Noções preliminares

 

As relações interpessoais na sociedade contemporânea são pautadas na lei, a qual atribui consequências jurídicas aos atos e fatos praticados pelo indivíduo perante os seus pares. Todavia, no âmbito particular, estas relações se dão por meio de contrato, o qual, via de regra estatui obrigações e benesses recíprocos entre as partes.

 

A pessoa não é obrigada a contratar com outrem, mas, em havendo uma proposta e esta sendo aceita, nasce daí uma relação contratual que submete os contratantes a adimplirem com as obrigações que tenham assumido e não poderão se furtar a isto, haja vista que a pactuação se dá por mera vontade das partes, ao que se dá o nome de pacta sunt servanda (“os pactos devem ser observados”[i]).

 

Hodiernamente a obrigatoriedade de adimplemento dos contratos exatamente nos termos em que pactuados é observado com certa ponderação haja vista que em determinadas situações a ação de um elemento externo pode influenciar o modo de execução do contrato de modo a exercer um prejuízo para alguma das partes.

 

Nesta senda, há que se reconhecer que o Estado de Calamidade Pública imposto pelo advento da Pandemia em razão do comumente denominado Coronavírus ou Covid-19, implementou condição nunca imaginada e a qual a sociedade teve de adequar-se o que, na seara jurídica, se deu por meio da edição do Decreto Legislativo nº 6/2020 e da Lei nº 14.010/2020.

 

Pois bem, sem a pretensão de exaurir-se o tema, passa-se a fazer uma análise acerca da Teoria Geral dos Contratos e o âmbito de aplicação do Decreto Legislativo nº 6/2020 e da Lei nº 14.010/2020.

 

Teoria Geral dos Contratos

 

A grosso modo, pode-se dizer que o contrato é uma relação havida entre, pelo menos, duas pessoas (físicas ou jurídicas), em razão da manifestação de vontade de ambas e cujas obrigações e deveres de cunho patrimonial, atendo-se àquilo que seja permitido ou esteja em conformidade com a lei, cujo o cumprimento se torna obrigatório, sob as pena de submeterem-se às sanções previstas em lei.

 

A doutrina conceitua o contrato como

 

(…) o negócio jurídico bilateral pelo qual as partes buscam criar um vínculo patrimonial cujo objetivo é criar, regular, modificar ou extinguir obrigações entre elas e tutelar os interesses privados dos agentes de forma justa e equilibrada, bem como o interesse público e social através de disposições que não prejudiquem a sociedade nem terceiros, resguardando-se, em qualquer relação, os deveres decorrentes da boa-fé objetiva”.[ii]

 

Note-se, portanto, que o contrato visa regulamentar uma relação patrimonial particular entre os indivíduos, de forma justa e equilibrada, objetivando não só resguardar os direitos dos envolvidos, mas também da sociedade, em atinência à boa-fé objetiva.

 

A boa-fé objetiva impõe às partes um dever de conduta ilibada, ou seja, a pessoa deve agir de forma compatível com a vontade expressada para a realização do contrato a fim de que o ato negocial gere todos os efeitos legitimamente esperados pela outra parte.

 

Deste modo, ao firmar um contrato, os interessados devem praticar não somente os atos que se encontram discriminados no instrumento negocial, constituindo um ônus a abstenção de condutas que se mostrem incompatíveis com o objeto da avença.

 

Todavia, há circunstâncias exteriores ao ato negocial e a conduta dos agentes e que podem repercutir negativamente na execução do contrato, de modo que desequilibre a relação jurídica havida a tal ponto que sejam necessários ajustes à forma pela qual se dará o adimplemento da obrigação.

 

Diante de situações supervenientes e imprevisíveis é facultado a parte prejudicada invocar a lei para retificar as obrigações contratuais objetivando o reequilíbrio desta relação jurídica e, nesta ótica, em atenção ao disposto no Decreto Legislativo nº 6/2020, foi editada a Lei nº 14.010/2020.

 

 

As relações jurídicas, a pandemia e suas consequências: Decreto Legislativo nº 6/2020 e A Lei nº 14.010/2020

 

É de conhecimento público que o Covid-19 é uma doença de origem viral, que possui alto grau de propagação e se alastra de forma bastante célere, cuja principal forma de contágio é o contato com um portador do vírus ou com superfícies contaminadas, não havendo medicamentos conhecidos e cuja eficácia tenha sido comprovada.

