercitiva de investigados e de testemunhas é constitucional apesar de significar uma restrição de liberdade de locomoção e, pode ser cumprida segundo os termos do artigo 260 do Código de Processo Penal, mediante intimação prévia e havendo descumprimento, pode ainda gerar a interposição de medidas tais como prisões cautelares bem como outras.
Lembremos que a condução coercitiva é decorrente do poder geral de cautela[10] do julgador e, mesmo, no direito comparado nos EUA, por exemplo, onde está positivado o direito ao silêncio garantido pela quinta emenda da constituição norte-americana (há mais de dois séculos), vige o direito do investigado não produzir provas contra si mesmo, porém, não abarca a possibilidade de destruição de provas e de criar obstáculos à Justiça ou à Polícia.
Enfim, definitivamente o Estado tem o direito fundamental de fazer valer seu sistema penal para evitar que tanto investigados como testemunhas criem estratégias para se furtar à aplicação da lei.
Outro fator relevante é a possibilidade segundo o artigo 319 CPP serem adotadas medidas cautelares diversas da prisão, tais como proibir o acesso ou frequência a certos lugares, ou mesmo, a manutenção de contato do investigado com pessoa determinada porque tais restrições podem evitar embaraços indevidos para a adequada investigação e para a ação penal.
Não se pode entender que a condução coercitiva seja forma de prisão, posto que atue apenas momentaneamente, e em geral, se revela ineficaz, pode-se, enfim, adotar-se outras medidas tais como prisão preventiva, temporária e, que também requerem situações concretas para fundamentar a restrição de liberdade bem como o preenchimento de requisitos específicos que justifiquem o ato gravoso aos direitos fundamentais.
Evidentemente, que a condução coercitiva não se esgota em si mesma, e visa aos fins previstos na legislação e, no caso de investigados, acusados ou testemunhas. Tais agentes não representam apenas simples objetos de investigação ou processo penal, são também sujeitos de direitos que podem manter o silêncio, nem podem ser tratados como se fossem culpados e, podem se recusar participar de procedimentos que eventualmente lhe acarretem prejuízos. Posto que não sejam obrigados a cooperar com a apuração dos fatos criminosos.
Conclui-se, então, que a condução coercitiva para interrogatório, exceto aquela promovida para fins de reconhecimento ou qualificação criminal seria incompatível com a Constituição, posto que viole o direito à não autoincriminação e, ainda, a presunção de inocência[11].
O artigo 260 do CPP é compatível com a vigente Constituição Federal e, se deve coibir eventuais abusos por descumprimento da lei instrumental que devem ser resolvidos conforme a ordem jurídica, mas não pode impedir a vigência do procedimento de condução coercitiva.
No dia 14.06.2018 por seis votos a cinco, o STF impediu as conduções coercitivas para interrogatório. Não obstante o expediente tenha sido usado por 227 (duzentos e vinte e sete) vezes na Operação Lava-Jato. A decisão confirma o entendimento individual do relator do caso, Ministro Gilmar Mendes, que concedeu, em dezembro do ano passado, liminar para impedir as conduções, por entender que a medida é inconstitucional. Também ficou decido que as conduções que já foram realizadas antes do julgamento não serão anuladas.
A Suprema Corte julgou definitivamente duas ações protocoladas pelo PT e pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A legenda e a OAB alegaram que a condução coercitiva de investigados, prevista no Código de Processo Penal, não é compatível com a liberdade de ir e vir garantida pela Constituição. Com a decisão, juízes de todo o país estão impedidos de autorizar conduções coercitivas para fins de interrogatório.
As ações foram protocoladas meses depois de o juiz federal Sérgio Moro ter autorizado a condução do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para prestar depoimento na Polícia Federal, durante as investigações da Operação Lava Jato. O instrumento da condução coercitiva foi usado 227 vezes pela força-tarefa da operação em Curitiba desde o início das investigações.
Votaram contra as conduções os Ministros Gilmar Mendes, Rosa Weber, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio e Celso de Mello. Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, e a presidente, Cármen Lúcia, se manifestam a favor.
O julgamento começou na semana passada e durou três sessões. Na sessão, Ricardo Lewandowski votou pela inconstitucionalidade[12] das conduções e disse que tradição garantista do STF não é novidade e sempre foi construída a partir de casos que envolviam pessoas pobres.
O tema relacionado com o artigo 10 da Lei de Abuso de Autoridade ressuscita o instituto da condução coercitiva, que já fora debatido por Excelso Pretório nas ADPFs 395 e 444, nas quais se declarou que a condução coercitiva de réu ou investigado para interrogatório, constante no artigo 260 do CPP que não teria sido recepcionado pela Constituição brasileira vigente[13].
Há várias ponderações a serem realizadas, a primeira se refere ao sujeito passivo mediato do delito, a saber, o investigado e testemunha. Afinal, a determinação do sujeito passivo destoa das decisões entabuladas tanto pela doutrina como pela jurisprudência, principalmente, das ADPFs já retromencionadas.
A segunda ponderação se refere diretamente sobre a permissibilidade de realizar a condução coercitiva do suspeito que, por consequência, pode ser investigado, indiciado, denunciado e acusado. Quando se verticaliza-se a análise do conceito jurídico indeterminado.
A expressão “manifestamente incabida” devido sua farta carga axiológica admite interpretação muito ampla com base no caso concreto, bastando se demonstrar a imprescindibilidade da medida, principalmente quando os valores constitucionais tais como a vida, liberdade e segurança pública estejam permeando, e ipso facto, tornando-se legal e cabida sua realização. Atente-se ainda a expressão ” sem prévia intimação de comparecimento ao juízo”.
Conceitos jurídicos indeterminados: Conferem ao operador do direito, na análise e valoração do contexto social na resolução do caso concreto, o dever de sua concretização, dando contornos aos conceitos indeterminados. Cristaliza a superação do formalismo jurídico em busca da sua valoração ética. (apud COLAÇO, FIGUEIREDO, Luciano; FIGUEIREDO, Roberto. Direito Civil: Parte Geral. 5ª Ed. ed. rev. e atual. Salvador: JusPodivm, 2015. p.111.).
O backlash é uma reação adversa não-desejada à atuação judicial. Para ser mais preciso, é, literalmente, um contra-ataque político ao resultado de uma deliberação judicial.
- Desenvolvimento
A partir de 03 de janeiro de 2020 passou estar em vigência a Lei de Abuso de Autoridade e dentre tantas previsões a referida lei há a punição de agentes públicos que decretar condução coercitiva de testemunha ou de investigado antes de intimação judicial, bem como promover escuta telefônica ou quebrar segredo de justiça sem prévia autorização judicial, e divulgar gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, e continuar interrogando suspeito que tenha decidir permanecer calado[14] ou ainda que tenha solicitado a assistência de advogado, interrogar à noite, quando não for caso de flagrante delito e, ainda procrastinar a investigação sem a devida justificativa.
A respeito da Lei 13.869/2019 cumpre apontar que não existe crime culposo na lei; não há reclusão; todos os preceitos secundários possuem detenção e multa; nem todos os delitos são considerados infrações de menor potencial ofensivo; as ações são públicas incondicionadas.
A antiga lei de abuso de autoridade (Lei 4898/1965) não previa nenhum tipo penal semelhante. Na medida em que a CRFB/88 e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos asseguram ao acusado o direito de não produzir prova contra si mesmo, tratando o interrogatório como meio de autodefesa, portanto, reputa-se ilegal a expedição de mandado de condução coercitiva objetivando a consecução das seguintes finalidades:
- a) prestar declarações perante CPI;
- b) comparecer à audiência uma de instrução e julgamento;
- c) participar de reconstituição simulada dos fatos;
- d) fazer exame pericial de dosagem alcoólica;
- e) prestas declarações ao delegado de polícia;
- f) participar de acareação[15];
A propósito, levando-se em consideração o princípio do nemo tenetur se detegere, o plenário do STF, por maioria julgou procedente o pedido formulado nas ADPFs 395/DF e 444/DF para decretar a não recepção da expressão “para o interrogatório” constante do art. 260 do CPP.
Cogita-se se seria crime a condução coercitiva da vítima? A resposta é não, pois o preceito primário do tipo elenca apenas testemunhas e investigado. Elemento normativo corresponde ao “manifestamente descabida”. Trata-se, novamente, de elemento extremamente aberto e subjetivo que, infelizmente, acarreta insegurança jurídica, por depender de juízo de valor na interpretação.
Essa questão em comento ficou bastante em evidência após a conduta coercitiva realizada no caso do ex-Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, em 4/3/2016. Posteriormente, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar as ADPFs 395 e 444, decidiu que não é compatível com a Constituição da República a condução coercitiva do investigado ou do réu para interrogatório no âmbito da investigação ou da ação penal.
No caso específico do tipo penal do artigo 10, o crime pode ser cometido quando houver condução coercitiva de testemunha (ou investigado) manifestamente descabida ou, quando a testemunha ou o investigado não tenham sido previamente intimados para comparecerem espontaneamente ao juízo.
Assim, no caso em que seja decretada condução coercitiva de investigado para interrogatório, haveria a prática do crime, desde que presente a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal (aplicável em todos os crimes da lei, como vimos anteriormente).
O sujeito ativo pode ser a autoridade judicial, mas também o Delegado de Polícia ou o Membro do Ministério Público, eis que a primeira parte prevê a decretação de condução coercitiva manifestamente descabida, o que pode obviamente ocorrer no curso da investigação. Esse crime também permite a suspensão condicional do processo, uma vez que a pena mínima é de 1 (um) ano.
O texto constitucional federal vigente no Brasil não é explícito quanto à existência ou não de um princípio da não produção de provas contra si mesmo, posto que o artigo quinto, inciso LXIII apenas prevê o direito de o preso permanecer calado.
No entanto, a doutrina e a jurisprudência tendem a ampliar a interpretação desse artigo, abraçando outras manifestações do princípio, indo além do próprio direito ao silêncio.
O Ministro Celso de Mello reprisou e parafraseou em sete diferentes votos, a seguinte afirmação, que resumo a posição de que o princípio e também o direito ao silêncio, seja oponível a quaisquer agentes estatais qualquer que seja a natureza do procedimento (penal, administrativo, legislativo e, etc.).
In litteris:
“(…) esse direito, na realidade, é plenamente oponível ao Estado, a qualquer de seus Poderes e aos seus respectivos agentes e órgãos. Atua, nesse sentido, como poderoso fator de limitação das próprias atividades de investigação e de persecução desenvolvidas pelo Poder Público (Polícia Judiciária, Ministério Público, Juízes, Tribunais e Comissões Parlamentares de Inquérito, p. ex.)”.
Em entendimento similar foi nos casos da CPI do sistema financeiro e a CPI da ocupação de terras públicas na Amazônia.
“Se, conforme o art. 58, §3º, da Constituição, as comissões parlamentares de inquérito detêm o poder instrutório das autoridades judiciais – e não maior que o dessas – a elas se poderão opor os mesmos limites formais e substanciais oponíveis aos juízes, dentre os quais os derivados das garantias constitucionais contra a autoincriminação, que tem sua manifestação mais eloquente no direito ao silêncio dos acusados.” (sic.)
