Participação Especial: Adv. Juliana Rodrigues Barreto Cavalcante – OAB 35470/CE

No ano de 2019, a influencer Mariana Ferrer usou suas redes sociais para denunciar estupro que aconteceu em 2018, em uma casa noturna de luxo, em Santa Catarina.

Mariana teria sido dopada no momento do crime e não possuía condições de oferecer resistência ao ato.

Tempos depois, instaurou-se um processo de estupro de vulnerável, e em setembro de 2020, o caso foi julgado pelo juízo da 3a Vara Criminal de Florianópolis que, por sua vez, absolveu o empresário Andre de Camargo Aranha.

Os processos de apuração de crimes contra a dignidade sexual devem correr em segredo de justiça, no intuito de preservar as partes envolvidas.

Entretanto, sabe-se que o conteúdo processual foi amplamente divulgado nas mídias digitais, e logo, as pessoas tiveram acesso às peças jurídicas.

A discussão que ganhou foco nas redes sociais envolvia um suposto argumento de “estupro culposo”.

Durante aproximadamente uma semana, diversos veículos de informação publicaram matérias informando ao leitor que a fundamentação da sentença acolheu a tese absurda do estupro culposo, quando na verdade não foi isso o que aconteceu, mas sim, o argumento de erro sobre elemento constitutivo do tipo.

Explico: não existe tipificação penal para estupro culposo. A modalidade culposa é incompatível com o crime de estupro ou o estupro de vulnerável.

Na verdade, entendeu-se que o réu não tinha conhecimento de que a vítima estava drogada, e assim ele achou que o ato sexual tivesse sido consentido.

A propósito, a defesa do empresário utilizou fotos sensuais de Mariana, produzidas enquanto modelo, como reforço para tal consensualidade.

Desse modo, aplica-se a fundamentação do erro sobre elemento constitutivo do tipo. Ou seja, mesmo o réu não tendo um consentimento externado pela vítima, se achou no direito de estuprá-la.

Atenção: se não houver manifestação positiva da vontade, é estupro. E se a mulher tiver dificuldade de manifestar sua vontade, também se considera estupro.

Porém… a sentença absolveu o empresário… ou seja, as provas apresentadas e a oitiva das testemunhas não foram suficientes para o convencimento do julgador.

E para além da tese do “estupro culposo” ter sido ou não defendida, não podemos perder o foco da reprovabilidade dessa sentença, que absolveu estuprador, e da conduta dos envolvidos durante a audiência, que embasa a propagação da cultura do estupro pelas mãos de quem deveria combatê-la.

A partir do vídeo da audiência, percebe-se que a  vítima foi nitidamente constrangida e humilhada. Isso pode interferir inclusive na produção dos depoimentos. Mais uma vez o Judiciário é usado como espaço de revitimização de violência sofrida pelas mulheres.

E pior do que ser violentada é ter seu corpo e sua imagem como centro de um debate público e de um processo onde quem decide são homens, de acordo com sua própria ótica e com base em seus “valores morais”.

O juiz tem a obrigação de impedir o desrespeito à vítima, a quem quer que seja. E o sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação.
Além da discussão do mérito, é preciso questionar essa postura dos atores envolvidos no julgamento do caso.

É preciso dialogarmos sobre a banalização da cultura do estupro e a seletividade do sistema Judiciário. A misoginia e o machismo vitimam as mulheres diariamente e aberrações como a deste processo não podem ocorrer.

Por fim, ainda que os homens digam que a mulher deu causa ao estupro, ela permanece vítima, e a culpa não pode ser atribuída à vítima.

Dentro dessa ótica o Direito me parece pensado por homens e para homens, servindo à lógica masculina e à manutenção de privilégios. Para que o Direito não seja um reprodutor dessa violência, não podemos permitir que as estruturas de poder sejam usadas para tirar a culpa do corpo dominante.

Dados processuais: Autos de n° 0004733-33.2019.8.24.0023
Ação: Ação Penal – Procedimento Ordinário/PROC
Juízo: 3a Vara Criminal – Florianópolis – SC

 

Autora do artigo: Adv. Juliana Rodrigues Barreto Cavalcante. Mestra em Direito.