Acordo de não persecução penal
Em vigor desde janeiro deste ano, a Lei 13.964/19 implementou efetivamente no macrossistema processual penal o acordo de não persecução penal. Como já afirmado em outras oportunidades, o acordo, antes, era regulamentado pela Resolução 181 do Conselho Nacional do Ministério Público, o que já gerava vários questionamentos desde a legalidade até a efetiva aplicabilidade. O fato é que, agora instituído por Lei Federal, o acordo está posto, em vigor, e portanto, aplicável e em pleno funcionamento.
Desta forma, excogita-se a hipótese: o acordo de não persecução penal é aplicável a processos em andamento? Como já sabemos, o momento processualmente idealizado para o oferecimento do acordo pelo legislador é o que antecede à denúncia ministerial: o órgão acusador, ao entender por denunciar o investigado, deve, antes, fazer a análise do cabimento de acordo, o que é, além de um poder, dever legal, repisemos.
Ocorre que ao entrar em vigor, centenas de milhares de processos já denunciados e em curso eram perfeitamente adequados ao acordo, porém, por já estarem judicializados, o entendimento pelo cabimento foi bastante controvertido. Muitos entenderam pela retroatividade do ANPP por ser norma penal híbrida benéfica – pois causa efeitos na esfera processual, obstando o oferecimento da denúncia, mas também na sera material, porquanto gera extinção da punibilidade -, o que reclama a referida retroatividade, nos termos do Art. 5º, XL, da Constituição Federal. Excogita-se ainda a possibilidade de ser oferecida após a sentença, mas quem entende pela retroatividade, normalmente costuma limitá-la até a prolação da sentença (JUNQUEIRA et al, 2020).
A respeito do tema, recentemente a 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, ao editar o Enunciado 98, deixou claro: é cabível oferecimento de acordo para ações em curso, limitado, todavia, até a sentença penal condenatória:
“É cabível o oferecimento de acordo de não persecução penal no curso da ação penal, isto é, antes do trânsito em julgado, desde que preenchidos os requisitos legais, devendo o integrante do MPF oficiante assegurar seja oferecida ao acusado a oportunidade de confessar formal e circunstancialmente a prática da infração penal, nos termos do art. 28-A da Lei n° 13.964/19 (Aprovado na 182ª Sessão Virtual de Coordenação, de 25/05/2020).”
Há pouco menos de um mês, porém, o enunciado foi editado de maneira mais restritiva:
“É cabível o oferecimento de acordo de não persecução penal no curso da ação penal, isto é, antes do trânsito em julgado, desde que preenchidos os requisitos legais, devendo o integrante do MPF oficiante assegurar seja oferecida ao acusado a oportunidade de confessar formal e circunstancialmente a prática da infração penal, nos termos do art. 28-A do CPP, quando se tratar de processos que estavam em curso quando da introdução da Lei nº 13.964/2019, conforme precedentes, podendo o membro oficiante analisar se eventual sentença ou acórdão proferido nos autos configura medida mais adequada e proporcional ao deslinde dos fatos do que a celebração do ANPP. Não é cabível o acordo para processos com sentença ou acórdão após a vigência da Lei nº 13.964/2019, uma vez oferecido o ANPP e recusado pela defesa, quando haverá preclusão (Alterado na 187ª Sessão Virtual de Coordenação, de 31/08/2020).”
Com este adendo, o próprio Enunciado entra em contradição: ora, se se pode oferecer o acordo, e como poder dever, deverá ser oferecido quando preenchidos os requisitos legais antes da sentença penal condenatória, qual sentido há em limitar, ao sabor do acusador, qual situação é mais “adequada e proporcional ao deslinde dos fatos”? É, portanto, margem perigosa que reforçará a seletividade penal. A análise de adequação e proporcionalidade deve partir da defesa, pois é quem representa o interessado e seu direito subjetivo, malgrado ainda há quem sustente que trata-se de prerrogativa da acusação. Seguimos.