Conclui-se, portanto, que o entendimento do STF, expresso em três dos acórdãos analisados, é o de que o “princípio da não produção de provas contra si mesmo” poderia ser invocado a qualquer momento, sem necessidade de qualquer aval do judiciário, havendo uma atenção especial a partir do inquérito policial, desde quando o indivíduo se encontrar sob qualquer forma de custódia.
Na Constituição Federal, estabelece-se expressamente que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado (…)”. Nasce, então, para o Estado, por meio de seus órgãos, o dever de informar ao menos o preso sobre seu “direito ao silêncio”. Mas, o que acontece quando o Estado não cumpre com seu dever de informar?
Observam-se duas linhas argumentativas opostas no STF sobre esse ponto:
- A) Primeira: a falta de advertência sobre o “direito ao silêncio” ou sobre o “princípio da não produção de provas contra si” gera nulidade apenas se houver comprovação do prejuízo para a defesa;
- B) Segunda: basta a ausência de advertência para se gerar nulidade, sem necessitar comprovar prejuízo, por fazer prova ilícita[16].
Assinalemos as tendências jurisprudenciais da Suprema Corte brasileira.
Primeira tendência do STF explicita que a falta de advertência gera nulidade apenas se houver comprovação do prejuízo para a defesa. Quanto à primeira tendência, em alguns julgados considerou-se que, como o interrogatório é meio de autodefesa – e os réus podem querer manifestar sua versão dos fatos, contrariando as acusações que lhes são imputadas -, seria necessária a demonstração de prejuízo advindo da ausência de advertência, já que por si só ela não violaria a ampla defesa e o contraditório.
Assim, pela instrumentalidade das formas, não se poderia anular automaticamente todo o processo penal, ou o interrogatório ou depoimento, sem a demonstração de prejuízo ou constrangimento ilegal. Para o Min. Luiz Fux e para os demais, que votaram nos termos do relator, no caso “Militares corruptos”, “só há nulidade quando a própria finalidade pela qual a forma foi instituída estiver comprometida pelo vício”.
O Ministro Sepúlveda Pertence, em voto que foi acompanhado por unanimidade pelos demais ministros, acredita que na determinação do momento a partir do qual a informação do direito ao silêncio se faz exigível, “não pode o aplicador da Constituição se atrelar a abstrações procedimentais”, apenas considerando o início do interrogatório formal.
O ex-ministro usou diversas fontes de doutrina para defender que a informação deve ocorrer desde quando o indivíduo está sob custódia ou de alguma forma se encontre significativamente privado de sua liberdade de locomoção, pois para que a instrução do direito ao silêncio possa cumprir com seus objetivos é necessário que ocorra o quanto antes.
Afirmou que interrogatório não é só o ato formal previsto nas leis processuais, mas a oitiva, formal ou informal do acusado, ainda que fora do âmbito processual penal.
Pondera-se, então, que nem a nulidade absoluta, mesmo de fonte constitucional, pode fugir à exigência elementar da verificação de prejuízo.
Entretanto, há que se questionar como se daria essa comprovação do prejuízo pela ausência de informação sobre o “princípio da não produção de provas contra si mesmo” ou o “direito ao silêncio”.
No limite, só se pode saber com certeza que não há prejuízo caso, ainda que não tenha sido informado, o titular do direito exerceu-o, por exemplo, permanecendo calado ou se recusando a participar da reprodução simulada do fato delituoso, como no caso “Reprodução simulada”.
Nas demais situações, acredito que o prejuízo deva ser presumido pelo Tribunal, porque, para mim, ao contrário do que foi defendido, afirmando-se que houve uma opção pela intervenção ativa no interrogatório e que o paciente se defendeu, essa escolha está viciada pois se desconhecia a segunda opção, pela não autoincriminação. Creio que a verdadeira opção só é feita quando se conhecem as alternativas, o que não ocorre quando falta a advertência.
Segunda tendência do STF aponta que basta a ausência de advertência para se gerar nulidade, por fazer prova ilícita[17].
Para essa segunda tendência (grifo nosso) do Tribunal, foi defendido que é expresso na Constituição que o preso deve ser informado pela autoridade policial ou judicial da faculdade de manter-se calado, sendo, portanto, uma garantia processual penal que impõe a obrigação ao próprio Poder Público.
Afinal, a informação oportuna a respeito do direito assegura a escolha entre o silêncio e a intervenção ativa. A falta de advertência sobre o direito, no momento em que o dever de informação se impõe, então, tornaria ilícita a prova que leve à autoincriminação, ainda que não se demonstrasse prejuízo.
No caso “Contravenção em jogo do bicho[18]”, por exemplo, Ellen Gracie, conduzindo os demais ministros por unanimidade, afirmou que, sem que o paciente tenha sido advertido sobre o direito ao silêncio antes de prestar suas declarações para o Juízo, seria nula a audiência preliminar do Juizado Especial Criminal (JECrim).
“Ementa: Não tendo sido o acusado informado do seu direito ao silêncio pelo Juízo (art. 5º, LXIII), a audiência realizada, que se restringiu a sua oitiva, é nula”.
É interessante notar, que, nesse caso, mesmo tendo sido o paciente acompanhado por defensor durante seu depoimento, o Tribunal determinou o desentranhamento das provas dos autos, por considerá-las ilícitas sem a devida informação sobre o direito.
Verifica-se que ocorreu decisão oposta foi tomada no caso “Atentado violento ao pudor[19]”, em que o Tribunal, por unanimidade, acompanhando o voto do relator o Ministro Nelson Jobim, julgou que a falta de informação ao preso sobre seus direitos constitucionais geraria, sim, nulidade dos atos praticados.
Porém, como o paciente tinha sido assistido no interrogatório judicial por advogado constituído, confirmando as declarações prestadas no inquérito policial sem alegar nulidade, teria convalidado essas declarações, sendo que “as eventuais nulidades ocorridas na fase policial não contaminaram o processo, nem causaram prejuízo ao recorrente”.
Em 19 (dezenove) julgados (42,2% dos casos) afirmou-se direta ou indiretamente, por meio de exemplificações, que não pode haver qualquer conclusão desfavorável ao indivíduo que invoque a tutela do “princípio da não produção de provas contra si mesmo” ou exercite seu “direito ao silêncio”. Assim, o indivíduo não pode sofrer restrições que afetem seu status poenalis ou atinjam sua esfera jurídica.
Concretizando esse entendimento, há diversas situações que foram expressamente afastadas por implicarem algum tipo de conclusão desfavorável ao indivíduo. Dessa forma, a invocação da tutela do “princípio da não produção de provas contra si” ou o exercício do “direito ao silêncio”, a saber:
- a) Não pode levar à restrição de direito;
- b) Não pode justificar ameaça ou efetiva restrição de liberdade92;
- c) Não pode ser fundamento para o aumento da pena ou para sua
fixação acima do mínimo legal;
- d) Não configura crime de desobediência;
- e) No caso de testemunha, negar infração para não se autoincriminar
não constitui crime falso testemunho;
- f) Não pode obrigar à assinatura do termo de testemunha em CPI;
- g) Não pode obrigar ao fornecimento de material para exame pericial
(reconstituição; padrões gráficos ou vocais);
- h) Não pode obrigar a justificar contradições nos depoimentos;
- i) Não pode obrigar a dizer a verdade (há direito à mentira, a negar
falsamente a prática de infração);
- j) Não pode obrigar a comparecer para prestar depoimento;
- k) Não pode obrigar a cooperar com as autoridades que
investigam/processam.
- l) E, obviamente, não obriga sequer a responder a qualquer pergunta.
Seguem, então, alguns trechos e explicações que bem exemplificam e tornam mais esclarecido o entendimento do tribunal sobre as mais recorrentes consequências que derivam do “princípio da não produção de provas contra si mesmo”.
Reproduzindo fragmentos assemelhados em diversos de seus votos, o Ministro Celso de Mello afirmou que devido ao “princípio da não produção de provas contra si mesmo”, o réu não pode sofrer restrições que afetem a seu status poenalis nem a sua esfera jurídica.
E adverte o ministro, ainda, apropriando-se das palavras de Rogério Lauria Tucci, que o “direito ao silêncio”[20] não pode desfavorecer o imputado, pois seria “absurdo entender se que o exercício de um direito, expresso na Lei das Leis como fundamental do indivíduo, possa acarretar-lhe qualquer desvantagem.
Partilhando desse entendimento, por exemplo, no caso “Exame de dosagem alcoólica”, a Ministra Cármen Lúcia, relatora e condutora, afirmou que não se poderia presumir a embriaguez de quem não se submete a exame de dosagem alcoólica, pois não se pode prejudicar o indivíduo por sua opção de não produzir provas contra si.
Nos casos analisados nesse tópico, os demais ministros concordaram com Celso de Mello e Cármen Lúcia, expressa ou tacitamente. Mais uma vez, apenas no caso “Uso de falso documento de arrecadação da Receita Federal” existiram votos vencidos, os quais, no entanto, também não abordaram a questão de não poder haver conclusões desfavoráveis pelo exercício do “direito ao silêncio” ou pela invocação do princípio.
Portanto, as decisões já proferidas até agora sobre o assunto apontam para esse entendimento do Tribunal– até mesmo porque, como se verá adiante, as demais decorrências do princípio amoldam-se a essa regra geral de não poder haver qualquer tipo de conclusão desfavorável ao indivíduo.
Quanto ao “princípio da não produção de provas contra si mesmo” não justificar a restrição de liberdade, o Ministro Cezar Peluso defendeu, por exemplo, que não é suficiente para justificar a prisão cautelar[21] o fato de o paciente não ter atendido ao chamamento do delegado de polícia para prestar depoimento.
Justamente por ter sido decidido com apenas um voto, mas por unanimidade, questiono-me, então, se o “princípio da não produção de provas contra si mesmo” abrangeria o direito de não comparecer para prestar depoimento; acredito que sim.
Em outro caso, o Ministro Sepúlveda Pertence, relator e condutor, por sua vez, afirmara ser impertinente a alusão – a título de justificativa da prisão cautelar – “à falta de interesse [dos réus] em colaborar com a Justiça”, que estaria evidenciada, segundo o órgão coator, por “haverem respondido às perguntas de seus interrogatórios de forma desdenhosa e evasiva, mesmo sabedores que tais versões não encontram guarida no caderno investigatório”.
Por fim, para o Ministro Celso de Mello, seria “caracterizador do estado de injusto constrangimento a decretação da prisão preventiva do réu que se recusa a participar daquele [reprodução simulada] procedimento probatório”
Assim, são nove (9) os casos em que se aborda a não aceitação de qualquer decorrência do “princípio da não produção de provas contra si mesmo”, ou mesmo do “direito ao silêncio”, como justificativa para a prisão/restrição de liberdade
Esse valor representa 20% dos acórdãos analisados, decididos quase sempre por unanimidade, o que indica, então, uma posição do STF em não aceitar a restrição de liberdade fundamentada na invocação da tutela do referido princípio.