 

Os principais métodos de combate ao Coronavírus abrangem cuidados de higiene pessoal básica, uso de equipamentos de proteção individual, higienização de locais e objetos, o distanciamento e, se possível, o isolamento social.

 

As medidas profiláticas de distanciamento e isolamento social repercutiram fortemente na economia mundial e nacional, haja vista que impôs às empresas e comércios a necessidade de se adequarem a uma nova realidade em que se fez necessário a implementação imediata de uma rotina de trabalho em residência de tantos colaboradores quanto possível e a necessidade de aquisição de mais insumos de limpeza e equipamentos de proteção individual a fim de mitigar o risco nas sedes dos estabelecimentos comerciais.

 

Em maior, ou menor grau, diversos empreendimentos tiveram que fechar seus estabelecimentos por um lapso temporal, o que lhes trouxe uma grande repercussão financeira e isso se desdobrou na redução do poder aquisitivo do brasileiro que teve uma redução salarial ou foi demitido em razão das nefastas consequências financeiras da instabilidade econômica decorrente do Coronavírus.

 

Pois bem, em território brasileiro, no âmbito jurídico, o reconhecimento formal da situação de calamidade imposta pela pandemia se deu através da edição do Decreto Legislativo nº 6/2020 cuja ementa assim dispõe: “reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública”.

 

Da análise do diploma legal em comento, evidencia-se que o Decreto Legislativo reconhece as repercussões econômicas, orçamentárias e financeiras na esfera pública, haja vista o inegável impacto da situação de calamidade pública na capacidade de arrecadação do Estado[iii].

 

Em atenção a situação reconhecida através do Decreto Legislativo nº 6/2020, foi editada a Lei nº 14.010/2020, a qual “dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid-19)”.

 

A Lei nº 14.010/2020 é lei temporária e terá sua aplicação adstrita a atos e fatos jurídicos ocorridos no período em que perdurar a pandemia do coronavírus (Covid-19), sendo considerado como marco inicial 20 de março de 2020, dia de publicação do Decreto Legislativo nº 6/2020.

 

A própria norma prevê que “a suspensão da aplicação das normas referidas nesta Lei não implica sua revogação ou alteração” (vide artigo 2º da Lei em comento), isto porque a Legislação não busca alterar de forma perene as relações jurídicas que já se encontravam consolidadas, mas, tão somente, sanar algumas distorções que pudessem influir no modo de execução daquilo que já se encontrava avençado.

 

Assim sendo, o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) trouxe regramento especial (artigo 3º) quanto o decurso dos prazos prescricionais e decadenciais para estabelecer que “consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020”. Todavia, tal previsão será inaplicável “enquanto perdurarem as hipóteses específicas de impedimento, suspensão e interrupção dos prazos prescricionais previstas no ordenamento jurídico nacional”.

 

A norma previa, ainda, hipóteses de resilição, resolução e revisão dos contratos em seu capítulo IV, artigos 6º e 7º, contudo estes dispositivos foram alvo de veto ao entender que institutos como força maior e do caso fortuito e teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva seriam suficientes a sanar os desequilíbrios contratuais decorrentes da pandemia e, portando, tais dispositivos se mostravam contrários ao interesse público.

 

Com relação aos contratos consumeristas a Lei nº 14.010/2020, traz a que “até 30 de outubro de 2020, fica suspensa a aplicação do art. 49 do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de entrega domiciliar (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos”.

 

Observa-se que houve uma mitigação ao denominado direito de arrependimento (hipótese que permite ao adquirente solicitar a resilição/cancelamento do contrato de forma unilateral quando o produto não for adquirido no próprio estabelecimento comercial, mas de forma remota) do consumidor apenas para produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos.

 

Em sua redação original o REJT previa, no artigo 9º, a hipótese de não concessão de medida liminar de despejo às ações ajuizadas a partir de 20 de março de 2020, quando houvesse o descumprimento do mútuo acordo para a desocupação do imóvel; extinção do contrato de trabalho; a permanência do sublocatário no imóvel, extinta a locação, celebrada com o locatário; findo o prazo notificatório para apresentação de garantia locatícia; o término do prazo da locação não residencial, tendo sido proposta a ação em até 30 (trinta) dias do termo ou do cumprimento de notificação comunicando o intento de retomada; e a falta de pagamento de aluguel e acessórios da locação no vencimento, estando o contrato desprovido de qualquer das garantias previstas no art. 37, por não ter sido contratada ou em caso de extinção ou pedido de exoneração dela, independentemente de motivo.