NO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Os Tribunais Superiores divergem em suas decisões. A 5ª Turma do STJ entendeu que
“da simples leitura do art. 28-A do CPP, se verifica a ausência dos requisitos para a sua aplicação, porquanto o embargante, em momento algum, confessou formal e circunstancialmente a prática de infração penal, pressuposto básico para a possibilidade de oferecimento de acordo de não persecução penal, instituto criado para ser proposto, caso o Ministério Público assim o entender, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, na fase de investigação criminal ou até o recebimento da denúncia e não, como no presente, em que há condenação confirmado por Tribunal de segundo grau” (EDcl no AgRg no AREsp 1668298/SP).
Já a 6ª Turma do STJ, em Agravo Regimental no Habeas Corpus n.º 575395/RN, reconsiderou “a decisão inicial porque o cumprimento integral do acordo de não persecução penal gera a extinção da punibilidade (art. 28-A, § 13, do CPP), de modo que como norma de natureza jurídica mista e mais benéfica ao réu, deve retroagir em seu benefício em processos não transitados em julgado (art. 5º, XL, da CF).”
NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Por fim, no âmbito do Habeas Corpus n.º 185.913/DF, o Ministro Gilmar Mendes constatou que há divergência nos Tribunais infra e a potencial – já não potencial, porquanto factual – grande discussão sobre qual será o termo final para o oferecimento do ANPP, e, invocando a segurança jurídica, levará a discussão ao Plenário do Supremo Tribunal Federal por ser “questão afeita à interpretação constitucional, com expressivo interesse jurídico e social, além de potencial divergência entre julgados”.
O Ministro delimitou as seguintes indagações:
a) O ANPP pode ser oferecido em processos já em curso quando do surgimento da Lei 13.964/19? Qual é a natureza da norma inserida no art. 28-A do CPP? É possível a sua aplicação retroativa em benefício do imputado?
b) É potencialmente cabível o oferecimento do ANPP mesmo em casos nos quais o imputado não tenha confessado anteriormente, durante a investigação ou o processo?
Parece-nos, portanto, que teremos uma posição mais estável do Supremo. Isso porque já existem entendimentos monocráticos no STF. Luis Roberto Barroso afirmou não ser cabível ANPP após sentença condenatória, mesmo que não transitada em julgado, invocando os seguintes argumentos:
“À época da entrada em vigor das alterações promovidas pela Lei n. 13.964/2019, que incluiu no Código de Processo Penal o art. 28-A, já existia sentença condenatória contra o paciente, confirmada em segundo grau e pelo próprio Superior Tribunal de Justiça. Nessas condições, o caso atrai o entendimento do STF no sentido da “inviabilidade de fazer-se incidir o [artigo 28-A do Código de Processo Penal, incluído pela Lei nº 13.964/2019] quando já existente condenação, quer estando transitada em julgado, quer passível ainda de impugnação mediante recurso” (HC 191464/SC).
Carmén Lúcia, sustentou em Habeas Corpus sua relatoria:
“Como se extrai da terminologia mesma do instituto tem-se “acordo” de não persecução penal, não se vislumbrando, portanto, ilegalidade no despacho quando, por acréscimo, assenta-se óbice formal de aplicação do benefício a processo que tenha percorrido todas as instâncias processuais. O processo está em fase de formação do trânsito em julgado da condenação, após a rejeição, em 12.5.2020, dos embargos declaratórios opostos contra acórdão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, que manteve a negativa de seguimento do recurso extraordinário” (HC 186289 /RS).
Não se pode antecipar qual será o resultado da votação, até porque há poucos registros de manifestações dos Ministros do Supremo acerca de seus entendimentos. Todavia, parece mais acertada a posição desnudada no Enunciado 98 da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal. Mais importante ainda, por tratar-se de interesse do próprio Ministério Público que assim o seja. Como já consignado, o ANPP foi concebido no seio do Ministério Público, sendo de interesse do próprio órgão a resolução de conflitos criminais de menor “interesse”, não subsistindo sentido nas negativas ministeriais da propositura.
De qualquer forma, caberá ao Supremo Tribunal Federal confabular e decidir acerca do tema, o que, pelo “efeito cascata” da decisão, deverá nortear as decisões do próprio STF e Tribunais inferiores.