Observa-se, ainda, o entendimento do STF de que do “princípio da não produção de provas contra si mesmo” ou do “direito ao silêncio” emanaria, “até mesmo por implicitude”, a prerrogativa processual de negar, ainda que falsamente, perante a autoridade policial ou judiciária, a prática do ilícito penal. Portanto, prevê-se um “direito à mentira”, porquanto não haja qualquer obrigação de se dizer a verdade
E ainda, o fato de o acusado negar falsamente o crime, em virtude desse princípio, não seria circunstância adequada para fundamentar fixação de pena acima do mínimo legal nem pode converter-se em circunstância judicial desfavorável ao réu na fixação da pena-base.
Também no caso de a testemunha mentir ou calar sobre fato que a possa incriminar não pode ser considerado crime de falso testemunho[22].
Creio poder considerar, a partir do acima exposto, que o STF também não admite que o comportamento do réu durante o processo, na tentativa de defender-se, venha a agravar-lhe a pena ou a fundamentar sua condenação.
Portanto, vimos, até então, que o “princípio da não produção de provas contra si mesmo” e “direito ao silêncio”[23] não devem ser interpretados em prejuízo da defesa. Entretanto, a contrario sensu, nada se disse sobre a ‘produção de provas contra si’ ou a ‘confissão’ trazerem algum benefício à defesa.
Na legislação, a confissão espontânea é considerada como circunstância atenuante (Código Penal – CP, art. 65, inc. III, alínea d). E, segundo o art. 67, CP, no concurso entre agravantes e atenuantes, “a pena deve aproximar-se do limite indicado pelas circunstâncias preponderantes, entendendo-se como tais as que resultam dos motivos determinantes do crime, da personalidade do agente e da reincidência”.
Assim, por exemplo, quando o indivíduo reincidisse, ainda que confessasse, sua confissão não era considerada como uma “circunstância preponderante” para diminuir o limite da pena, a qual era elevada em razão da circunstância da reincidência, em conformidade com o disposto no art. 67.
No caso “Confissão espontânea[24]”, então, a Defensoria Pública da União postulou a “compensação da agravante da reincidência com a atenuante da confissão”, afirmando que a confissão espontânea era indicativa do traço da personalidade do agente, devendo ser considerada como preponderante, conforme disposto no art. 67, CP.
O Ministro Ayres Britto afirma em seu voto que havia na jurisprudência do STF “decisões em sentido diametralmente oposto ao pedido defensivo”, pois ambas as Turmas julgadoras entendiam não poder se relacionar a personalidade do agente com sua confissão, e cita precedentes.
Porém, no caso, o ministro chega a uma nova conclusão: “tudo tem que ser personalizado na concreta aplicação do direito constitucional-penal, ainda mais quando se fala em dosimetria da pena” (sic.).
Defende que “a assunção da responsabilidade pelo fato-crime, por aquele que tem a seu favor o direito a não se autoincriminar, revela a consciência do descumprimento de uma norma social (e de suas consequências)”, o que não poderia ser dissociado da noção de personalidade.
E, no caso concreto, a confissão dos acusados teria contribuído para afastar a tese da defesa técnica de crime tentado, reforçando, para Britto, a necessidade de “usufruto máximo da sanção premial da atenuante”, sendo que o Estado deveria assumir uma “postura de lealdade (art. 37, caput, CF/1988 – princípio da moralidade)”.
Historicamente, uma série de compilações de textos canônicos reconhece a proteção aos acusados: i) no ano de 850, uma compilação oferecia proteção contra os abusos dos senhores feudais; ii) em 1151, uma compilação levada a cabo por Graciano, tomando por base o comentário de São João Crisóstomo a trecho da Carta de São Paulo aos Hebreus viria a repudiar a prática da tortura e proscrever a obrigatoriedade do juramento dos acusados.
Entretanto, conforme ensina Paulo Mário Canabarro Trois Neto, a proteção aos acusados em geral perde força a partir do IV Concílio de Latrão em 1215, que dentre outros métodos inquisitórios, viria a instituir o juramento.
[…] em 1215, no IV Concílio de Latrão, com a introdução do jus jurandum de veritate dicenda (juramento inquisitivo), pelo qual o acusado estava obrigado a dizer a verdade, a Igreja modifica o entendimento de que a confissão só poderia ser voluntária.
Em 1252, Inocêncio IV autoriza o emprego de torturas para obtenção da confissão e do arrependimento do acusado em casos de heresia cátara. Argumentou o Papa que, se a violência contra os réus era comumente aplicada no direito comum em relação a ladrões assassinos, seria injustificável conceder tratamento privilegiado aos hereges, que não passariam de “ladrões e assassinos da alma”.
O ius commune europeu lançaria as bases para que a Igreja Católica pudesse reavivar o procedimento inquisitório cujas bases estavam no Direito Romano. A inquisição para os romanos consistia no procedimento mediante o qual o magistrado procedia à investigação minuciosa dos fatos envolvidos em uma contenda judicial, fosse ela civil ou criminal. Até o advento do Renascimento Cultural, o procedimento inquisitório ainda possuía suas fundações no Direito Romano.
Por fim, com a chegada da Idade Moderna e o advento do Iluminismo, temos o início do reconhecimento e da construção de garantias penais e processuais penais. Há com este movimento sociocultural um combate ao uso da tortura e do juramento, tão empregados no procedimento inquisitorial medieval. Considera-se, atualmente, uma imoralidade as tentativas de compelir o acusado a pronunciar-se de modo incriminatório[25].
Diferente do procedimento inquisitório medieval que encontrava na confissão a prova de máximo valor, no qual a linha entre delito e pecado era bastante tênue e a autoincriminação do acusado assumia a forma de expiação, o Iluminismo transforma a justiça penal, instituindo a separação das funções entre acusar, defender e julgar, diminuindo a distância entre o Estado-acusador e o acusado.
Por fim, é possível afirmar ainda que o direito a não autoincriminação se manifestou bastante tardiamente nos Estados de Direito codificado, apresentando-se nas legislações somente a partir do início do século XIX.
O desenvolvimento do privilégio contra a autoincriminação como o conhecemos se deu através do direito anglo-americano, no qual a máxima foi expressa através do privilege against self-incrimination.
Esse se consolidou na common law inglesa, a partir da metade do século XVII, com a abolição das cortes eclesiásticas de High Comission e Star Chamber e do procedimento do juramento ex officio, mas também através da busca pela defesa técnica.
O procedimento do juramento ex officio consistia em comparecerem as partes perante estas cortes, submetendo-se a um juramento de responder quaisquer questões que lhes fossem feitas. Comumente, as acusações eram desconhecidas.
Assim, o privilege against selfincrimination desenvolveu-se, inicialmente, como uma proteção às fishing expeditions, prática por meio da qual os juízes, através do ato do interrogatório, investigavam aspectos e procediam a questionamentos alheios ao objeto da acusação. Os advogados à época já se insurgiam contra a prática do juramento ex officio, por entender que ele conduzia ao perjúrio.
A irresignação dos puritanos, contra as práticas das cortes de High Commission e Star Chamber tornaram-se maiores com relação ao fato de que o juramento conduzia o acusado a responder questões potencialmente incriminatórias, independentemente da existência de um acervo probatório suficiente a comprovar as acusações formuladas.
John H. Langbein esclarece que os puritanos estavam resistindo às tentativas dos reinados de Elizabeth I (1558- 1603) e da Casa de Stuart (1603-1640 aproximadamente) de impor o credo anglicano. Uma vez que os acusados submetidos à jurisdição de tais cortes eram comumente acusados de práticas em desconformidade com o anglicanismo, havia resistência em submeterem-se ao procedimento do juramento ex officio. Ainda assim, o acusado que se recusasse ao juramento estaria sujeito à prisão pelo contempt of court – desobediência aos comandos da Corte[26].
Passaram os puritanos a buscar assistência nas cortes de common law, que se provaram dispostas a intervir, expedindo writs de proibição contra as práticas de ambas as cortes. O habeas corpus também se difundiu como instrumento jurídico capaz de proteger o acusado perante a corte de High Commission. Sobre o tema, ensina Maria Elizabeth Queijo:
“O writ de proibição e os habeas corpus eram instrumentos jurídicos das cortes de common law para interferir nos julgamentos eclesiásticos. Pelo writ de proibição decidia-se que o acusado não podia ser submetido a julgamento por determinada corte”.
Já o habeas corpus era utilizado contra o poder da Court of High Commission de decretar prisões, as cortes de High Comission e Star Chamber foram abolidas por um Ato do Parlamento Inglês de 1641, com o qual assentiu o Rei Carlos I. Os tribunais eclesiásticos foram proibidos de impor juramento que viesse a provocar a confissão ou a autoacusação.
Nas cortes de common law, durante o século XVI, contudo, o privilege against selfincrimination perde parte de seu significado original, consubstanciado no direito fundamental, não de silenciar, mas de falar, que possuía o acusado. Maria Elizabeth Queijo explica que a ausência de defesa técnica por advogado compelia o acusado a contrapor as acusações que lhe eram feitas, sendo o seu silêncio na prática uma autoacusação.
Deveria o acusado contestar as acusações porque não lhe era assegurada a assistência de advogado, já que inadmissível que terceiro se manifestasse em seu lugar. A declaração do acusado contava então com caráter testemunhal. Havia, igualmente, restrições à convocação de testemunhas defensivas as quais, não comparecendo, não seriam intimadas para o ato.
Sobre o tema em lume, ensina o professor John H. Langbein:
“O privilege against self-incrimination encontrava limitações também no procedimento do pretrial, disciplinado pelo Marian Committal Statute de 1555, seguido do século XVI ao XVIII, cujo objetivo era conduzir o acusado a autoincriminação”[27].
Um magistrado da Justiça de Paz presidia o ato, transcrevendo tudo quanto fosse dito pelo acusado, a vítima e as testemunhas de acusação. Se o acusado se recusasse a falar nesta fase, isso era registrado no relatório a ser encaminhado para a corte de julgamento. No julgamento, portanto, desejando o acusado se retratar, tal proceder seria utilizado em seu desfavor. O pretrial, sendo assim, constituía etapa decisiva do julgamento principal
É imperativo ressaltar que alguns dos pilares de sustentação do processo criminal na common law não se encontravam presentes à época. Até o século XVIII, o beyondreasonable-doubt standard of proof – a fórmula da “dúvida razoável” da prova[28] , que compele o julgador a sanar suas dúvidas favorecendo o acusado, não possuía formulação adequada, sendo o acusado compelido a falar.
Miley Junior inicia seu artigo “A reasonable doubt about reasonable doubt” questionando qual seria a definição de razoável. Afirma que o conceito pode ser uma invenção americana, bem como que trata do direito que cada cidadão acusado possui de ter o governo provando seu caso contra ele além de uma dúvida razoável.
Esclarece que este direito está no núcleo de liberdade e que seria um baluarte do sistema de justiça criminal. Conforme tradução livre e adaptada, a culpa do réu deve ser demonstrada além da dúvida razoável.