 

Ocorre, contudo, que o citado artigo 9º foi vetado consignando-se na mensagem de veto que

 

A propositura legislativa, ao vedar a concessão de liminar nas ações de despejo, contraria o interesse público por suspender um dos instrumentos de coerção ao pagamento das obrigações pactuadas na avença de locação (o despejo), por um prazo substancialmente longo, dando-se, portanto, proteção excessiva ao devedor em detrimento do credor, além de promover o incentivo ao inadimplemento e em desconsideração da realidade de diversos locadores que dependem do recebimento de alugueis como forma complementar ou, até mesmo, exclusiva de renda para o sustento próprio.[iv]

 

A Lei nº 14.010/2020 regulamenta outras tantas situações de relevância no âmbito do direito privado, porém que não guardam relevância para o objeto de estudo do presente artigo, razão pela qual não serão abordadas neste momento.

 

Conclusão

 

Em que pese os contratos limitarem-se a regulamentar relações jurídicas particulares os seus efeitos interessam não só aos envolvidos, mas a toda a sociedade dada a sua finalidade social, razão pela qual encontram respaldo no ordenamento jurídico e merecem tutela estatal, sendo admissível o questionamento de seus termos perante o Poder Judiciário, especialmente quando há a ocorrência de fato superveniente que implique repercussão em sua forma de execução de forma a ocasionar um desequilíbrio contratual.

 

Esta premissa é o substrato que tornou possível erigir a Lei 14.010/2020 a qual veio para tentar aparar eventuais arestas negociais havidas da implementação do Estado de Calamidade Pública em função da pandemia de Coronavírus (Covid-19).

 

Observa-se que a norma não alcançou a plenitude de situações a qual se propôs, em parte, em razão dos vetos que limitaram a temática abordada na proposta legislativa, em parte, porque é humanamente impossível abarcar todas as hipóteses casuísticas que possam advir da situação de emergência de saúde pública ocasionada por doença altamente contagiosa e que possui impactos econômicos e culturais de grande monta.

 

Não obstante, há que se reconhecer que as previsões contidas no Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) são de grande valia e serão favoráveis a uma infinidade de cidadãos e empresas que se vejam de alguma forma em situação de vulnerabilidade econômica em dada relação contratual.

 

Outrossim, situações que não se encontrem regulamentadas na norma em comento, ainda poderão ser levadas à apreciação do Poder Judiciário à luz das Teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva, haja vista a ocorrência de caso fortuito ou força maior, merecendo ponderação casuística pelo magistrado que as apreciar.

 

Referências

 

ASSIS NETO, Sebastião de; JESUS, Marcelo de; MELO, Maria Izabel de. Manual de Direito Civil, volume único: 2. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Editora Juspodivm, 2014.

 

BRASIL. Decreto Legislativo nº 6/2020. Reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020. Brasília: 2020. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/portaria/DLG6-2020.htm >. Acesso em 26/06/2020.

 

BRASIL. Lei nº 14.010/2020. Dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid-19). Brasília: 2020. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L14010.htm#:~:text=Art.%201%C2%BA%20Esta%20Lei%20institui,coronav%C3%ADrus%20(Covid%2D19). >. Acesso em 26/06/2020.

 

GAGLIANO, Pablo Stolze. OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Comentários à Lei da Pandemia (Lei 14.010/2020). Disponível em < https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/859582362/comentarios-a-lei-da-pandemia-lei-14010-2020 >. Visitado em 10/07/2020.

 

MORAIS, Vanessa. Lei 14.010 cria regime jurídico emergencial para relações de Direito Privado durante pandemia. Disponível em < https://www.megajuridico.com/lei-14-010-cria-regime-juridico-emergencial-para-relacoes-de-direito-privado-durante-pandemia/ >. Visitado em 15/07/2020.

[i] ASSIS NETO, Sebastião de; JESUS, Marcelo de; MELO, Maria Izabel de. Manual de Direito Civil, volume único: 2. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Editora Juspodivm, 2014. p. 833.

[ii] Idem, Ibdem, p. 838.

[iii] Leia-se: Art. 1º Fica reconhecida, exclusivamente para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, notadamente para as dispensas do atingimento dos resultados fiscais previstos no art. 2º da Lei nº 13.898, de 11 de novembro de 2019, e da limitação de empenho de que trata o art. 9º da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, com efeitos até 31 de dezembro de 2020, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020.

[iv] Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-331.htm >. Visitado em 01/08/2020