A prova além da dúvida razoável é algo como uma forte convicção, uma certeza moral de que o fato realmente ocorreu, trazendo a segurança para o julgador[29] de que ele, de fato, existiu. Um equilíbrio entre as provas não é suficiente. O jurado em um caso criminal não deve condenar o réu ao menos que as evidências excluam da sua mente toda e qualquer dúvida razoável.
A máxima que imperava no momento sugeria que, sendo o acusado inocente, deveria ter ele a capacidade de provar. Igualmente, não lhe era permitido acesso aos termos de seu indiciamento, desconhecendo os fatos dos quais deveria se defender, vedação essa que iniciou seu relaxamento com a edição do Treason Act (1696).
Arremata R. H. Hemholz, por fim, que o privilege against self-incrimination é essencialmente uma criação da defesa técnica. A vedação da constituição de advogado foi gradualmente cedendo entre os anos de 1696 a 1837, primeiro com a admissão da defesa por advogado pelo Treason Trials Act (1696), até o abandono do sistema inquisitório com o Prisoner’s Counsel Act (1836), que permitiu a defesa do acusado em matéria de direito e de fato.
No tocante ao estudo de direito comparado realizado temos que:
- no direito alemão, o direito ao silêncio constitui direito da personalidade, ainda assim, entende-se que o acusado possui função dúplice: sujeito de direito e meio de prova;
- o direito inglês entende existir a proteção do silêncio do acusado, contudo, não há dever de advertência na esfera policial quanto a essa possibilidade, sendo passível de valoração o seu silêncio, nos termos do Criminal Justice and Public Order Act, o qual vem sendo duramente questionado pela Corte Europeia de Direitos Humanos;[30]
- o direito norte-americano protege o silêncio do acusado desde as suas fundações, sendo bastante amplo o seu espectro, consolidado através de precedentes da Suprema Corte, em especial Griffin versus. California, Escobedo versus. Illinois[31] e o conhecido Miranda versus. Arizona[32].
O princípio ingressa em solo brasileiro ainda no período colonial, com as Ordenações Manuelinas, que possuíam disposição expressa a respeito do silêncio do acusado.
A Constituição Imperial de 1824[33], inspirada pelo liberalismo inglês proscreveria a prática da tortura, mas as Ordenações Filipinas continuariam a viger em matéria processual penal até 1832, quando editado o Código de Processo Criminal de Primeira Instância que caracterizou o interrogatório como meio de defesa, isentando o acusado de responder às perguntas feitas pela autoridade e prestar juramento. Somente com a Constituição Federal brasileira de 1988 é que o princípio receberia status de direito fundamental, recebendo disposição expressa.
Ao se cogitar sobre a relação do direito ao silêncio com o direito penal e o direito de processual penal situa-se a entrar no campo das situações em que aquele direito assume alguns contornos diferenciados quando se afasta da esfera de proteção de direitos e garantias individuais, mas ao mesmo tempo, não as afetando.
Lembremos que o exercício da ampla defesa permite ao imputado confessar total ou parcialmente a imputação, alegar excludentes de ilicitude ou culpabilidade, fornece álibi, silenciar, omitir-se, até mesmo mentir como exercício da autodefesa sem que isso lhe acarrete qualquer consequência indesejável. Não existe, portanto, o ônus de veracidade para o interrogado, situação que para Grinover é diametralmente oposta ao reconhecimento do direito ao silêncio.
A mentira[34] permitida é apenas quanto aos fatos imputados como exercício pleno de autoproteção. A obrigação de responder às perguntas formuladas sobre sua pessoa ou de fornecer seus documentos, nenhum prejuízo acarreta ao interrogado, a menos que possa ser verificada a ocorrência dos crimes de uso de documento falso ou de falsa identidade. Eis, a importância de a autoridade que preside o interrogatório ter a certeza, antes de iniciar, de que se trata da pessoa que deva ser interrogada.
- Conclusão
A obrigação de veracidade das respostas sobre antecedentes está fincada em zona nebulosa uma vez que os dados sobre a vida pregressa (do acusado ou indiciado) podem ser obtidos através de consulta aos bancos de dados públicos. E, afora isso, os antecedentes influenciarão no quantum da pena, o que já configuraria uma colaboração para o próprio prejuízo.
O direito de mentir[35], portanto, não inclui a autoacusação falsa de crime inexistente ou praticado por outrem. A mentira[36] permitida ao acusado para defender-se quanto aos fatos imputados e não para incriminar-se. Conforme ensina Noronha, a autoacusação falsa prejudica o funcionamento normal de atividade da justiça, obstaculizando-a e fazendo com que dispense persecuções infrutíferas com dispêndios desnecessários.
No Brasil, os direitos e garantias individuais foram introduzidos desde a Constituição Imperial de 1824, cujo rol apresenta-se no Título 8º: “Das Disposições Geraes, e Garantias dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brazileiros” em seu artigo 179, sob a forma de trinta e cinco incisos (BRASIL, 1824). Dentre eles encontramos, por exemplo, a liberdade de locomoção, a inviolabilidade do domicílio, a possibilidade de prisão somente em flagrante delito ou por ordem da autoridade competente, e a igualdade perante a lei.
Ferrajoli aponta que o garantismo processual acusatório exclui a colaboração do imputado com a acusação que seja fruto de meios capciosos ou transações, principalmente, aqueles feitos às escuras. Indica, como única maneira de erradicar a prática da negociação e escambo entre a confissão e delação por redução de sanções, a vedação legal de atribuir qualquer relevância penal ao comportamento processual do imputado e também para a determinação da pena.
As disposições legais vigentes que induzam direta ou indiretamente à autoincriminação são incompatíveis com o princípio da presunção da inocência[37].
Por outro viés, Haddad considera que existe um termo médio. A premiação à colaboração com a instrução quando não há constrangimento ou coação não afeta os direitos consagrados aos próprios investigados e acusados. Afinal, a presunção de inocência foi instituída em benefício do acusado não é violada se, dada a liberdade de autodeterminação que comanda a conduta pessoal do réu, escolhe-se uma tese defensiva entre aquelas inseridas no conceito constitucional de ampla defesa.
Desta forma, o direito de silêncio assegura a liberdade de consciência do indivíduo quando este, é amplamente esclarecido sobre sua dimensão, há de se dispensar uma atenção especial ao esclarecimento do imputado sobre as consequências da colaboração espontânea para que não haja a mínima sensação de dever de fornecer elementos contrários a si para obter benefícios. Trata-se, enfim, de escolher a melhor forma de defesa.
O direito ao silêncio é vetusto e veio evoluindo ao longo da história assim, algumas legislações o tolheram e outras o excluíram, cujo reflexo se deu no interrogatório. E, se no século XVIII fora conhecido como o século das luzes, em face do farto desenvolvimento filosófico-cultural, não se poderia deixar de fomentar o retorno do instituto como indicação da repugnância à violação daquele direito e, até mesmo de direitos inatos. Foi o direito anglo-saxão que despontou em sua normatização e serviu de inspiração para tantas outras legislações.
Enfim, é a dignidade humana que corresponde ao princípio cardeal e norteador das relações pessoais e as existentes entre o Estado e o cidadão, e serve de alicerce para todos os demais princípios consolidados na Constituição Cidadã. E, assim, o direito ao silêncio é previsto como garantia fundamental tendo seu epicentro na preservação da dignidade humana[38].
Anexo (Direito Comparado):
No direito comparado, por exemplo, o acusado no direito processual penal alemão está sujeito ao interrogatório em todas as fases procedimentais, devendo primeiramente ser cientificado do fato que lhe é imputado, sendo, ato contínuo, interrogado acerca de sua pessoa.
O juiz deverá adverti-lo quanto ao direito ao silêncio, bem como de sua possibilidade de consultar um advogado. Entende-se que o acusado não possua um dever de dizer a verdade, a jurisprudência já admitiu a agravação da pena em função da mentira – ao contrário do sustentado pela doutrina. Igualmente, possui o acusado um dever de comparecimento ao ato de interrogatório, sendo autorizada a sua condução coercitiva para tanto, a ser determinada pelo juiz ou pelo representante do Ministério Público – sujeita a controle jurisdicional na última situação.
No direito inglês, segundo o Act de 1994 que estabeleceu em sua seção n.º 35 a possibilidade de se fazerem inferências a partir do silêncio do acusado. Outras seções também limitam o direito de silenciar:
- i) a seção n.º 34 prevê a possibilidade de interpretar em desfavor do acusado o seu silêncio em relação a fato ou circunstância importante para sua defesa, devendo ter sido ele advertido a esse respeito; ii) a seção n.º 36 permite a valoração negativa no tocante ao silêncio sobre questões referentes à objetos ou substâncias que estavam em poder do acusado, bem como a sobre sua presença no local em que foi preso; iii) a seção n.º 37, por fim, permite seja valorado o silêncio do acusado quando deixar de responder perguntas atinentes à sua presença no lugar e tempo em que ocorreu o crime. Problemas surgem quando submetidas as disposições do Act perante a Corte Europeia de Direitos Humanos.
Com efeito, o direito ao silêncio do acusado é entendido como garantia fundamental do fair procedure, conforme interpretação do artigo 6º da Convenção Europeia de Direitos Humanos.
O privilege against self-incrimination está consolidado no ordenamento jurídico dos Estados Unidos da América através da 5.ª Emenda Constitucional, a qual preleciona que no person shall be compelled in any criminal case to be a witness against himself. Com efeito, trata-se de proteção extensa, abrangendo: i) acusados; ii) testemunhas; iii) os submetidos à persecução penal; iv) os que potencialmente possam tornar-se acusados. São registrados casos julgados pela Suprema Corte datados de 1884, dentre os quais Hopt versus. Utah, nos quais se afastou a confissão obtida mediante promessa de recompensa, mediante a aplicação da 5ª Emenda.
O silêncio do acusado engloba a renúncia às perguntas, bem como também o direito de não testemunhar em seu próprio julgamento, não sendo admitida a imposição de penalidades em razão do exercício deste direito – como restou decidido pela Suprema Corte em Griffin versus. California. Também possui o acusado o direito de que o julgador informe o júri de que o silêncio do acusado não deve influenciar em sua decisão sobre o caso v.g. como no caso Carter versus. Kentucky[39].
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[1] Cumpre ressaltar, em tempo, que Paulo Rangel define testemunha como sendo o indivíduo chamado a depor, demonstrando que sua experiência pessoal o colocou em contato com a existência, natureza e as características de um fato, pois face em estar em frente ao objeto (testis), guardou na mente, sua imagem.
Já para Tourinho Filho nos ensinou que a prova testemunhal, particularmente no Processo Penal, é de valor extraordinário, pois dificilmente, e só em excepcionais hipóteses provam-se as infrações criminosas com outros elementos de prova e, quanto ao valor, como qualquer outro meio de prova, a prova testemunhal é relativa.
O artigo 202 do CPP expõe que toda pessoa poderá ser testemunha, salvo exceções constantes no CPP.
A palavra acusado no mundo jurídico serve para indicar a pessoa contra a qual há um processo. Se contra a pessoa há apenas um inquérito policial, dizemos que a pessoa é indiciada. Na dúvida, diga apenas suspeito, que é um termo genérico. Confundir alguém acusado com alguém indiciado é a mesma coisa de confundir alguém pré-candidato com alguém candidato durante uma eleição: a maioria dos pré-candidatos não vira candidato (e muito menos se elege).
Indiciado é o termo utilizado para o indivíduo que foi objeto de investigação em um inquérito policial e, ao final da investigação, o Delegado entende ter sido o autor do crime apurado. Quando se fala em denunciado já se ultrapassou a fase da investigação policial e o Ministério Público ofereceu denúncia por entender haver prova da materialidade e indícios suficientes de autoria.
O acusado (réu) é aquele que efetivamente responde a uma ação penal. Isso ocorre após o recebimento da denúncia oferecida pelo Ministério Público e dura até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Após o trânsito em julgado da sentença condenatória, a situação muda para condenado, visto não haver mais dúvidas quanto a prática do crime e a autoria delitiva, restando apenas o cumprimento da sanção imposta.
[2] O interrogatório é o momento em que o acusado é ouvido pelo Juiz no decorrer do processo. É assim e sempre o foi, porém foi valorizado e realizado de diversas formas no decorrer de sua história, em dois sistemas, o inquisitivo e o acusatório. No Sistema Inquisitivo, no qual havia uma concentração de todos os atos do processo (apurar, acusar, defender e julgar) nas mãos de um único órgão, o interrogatório era tratado como mais um meio de prova. A principal diferença é que no sistema inquisitivo o réu não era parte, mas sim um objeto do processo, e no sistema acusatório este passa a ser parte do processo. Vale ressaltar, que no sistema inquisitivo o interrogatório só poderia ser encarado como um meio de prova, pois o principal objetivo no Estado, nesta época, era punir o acusado, ou seja, se valer de seu jus puniendi.
[3] O sistema de direito brasileiro não autoriza a inversão de ônus da prova em prejuízo do agente acusado no processo penal, permanecendo válida a regra basilar que compete à acusação, pública ou privada, provar, observado o devido processo legal, a prática do fato punível que se lhe imputa. A doutrina majoritária entende que: “Cabe provar a quem tem interesse em afirmar.
A quem apresenta uma pretensão cumpre provar os fatos constitutivos; a quem fornece a exceção cumpre provar os fatos extintivos ou as condições impeditivas ou modificativas. A prova da alegação (onus probandi) incumbe a quem a fizer (CPP, artigo 156, caput). Exemplo: caberá ao Ministério Público provar a existência do fato criminoso, da sua realização pelo acusado e também a prova dos elementos subjetivos do crime (dolo ou culpa); em contrapartida, cabe ao acusado provar as causas excludentes da antijuridicidade, da culpabilidade e da punibilidade, bem como circunstâncias atenuantes da pena ou concessão de benefícios legais.
[4] A delação premiada (mais precisamente a colaboração premiada, porque nem sempre envolve delatar alguém) é um mecanismo judicial pelo qual um acusado colabora com as investigações, revelando detalhes do crime, como os nomes de coparticipantes, localização da vítima (se houver) ou detalhes que ajudam a recuperar os bens que foram perdidos por conta do crime. Em troca, o acusado pode receber alguns benefícios, como: redução de um terço a dois terços do tempo da pena; cumprimento da pena em regime semiaberto, no lugar do regime fechado; a depender do caso, extinção da pena; e até mesmo perdão judicial (que nunca foi concedido no Brasil até hoje).
[5] Habeas corpus preventivo: quando ainda existe apenas uma ameaça ao direito. Nesse caso, qualquer pessoa física que se achar ameaçada de sofrer lesão a seu direito de locomoção tem direito de fazer um pedido de habeas corpus. Essa pessoa é chamada de “paciente” no processo. Tratando-se de habeas corpus preventivo, se concedido, será expedido um salvo-conduto, assinado pela autoridade competente. Salvo-conduto, do latim salvus (salvo) conductus (conduzido), dá a precisa ideia de uma pessoa conduzida a salvo. Daí a expressão salvo-conduto para exprimir o documento emitido pela autoridade que conheceu do habeas corpus preventivo, visando a conceder livre trânsito ao seu portador, de molde a impedir-lhe a prisão ou detenção pelo mesmo motivo que ensejou o pedido de habeas corpus.
[6] O postulado da reserva constitucional de jurisdição importa em submeter, à esfera única de decisão dos magistrados, a prática de determinados atos cuja realização, por efeito de explícita determinação constante do próprio texto da Carta Política, somente pode emanar do juiz, e não de terceiros, inclusive daqueles a quem se haja eventualmente atribuído o exercício de “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”.
A cláusula constitucional da reserva de jurisdição – que incide sobre determinadas matérias, como a busca domiciliar (CF, art. 5º, XI), a interceptação telefônica (CF, art. 5º, XII) e a decretação da prisão de qualquer pessoa, ressalvada a hipótese de flagrância (CF, art. 5º, LXI) – traduz a noção de que, nesses temas específicos, assiste ao Poder Judiciário, não apenas o direito de proferir a última palavra, mas, sobretudo, a prerrogativa de dizer, desde logo, a primeira palavra, excluindo-se, desse modo, por força e autoridade do que dispõe a própria Constituição, a possibilidade do exercício de iguais atribuições, por parte de quaisquer outros órgãos ou autoridades do Estado.
[7] Não se pode confundir recolhimento domiciliar com prisão domiciliar, aquela é somente cabível como substitutivo da prisão preventiva e sob determinadas condições e circunstâncias pessoais do agente, segundo o art. 318, CPP. Pacelli de Oliveira14 entende que por se tratar de medida limitativa de locomoção, ainda que somente em período noturno e nas folgas de trabalho, o tempo de cumprimento deve ser levado à conta da detração da pena. Antes da nova lei, uma medida cautelar inominada, que os
juízes utilizavam para suspender o exercício de função pública ou de atividade de natureza econômicas e financeira com a finalidade de impedir novos delitos. Atualmente, faz parte do inciso VI do art. 319 do Código de Processo Penal. A decretação de tais medidas atípicas deve se dar em contextos excepcionais, haja vista que a restrição de direitos só deve ser admitida em casos de extrema necessidade e na medida correta, na forma do princípio da não-culpabilidade e, não se poderá conceder a título de cautelar inominada mais do que se alcançaria no processo principal. Não se pode utilizar o poder geral de cautela em relação às modalidades de prisão provisória, uma vez que o princípio da reserva legal implica a necessidade de previsão legal da prisão e para ser preso há de se apontar a existência de um crime, crime esse insculpido na lei, conforme se depreende do art. 5º, incisos XXXIX e LXI da Constituição Federal combinado com art. 283 do Código de Processo Penal e art. 1º do Código Penal.
[8] Para a interpretação, ensina que todas as frações do sistema – cada norma isolada, portanto – guardam conexão entre si. Assim, em suas bem escolhidas palavras, “interpretar o Direito é, sempre e sempre, realizar a sistematização daquilo que aparece como fragmentário”. O princípio da legalidade, por exemplo, só pode ser aplicado à luz de outros princípios também essenciais ao sistema, como o da moralidade, da eficiência, da legitimidade. E, ainda, na esteira das lições de Gadamer, um dos muitos nomes retomados, a interpretação do texto jurídico deve ser condicionada pela aplicação, e de maneira que ocorra uma “superação da vontade do legislador por aquela que se poderia denominar vontade axiológica do sistema, reconhecida somente após a interação dialética entre ordenamento e intérprete”. Para o caminho, pois, defende que o princípio hierárquico deve preponderar sobre o critério da especialidade, sempre, escalonando-se princípios, regras e valores. E que todo intérprete de norma jurídica é, sem exclusão, um intérprete da Constituição.
[9] Entre as medidas cautelares pessoais não prisionais, os juízes criminais podem determinar a retenção do passaporte do acusado — ou de outro documento de viagem —, como forma de assegurar a proibição de saída do País. Tal medida, prevista expressamente no art. 320 do CPP desde 2011, serve para restringir os movimentos migratórios de pessoas sujeitas à jurisdição criminal brasileira, sejam elas nacionais ou estrangeiras, quando há fundadas razões para crer em sua fuga:
Art. 320. A proibição de ausentar-se do País será comunicada pelo juiz às autoridades encarregadas de fiscalizar as saídas do território nacional, intimando-se o indiciado ou acusado para entregar o passaporte, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas. A jurisprudência dos Tribunais Superiores é pacífica no sentido de que a imposição de condições para a concessão do benefício da liberdade provisória ou para a revogação de prisão preventiva não ofende os princípios da presunção de inocência e da reserva legal. Entretanto, deve existir razoabilidade nas restrições ao direito de ir e vir do réu em processo penal, com a devida fundamentação que justifique a necessidade da cautela, à luz do disposto no art. 93, inciso IX, da Constituição Federal brasileira de 1988.
[10] Trata-se de uma permissão concedida ao Estado-juiz para que possa conceder, além das medidas cautelares típicas (tais como o arresto ou sequestro), medidas cautelares atípicas, ou seja, medidas não descritas pela norma jurídica. O poder geral de cautela do juiz é nada mais que a própria aplicação dos princípios fundamentais. Nesse sentido, Câmara (2008): Admitir a existência de casos para os quais não houvesse nenhuma medida cautelar capaz de evitar um dano irreparável, ou de difícil reparação, para a efetividade do processo seria admitir a existência de casos para os quais não existiria nenhum meio de prestação da tutela jurisdicional adequada, o que contrariaria a garantia constitucional (a qual, relembre-se, está posta entre as garantias fundamentais do nosso sistema político e jurídico).
[11] O princípio da Presunção de Inocência é no Brasil um dos princípios basilares do Direito, responsável por tutelar a liberdade dos indivíduos, sendo previsto pelo art. 5º, LVII da Constituição de 1988, que enuncia: “ninguém será considerado culpado até trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Já no século XVIII, Cesare Beccaria postulava que a liberdade de um homem só lhe podia ser retirada após a comprovação de violações pactuadas. Com o florescer do respeito à liberdade, a dignidade da pessoa humana e a valorização dos direitos individuais e sociais, a presunção de inocência passou a ser acolhida em praticamente todo o mundo civilizado, seja nas convenções internacionais seja nos ordenamentos dos países.
Cada um ao seu modo, e na forma de seu sistema jurídico, tem previsto que o estado natural das pessoas é o da liberdade e que uma pena de constrição dessa liberdade somente seria imposta após observados todos os direitos e garantias constitucionais, principalmente a observância da presunção de inocência. O que se diferencia mundo a fora é o momento de alcance desse princípio. Na maioria dos países, a culpabilidade é reconhecida em dois graus de jurisdição. Porém, este não foi o entendimento adotado pelo nosso constituinte quando da CRFB/1988. A presunção de inocência, em nosso ordenamento, ficou atrelada a ocorrência do trânsito em julgado da ação, ou seja, todo cidadão será presumido inocente, não cabendo a execução da pena até que todos os recursos possíveis para a situação sejam julgados.
[12] A lógica do razoável, mediante a ponderação de princípios e valores, como padrão não só para aferição da constitucionalidade das leis, mas também para a aceitação da decisão judicial, é conceito presente na atualidade do debate jurídico.
Por meio da lógica do razoável, e da argumentação, mostrando exaustivamente as virtudes da solução adotada, busca-se a decisão mais adequada, uma decisão justificável, ainda que não absolutamente demonstrável como a única possível. É a lógica do preferível. Se não existem pessoas como Hércules, capazes de encontrar a única solução correta, os aplicadores do direito devem ao menos tentar achar a melhor solução entre as várias que se apresentam e têm a obrigação de expor, da maneira mais completa possível, as razões que os levaram a tal preferência por uma escolha em detrimento de outra.
[13] Sob outro enfoque, a condução coercitiva há muito vem ganhando espaço no meio jurídico, fora das hipóteses acima apontadas, ou seja, sem prévia intimação, como eficiente mecanismo de persecução penal. Na verdade, trata-se de uma excelente ferramenta para as investigações, principalmente para as mais vultosas, referentes a associações e organizações criminosas, em relação às quais a obtenção de provas geralmente é mais trabalhosa, devido às suas ramificações e o modo de agir dos criminosos, os quais, invariavelmente, contam com a colaboração de vários agentes, estrutura, organização e logística previamente pensadas para dificultar, senão anular as chances de êxito de qualquer trabalho investigativo. Nesse sentido, aliás, há julgados tanto do Supremo Tribunal Federal (HC 107644/SP) quanto do TJGO (Agravo Regimental em Medida Cautelar nº 161912-29.2013.8.09.0000, Rel. Des. João Waldeck Felix de Sousa, Corte Especial, julgado em 14/01/2015, DJ 1725 de 10/02/2015), admitindo a condução coercitiva.
[14] Já em 1960, Serrano Alves escrevia uma monografia com o título “O Direito de Calar” (Rio de Janeiro: Editora Freitas Bastos, 1960), cuja dedicatória era “aos que ainda insistem na violação de uma das mais belas conquistas do homem: o direito de não se incriminar”. Na sua introdução, o autor afirma: “Este livro é uma calorosa mensagem de esperança dirigida aos mártires da truculência policial e do exagerado arbítrio judicial.”
[15] A acareação é um procedimento previsto tanto no Código de Processo Civil quanto no Código de Processo Penal, cuja finalidade é a apuração da verdade, por meio do confronto entre partes, testemunhas ou outros participantes de processo judicial, que prestaram informações prévias divergentes.
Um possível indicativo da importância da acareação como meio de prova consiste na análise do direito comparado. Com efeito, o instituto está positivado nos Códigos de Processo Penal de Portugal (art. 146), da Itália (arts. 211 e 212), da Argentina (arts. 276 a 278), do Paraguai (arts. 95 e 233) e na Ley de Enjuiciamiento Criminal Espanhola (arts. 451 a 455), apenas para ficar em alguns poucos exemplos. No Brasil, o instituto vem positivado nas regras dos arts. 230 e 231, do CPP e nos arts. 365 a 367, do CPP Militar. No âmbito da persecução penal e da fase de realização da diligência, a regra do art. 230, do CPP, prevê a admissibilidade da acareação tanto no curso do processo como em sede de inquérito policial. Tem-se admitido, também, a realização de acareações em Comissões Parlamentares de Inquérito.
[16] Provas ilícitas são aquelas, cuja maneira de obtenção da prova infringe as normas de direito material e constitucional, portanto elas não são aceitas no processo. Provas das quais são obtidas violando alguns princípios constitucionais ou direitos materiais, são essas consideradas provas ilícitas. A concepção ampla de prova ilícita é o resultado das definições de vários autores processuais, em que, em cada conceito, é estabelecido seu próprio parâmetro sobre o que seria ilícito.
Já a concepção restrita, limita o conceito de prova ilícita, em que é aquela obtida com violação de normas de direitos fundamentais. Vale citar Grinover, Fernandes e Gomes Filho (1997), os quais acrescentam que uma prova pode ser ao mesmo tempo ilícita e ilegítima, haja vista que se a prova é ilícita esta será também processualmente ilegítima e, por isso, não será empregada no processo. Entretanto, o inverso não seria correto, já que para a prova ser considera ilícita, ela tem que violar, necessariamente, uma norma de direito constitucional, relacionada à proteção de liberdades públicas, ou uma norma legal que implique em uma violação material.
[17] Aliás, a doutrina dos frutos da árvore envenenada deita origem na jurisprudência da Suprema Corte dos EUA (fruits of the poisonous tree) e deriva da imagem metafórica de uma árvore contaminada por veneno, a primeira prova ilicitamente obtida, quaisquer frutos colhidos de tal árvore, as provas decorrentes da primeira, estarão igualmente contaminados e devem ser rejeitados. No Brasil, existe muitos precedentes do STF acatando a mesma tese.
Por exemplo: Habeas Corpus n. 73.351-SP, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Ilmar Galvão, julgamento em 09.05.96, RTJ 168/543; Habeas Corpus n. 72.588-PB, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Maurício Corrêa, julgamento em 12.06.96, RTJ 174/491; e Habeas Corpus n. 80.949-RJ, 1ª Turma, Relator o Ministro Sepúlveda Pertence, julgamento em 30.10.2001, RTJ 180/1001. Como afirmado na ementa do segundo dos três acórdãos referidos, “as provas obtidas por meios ilícitos contaminam as que são exclusivamente delas decorrentes; tornam-se inadmissíveis no processo e não podem ensejar a investigação criminal e, com muito mais razão, a denúncia, a instrução e o julgamento (…)”.
[18] Trata-se, na verdade, de uma contravenção penal, prevista no art. 58 do Decreto Lei nº 3688/41 (Lei das Contravenções Penais). A razão oficial para proibir o jogo do bicho e os jogos de azar em geral pode ser encontrada nos considerando de outro Decreto-Lei. O de 9.215/1946, que revogou a revogação do mencionado artigo 50, considerando, entre outras coisas, que “a repressão aos jogos de azar é um imperativo da consciência universal” e que “a tradição moral jurídica e religiosa do povo brasileiro e contrária à prática e à exploração e jogos de azar”. O jogo do bicho é proibido pela lei brasileira número 3.688 e considerado contravenção juntamente com jogos de azar, atividade de cassino e exploração não autorizada de loteria. Desde o anúncio da proibição do bicho em 1941, os bicheiros, controladores dos pontos de aposta, se organizaram e formaram uma cúpula que se relaciona por meio de propina e financiamento de projetos e campanhas com o governo, justiça e polícia.
Essa relação, que cresceu e se tornou cada vez mais comum, é o que permitiu que o jogo do bicho chegasse até os dias de hoje em pleno funcionamento. Por conta disso, hoje o bicho é considerado não só contravenção, mas crime de formação de quadrilha e corrupção. Na década de 70, o jogo do bicho no Rio de Janeiro estava organizado praticamente como uma empresa em expansão. E, tendo arrecadado grandes quantias de dinheiro, investiram, entre outras coisas, na compra de escolas de samba e no controle do carnaval, por meio da liga das escolas de samba. Além de um negócio lucrativo, o carnaval é utilizado para “lavar” o dinheiro ilegal conseguido com o jogo por meio de notas superfaturadas.
[19] O atentado violento ao pudor foi revogado pela Lei 12.015/09, portanto, pode-se dizer que o atentado violento ao pudor sofreu abolitio criminis. Não é correto afirmar que houve abolição do crime, pois a referida lei reuniu no mesmo tipo legal as descrições típicas previstas nos crimes de estupro e atentado violento ao pudor. Doravante, a prática, sob violência ou grave ameaça, de atos libidinosos diversos da conjunção carnal contra homem ou mulher, é considerada estupro.
No Direito Penal brasileiro, atentado violento ao pudor, conhecido informalmente pela sigla AVP foi um tipo penal que vigorou entre 1940, data de criação do Código Penal Brasileiro, e agosto de 2009, quando a Lei 12.015/2009 o revogou. Diferenciava-se do estupro por envolver ato sexual diverso da cópula (também denominada conjunção carnal ou sexo vaginal) ou ainda, quando a vítima do ato sexual forçado era do sexo masculino. Havia diversas formas de atentado violento ao pudor, que compreendiam a prática de atos diversos da conjunção carnal, por exemplo, tocar as partes íntimas de uma pessoa, após havê-la subjugada de alguma forma – pelo emprego de arma ou outra violência. Neste caso, a violência é real (mediante intimidação capaz de anular a resistência normal da vítima); situação diferente da violência presumida – aquela em que a vítima era menor de 14 anos, ou deficiente física ou mental – onde a violência é presunção legal em virtude da menor ou nenhuma capacidade de se defender.
[20] Em que medida pode-se exigir do réu que forneça um álibi, ao passo que, em princípio, presumido inocente, tem o mais estrito direito ao silêncio?” Justamente esse tipo de questionamento é que se pretende discutir no presente trabalho, inclusive com os outros exemplos que serão trazidos adiante. Aury Lopes Jr., diga-se, de maneira pontualíssima, leciona que o “direito de silêncio é apenas uma manifestação de uma garantia muito maior, esculpida no princípio nemo tenetur se detegere, segundo a qual o sujeito passivo não pode sofrer nenhum prejuízo jurídico por omitir-se de colaborar em uma atividade probatória da acusação ou por exercer seu direito de silêncio quando interrogado”.
[21] Para decretação da prisão preventiva, necessário se faz a presença de três requisitos: fumaça do cometimento do crime (a materialidade e indício de autoria) somado o perigo na liberdade do agente (um dos fundamentos trazidos na parte final no artigo 312 CPP) somado o cabimento (hipóteses descritas no artigo 313). No primeiro requisito, temos o que chamamos de pressupostos, a fumaça do cometimento do crime, o fumus commissi delicti. Precisa ser demonstrado que o crime ocorreu e que possui indícios que seja, o agente, o autor do crime. Quando a decisão é decretada após o recebimento da denúncia, caso não esteja sendo solicitado o trancamento da ação penal, será muito difícil “quebrar” esse requisito.
Em outro artigo trataremos do habeas corpus para trancar ação penal. No que diz respeito ao segundo requisito, qual seja, a fundamentação, deverá ser demonstrado que a liberdade do agente colocará em risco a efetividade do processo. Há um perigo na liberdade do agente, há o periculum libertatis. Para fundamentar, deverá o magistrado trazer elementos concretos na fundamentação, presente nos autos, que façam demonstrar que a liberdade do agente trará prejuízo para o tramitar processual. O terceiro e último requisito é o previsto no artigo 313 do CPP, que são as hipóteses de cabimento da prisão preventiva. Caso não esteja enquadrado em nenhuma das hipóteses ali presentes, não há que se falar em prisão preventiva, mesmo que os outros dois requisitos estejam presentes.
[22] Em seu artigo 342, o Código Penal (CP) brasileiro prevê o crime de falso testemunho ou falsa perícia, que se configura no ato de mentir ou deixar de falar a verdade nas seguintes situações: em juízo, processo administrativo, inquérito policial ou em juízo arbitral. As condutas, contra a administração da Justiça, somente podem ser cometidas por testemunha, perito, tradutor, contador ou intérprete. Atores essenciais da atividade judiciária, essas pessoas prestam informações que podem fundamentar decisões em processos. A realização de qualquer atividade prevista no artigo 342 do CP configura a consumação do crime, mesmo que o ato não produza consequências. O crime prevê pena de reclusão, de 2 a 4 anos, e multa.
A punição aumenta, de um sexto a um terço, no caso de o crime ter sido praticado mediante suborno ou com o fim de obter prova destinada a produzir efeito em processo penal, ou em processo civil em que for parte entidade da administração pública direta ou indireta. No caso de a pessoa se retratar ou declarar a verdade, o crime deixa de existir. A retratação, no entanto, deve ocorrer antes de a sentença ser prolatada. O Projeto de Lei 3778/20 amplia o espectro do crime de falso testemunho ou falsa perícia previsto no Código Penal. Entre outros pontos, o texto propõe que o tipo objetivo passe a prever o “não comparecimento à oitiva” ao lado das condutas de “fazer afirmação falsa, negar ou calar a verdade”.
Fonte: Agência Câmara de Notícias
[23] A origem do princípio nemo tenetur se detegere data do Ius Commune europeu e chega até sua final consolidação na common law inglesa através do privilege against self-incrimination e sua transferência para as colônias norte-americanas. O princípio nemo tenetur se detegere refere-se ao direito possuído por todo acusado de não cooperar com a persecução penal contra ele instaurada, abstendo-se de fornecer meios de prova que possam contribuir para a sua incriminação.
Tal princípio é originário do Ius Commune europeu e encontra seu equivalente no Sistema Jurídico da Common Law, através do privilege against self-incrimination. Trata-se de uma conquista da defesa técnica, pois restou consagrado, tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos da América após o esforço incansável dos advogados, que repudiavam a prática arbitrária do juramento ex officio bem como a presunção de que o silêncio do acusado produzia prova de sua culpabilidade. Também é corolário do abandono do sistema inquisitório e adoção do modelo acusatório. Acima de tudo, o princípio faz parte da humanização do direito penal e do processo penal, antes centrado no indivíduo como objeto e meio de prova, o que permitia a prática da tortura e penas cruéis.
A máxima latina nemo tenetur prodere se ipsum, conexa à nemo tenetur se detegere, não possui suas origens no direito romano, mas sim no Ius Commune europeu. O direito da Europa Medieval – Ius Commune – era um direito culto, formado por dois direitos: i) o direito civil, originário das compilações do Corpus Iuris Civile de Justiniano; ii) o direito canônico, cujos ditames estavam nas coleções que viriam a formar o Corpus Iuris Canonici, A princípio, o direito canônico se destinava à administração interna da Igreja Católica Apostólica Romana. Entretanto, gradualmente, sua jurisdição estendeu-se para atingir: i) objetivamente, qualquer matéria concernente à fé; e ii) subjetivamente, qualquer leigo que possuísse relação com a Igreja.3 Sobre o ius commune, ensina Melodie H. Eichbauer.
[24] O objeto da confissão é o fato criminoso e não sua capitulação jurídica. “A confissão recai sobre fatos, pois apenas dos fatos o réu se defende”. Sobre o fundamento histórico da confissão, Aury LOPES JR ensina que “No fundo, a questão situava-se (e situa-se, ainda) no campo da culpa judaico-cristã, em que o réu deve confessar a arrepender-se, para assim buscar a remissão de seus pecados (inclusive com a atenuação da pena, art. 65, III, “d”, do Código Penal). Também é a confissão, para o juiz, a possibilidade de punir sem culpa. É a possibilidade de fazer o mal através da pena, sem culpa, pois o herege confessou seus pecados”.
A questão mais relevante diz respeito à confissão obtida na fase policial e, posteriormente, retratada em juízo. Seguindo a linha de pensamento desenvolvida, somente a confissão feita em juízo poderia ser utilizada no julgamento (junto com as demais provas, é claro). Assim, quando houver confissão na fase pré-processual e retratação na fase processual, não existiu confissão alguma a ser valorada na sentença. Advertimos, contudo, que ainda predomina o entendimento na jurisprudência que o juiz pode formar seu convencimento a partir da confissão feita na fase policial, o que nos parece um absurdo. (…) Assim, pode-se concluir que a confissão tem como características principais, além da pessoalidade e da espontaneidade, a divisibilidade e a retratabilidade.
[25] O direito ao silêncio como o conhecemos é oriundo do Ius Commune europeu, estando contido em seu popular manual, o Speculum Iudiciale. Outros diplomas canonistas asseguravam a proteção ao penalmente imputado, processo que sofreu verdadeiro retrocesso com a realização do IV Concílio de Latrão pela Igreja Católica Apostólica Romana, o qual instauraria o processo inquisitório do medievo. Somente com o advento do Iluminismo temos o retorno do reconhecimento das garantias ao imputado, em se tratando da Europa Continental. Entretanto, é no Direito Inglês que o princípio, através do privilege against selfincrimination encontra sua proteção, a qual é uma conquista da defesa técnica, fruto da irresignação com as cortes eclesiásticas de Star Chamber e High Comission. O direito norte-americano estenderia a proteção dada pelo privilege disciplinando-o constitucionalmente em 1791.
[26] Para o jurista Lenio Streck, há sim uma politização das ações do Supremo Tribunal Federal (STF). No entanto, avalia o especialista, essa não é uma particularidade da Suprema Corte brasileira. O problema seria a adoção em reviravoltas de medidas com consequências para a política. “Toda Suprema Corte do mundo tem viés político. Questão é que o órgão não pode surpreender a comunidade política nem se sobrepor a ela. Aos olhos da população e da política, as decisões dos últimos dias parecem um atravessamento do STF pelas consequências que a medida tem.”
[27] O delito de infração de medida sanitária preventiva, previsto no artigo 268 do Código Penal, adquire realce no atual contexto pandêmico causado pelo novo coronavírus (Covid-19) porque ele é expressamente previsto por diversos atos normativos como uma das consequências do descumprimento de deveres individuais relacionados ao isolamento social, exames e tratamentos médicos específicos, testes laboratoriais e, inclusive, o uso obrigatório de máscaras de proteção facial.
[28] Como o primeiro conceito foi trazido recentemente para o Brasil, a sua tradução se deu ao pé da letra, resultando em “além da dúvida razoável”. Quanto à palavra “standard“, que seria tradução da palavra padrão e que guarda pouca relação com o tema a seguir abordado, esclareça-se que será utilizada a própria palavra em inglês, ante a inexistência de tradução com significado idôneo.
Quanto ao significado de standard, a doutoranda e Juíza de Direito do Paraná, Simone Trento defende que seria a intensidade de prova a ser alcançada para que o juiz possa proferir uma decisão fundada em certo fato jurídico. Este standard indica um ponto mínimo que deve ser alcançado para que se chegue à constatação dos fatos objetos da prova.
Já beyond a reasonable doubt, de acordo com os autores americanos James Q. Whitman Milley W. Shealey Junior seria um conceito que a própria Suprema Corte Americana falhou em definir com precisão.
Whitman inicia seu artigo afirmando que nos Estados Unidos, pelo menos na teoria, ninguém poderá ser condenado por um crime sem absoluta certeza sobre sua culpa. Explica que se o réu não confessar, todos os elementos essenciais da culpa deverão ser comprovados ao Júri e provados beyond a reasonable doubt. Quanto à expressão, esclarece que não está expressa na Constituição, bem como que passou a ser aplicada nos Estados Unidos a partir de 1798, tendo sido reconhecida pela Suprema Corte americana como standard do direito constitucional somente em 1970. A partir deste momento, a Corte teria passado a insistir na fundamental importância da aplicação deste princípio.
De acordo com Whitman, a história da regra da dúvida razoável seria a luta entre os ingleses e os desafios cristãos ocidentais universais. Os cristãos também eram jurados e, portanto, se submetiam aos atos de julgamento. Durante a Idade Média inglesa, os jurados não eram obrigados a ditar o veredicto de “culpado” e, portanto, não colocavam as suas almas em risco, no entanto, no período moderno, o medo da condenação surgiu e esta situação mudou. Os jurados tinham muito receio de condenar alguém quando houvesse a mínima possibilidade de inocência.
[29] Na obra de Deltan Martinazzo Dallagnol, onde o referido autor abordou o standard como uma alternativa aos conceitos inadequados de verdade e certeza, na indicação de um nível de convicção suficiente para uma condenação criminal. No quinto capítulo, abordou-se as diferenças e similitudes entre o princípio in dubio pro reo e o standard beyond a reasonable doubt, inferindo-se que, diferentemente do in dubio pro reo, o standard americano admitiria uma condenação, mesmo quando houvesse dúvida e desde que esta dúvida fosse ínfima, imaginária, não razoável. Por último, colacionou-se alguns julgados brasileiros, demonstrando a aplicação do padrão americano no Brasil. Exemplificou-se a aplicação do referido standard em diversos julgados, inclusive no “Mensalão” e na “Lava-jato”.
[30] Bottino (2009) registrou: “No julgamento do caso Twining v. State, 211 U.S. 78 (1908), ocorrido em 09/11/1908, a Suprema Corte dos EUA decidira que as primeiras oito emendas à Constituição – dentre elas a que garantia o direito de não se autoincriminar, a 5ª emenda – restringiam apenas o poder estatal da união (governo federal) e não se aplicavam às jurisdições dos Estados.
A decisão da Suprema Corte naquele caso estabeleceu a existência de dois tipos de cidadania diferentes nos EUA: uma nacional e outra estadual. Assim, se um determinado direito, privilégio ou imunidade, embora fundamental, não decorre das características do federalismo e não está especificamente previsto na Constituição como oponível aos Estados não pode ser alegado em processos criminais desenvolvidos no âmbito da jurisdição local. Ainda segundo a Suprema Corte, embora a 14ª emenda tenha incorporado à jurisdição federal e à estadual a cláusula do devido processo legal – com intuito de restringir o uso do poder estatal e evitar ações arbitrárias que pudessem atingira liberdade e os bens dos indivíduos – não chega ao ponto de impor o respeito, por parte da justiça dos estados, da garantia de vedação de autoincriminação quando esse direito não tiver sido incorporado pela legislação dos estados.
O fato de a garantia de vedação de autoincriminação constituir um direito referido em separado pela Constituição, na 5ªemenda, conduz à conclusão de que se trata de um direito destacado do devido processo legal. Portanto, na opinião da Suprema Corte, a garantia de vedação de autoincriminação não faz parte da common law existente desde antes da independência das colônias dos EUA e, por fim, não pode ser apontada como um elemento indissociável do devido processo legal, com o significado que a 14ª emenda lhe conferiu. Com base nesses argumentos a Suprema Corte decidiu seguir o stare decisis (o entendimento que vinha sendo fixado desde então para situações semelhantes) e não modificar o resultado do julgamento em que Albert C. Twining – diretor e um banco acusado da prática do crime de exibição de documentos falsos ao fiscal do banco central dos EUA com o intuito de prejudicar a avaliação da saúde financeira da instituição – alegava ter tido seu direito violado em razão da instrução dada aos jurados de que eles poderiam considerar a recusa do acusado em testemunhar como uma evidência de que o mesmo praticara o crime que lhe era imputado.
A jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos da América indica que, embora sejam produções legislativas dos séculos XVIII e XIX, a 5ªe 14ª emendas só foram transformadas em garantias efetivas na década de 60 do século XX, no bojo da campanha pela igualdade de direitos civis nos EUA, conhecido como civil rights movement, cujo período de maior efervescência ocorreu entre 1955 e 1965.
Há momentos marcantes desse processo de expansão dos direitos dos cidadãos e de efetivação material das garantias constitucionais, como a decisão da Suprema Corte no caso Brown v. Board of Education, 347 U.S. 483 (1954); a campanha de boicote às empresas de ônibus de Alabama nos quais os negros deveriam sentar-se separados dos brancos (1955); a “integração” de uma escola em Little Rock, no Arkansas, com a presença do exército (1957); dentre vários outros que culminaram, em 1963, com a presença de duzentas mil pessoas na “Marcha sobre Washington” reunidas para ouvir o famoso discurso “I have a dream” de Martim Luther King. Portanto, apesar das centenárias previsões constitucionais acerca do direito de não se autoincriminar, será somente no contexto social dos anos 60 do século XX que a garantia revelar-se-ia deforma efetiva, como no famoso julgado da Suprema Corte dos Estados Unidos Miranda v. Arizona, 384 U.S. 436 (1966)”.
[31] Foi um caso da Suprema Corte dos EUA que sustentava que os suspeitos de crimes tinham direito a um advogado durante os interrogatórios policiais sob a Sexta Emenda. O caso foi decidido um ano depois que o tribunal decidiu em Gideon versus Wainwright que os réus criminais indigentes têm o direito de receber um advogado no julgamento.
[32] A Suprema Corte Americana em um caso histórico denominado Miranda vs Arizona (384 U. S. 436), por cinco votos a quatro decidiu que “antes de qualquer questionamento, uma pessoa deve ser informada que ela tem o direito de permanecer calada, e que qualquer depoimento que fizer poderá ser usado como prova contra si mesma.”
[33] No Brasil, os direitos e garantias individuais foram introduzidos desde a Constituição Imperial de 1824, cujo rol apresenta-se no Título 8º: “Das Disposições Geraes, e Garantias dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brazileiros” em seu artigo 179, sob a forma de trinta e cinco incisos (BRASIL, 1824). Dentre eles encontramos, por exemplo, a liberdade de locomoção, a inviolabilidade do domicílio, a possibilidade de prisão somente em flagrante delito ou por ordem da autoridade competente, e a igualdade perante a lei.
[34] Para António Pedro Barbas Homem, a “verdade brilha e guia a nossa liberdade e a nossa vontade”, ao passo que a mentira, ao contrário, “conduz-nos à escuridão e ao vazio”. De acordo com esse autor, “o problema da verdade antecede o da justiça”, daí concluir-se que “uma decisão não pode ser justa se não for verdadeira”.
Por estas razões, esse jurista chegou à conclusão de que, diferentemente do silêncio e de ficar calada, uma pessoa acusada de praticar um crime, não pode, diante de um juiz, mentir, “pois tal significava aceitarmos a mentira como critério de organização da sociedade”. Na doutrina portuguesa, Manuel Lopes Maria Gonçalves salienta, a esse respeito, que a questão não tem grandes repercussões práticas, na medida em que, em qualquer caso, será inexigível do acusado o dever de verdade.
[35] Não se pode concordar com a assertiva de que o princípio do nemo tenetur se detegere assegure o direito à mentira. […] A questão assemelha-se à fuga do preso. Pelo simples fato de a fuga não ser considerada crime, daí não se pode concluir que o preso tenha direito à fuga. Tivesse ele direito à fuga, estar-se-ia afirmando que a fuga seria um ato lícito, o que não é correto, na medida em que a própria Lei de Execuções Penais estabelece como falta grave a fuga do condenado (LEP, art.50, inciso II).
Na verdade, por não existir o crime de perjúrio no ordenamento pátrio, pode-se dizer que o comportamento de dizer a verdade não é exigível do acusado, sendo a mentira tolerada, porque dela não pode resultar nenhum prejuízo ao acusado. Logo, como o dever de dizer a verdade não é dotado de coercibilidade, já que não há sanção contra a mentira no Brasil, quando o acusado inventa um álibi que não condiz com a verdade, simplesmente para criar uma dúvida na convicção do órgão julgador, conclui-se que essa mentira há de ser tolerada por força do nemo tenetur se detegere.
Não é unânime, para a doutrina brasileira, a possibilidade de o acusado mentir em processo criminal. Enquanto de um lado há quem defenda a conduta como um direito decorrente da extensão dos princípios da ampla defesa e não incriminação, outros doutrinadores apontam para a existência apenas de uma tolerância à mentira, posto que não há uma tipificação para a conduta, conforme esclarece Palis (2016).
[36] Cumpre esclarecer ainda que o entendimento de que o réu poderá mentir em juízo, reconhecido inclusive pelo STF, diz respeito apenas aos questionamentos acerca dos fatos a si imputados, pois sabe-se, também, que a autodefesa não é um direito absoluto. Isto porque, por exemplo, se o réu, no interrogatório, imputar falsamente o crime a pessoa inocente, deverá responder pelo delito de denunciação caluniosa, tipificado no art. 399 do Código Penal.
[37] Seja como for, o que se pretende esclarecer de maneira muito breve, é que a intenção da redação de referida norma foi, precisamente, justa e razoável, na medida em que pensada para impedir a prisão do indivíduo, sem a sólida certeza de sua condenação – o que, de certa forma, poderia levar o Estado a incorrer em tremenda injustiça, caso, após o término do processo, se concluísse pela inocência do acusado. Decisão do Supremo Tribunal Federal acerca do tema, em julgamento do Habeas Corpus 126.292/SP, de relatoria do Exmo. min. Teori Zavascki. Na ocasião, por 6 votos a 5, o Plenário do STF firmou o entendimento de que, confirmadas as condenações criminais pelas decisões de segundo grau (isto é, aquelas proferidas pelos Tribunais, onde questões de fato e de direito, analisadas pelo juiz de primeiro grau, já foram revistas por um colegiado) poder-se-á, desde logo, executar a pena de prisão, não sendo necessário, portanto, aguardar a interposição e tramitação dos recursos destinados aos Tribunais Superiores. Encontra-se aqui, porém, um pequeno problema de compatibilização com a norma fundamental disposta no art. 5.º, LVII da CF, acima referida.
Ora, pois, veja-se que, enquanto o constituinte estabeleceu a impossibilidade de condenação antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória (que só ocorreria após tramitação dos últimos recursos perante a Instância Especial), o Supremo decidiu por caminho absolutamente oposto, viabilizando, logo após as decisões de segunda instância, a prisão do acusado – e formando, portanto, o que se poderia chamar de execução provisória de pena. In: GENOSO, Gianfrancesco. O STF e a presunção de inocência: princípio em extinção? Disponível em:https://www.migalhas.com.br/depeso/280768/o-stf-e-a-presuncao-de-inocencia–principio-em-extincao Acesso em 19.6.2021.
[38] Por fim, juntamente com os direitos fundamentais existe uma segunda dimensão, representada pelos deveres fundamentais, isto é, o dever do homem de respeitar determinados valores relevantes para a vida em comunidade, questão analisada por Gregórios Robles, in litteris: “A dignidade do ser humano não consiste em cada um exigir seus direitos e que tudo lhe pareça pouco para afirmar a sua personalidade, mas, sobretudo, consiste em cada um assumir seus deveres como pessoa e como cidadão e exigir de si mesmo seu cumprimento permanente. Os direitos devem ser os canais institucionais que permitam a realização dos deveres”.
[39] Carter v. Kentucky foi um caso em que a Suprema Corte dos EUA considerou que os juízes de julgamento em processos criminais devem, mediante solicitação adequada do réu, informar o júri sobre seu direito contra a autoincriminação e que sua execução não pode ser usada contra ele. Na manhã de sexta-feira, 22 de dezembro de 1978, enquanto ainda estava escuro, a policial Deborah Ellison do Departamento de Polícia de Hopkinsville em Hopkinsville, Kentucky, notou algo estranho no beco entre a loja de ferragens Young e a loja de móveis Edna. Depois de iluminar o beco com seu holofote, ela viu dois homens que imediatamente fugiram do local. Depois de dirigir pelo beco, ela encontrou um buraco na lateral da loja de ferragens. Sabendo que ele estava na área, ela chamou o oficial Leroy Davis pelo rádio, razoavelmente suspeitando, com base na totalidade das circunstâncias, que estavam envolvidos em atividade criminosa, porque:
1) Estavam em um beco no escuro; 2) Eles fugiram imediatamente; e 3) houve uma vaga para a loja na área em que estavam. O policial Ellison inspecionou o beco. Ao mesmo tempo, o oficial Davis viu os dois homens correrem em direções diferentes e, após uma perseguição, parou um, cujo nome era Lonnie Joe Carter.
Carter deixou cair uma bolsa de ginástica e um rádio sintonizado em uma banda do Police. Quando foi pego, ele estava de luvas, mas sem jaqueta. O policial Ellison encontrou duas jaquetas masculinas, bem como algumas mercadorias roubadas no beco perto do buraco na parede. Depois de ser levado a ela, o oficial Ellison observou ao oficial Davis que Carter “tinha altura e peso semelhantes a um dos homens no beco, e que ele usava roupas semelhantes.”
Ela não poderia dar uma identificação mais positiva, no entanto, porque o beco estava escuro. Carter foi levado para a sede da Polícia. O conselho de Carter solicitou no julgamento que o júri recebesse a seguinte instrução: “O [réu] não é obrigado a testemunhar e o fato de que ele não o faz não pode ser usado como uma inferência de culpa e não deve prejudicá-lo de nenhuma forma.”
O juiz, entretanto, recusou o pedido, e o Júri o considerou culpado de roubo de terceiro grau, recomendando a sentença de dois anos de prisão. Em seguida, ocorreu a fase reincidente do julgamento, na qual a promotoria apresentou evidências de condenações por crimes anteriores. A defesa não apresentou provas, e o júri o considerou culpado como um agressor persistente, condenando-o a vinte anos de prisão. Carter apelou. A Suprema Corte do Estado de Kentucky argumentou duas coisas:
1) Não há jurisprudência no âmbito da jurisdição apoiando a ideia de que as Quinta e Décima Quarta Emenda processual devido processo direitos incluídos o direito de ter o Júri ser informado do privilégio contra a autoincriminação; e
2) O juiz teria que comentar sobre a falha do réu em testemunhar, violando o Estatuto Revisado de Kentucky 421.225. Como o estatuto conforme interpretado não violou a Constituição conforme interpretado, o Estatuto deve controlar os procedimentos dentro do tribunal. Assim, a Suprema Corte afirmou a decisão em Green v. Commonweath, afirmando a condenação do tribunal de primeira instância. Carter apelou.