CONFLITOS ENTRE AS OPERADORAS

De acordo com a Nota de Acompanhamento de Beneficiários nº 45, divulgada pelo Instituto de Estudos em Saúde Suplementar (IESS), no Brasil, os Planos de Saúde Médico-hospitalares já somam o total de 47.046.729 beneficiários, representando um percentual de 22,3% de Taxa de cobertura Nacional.

Os Planos de Saúde exclusivamente odontológicos, por sua vez, alcançaram a marca histórica de 26.012.855 beneficiários, com Taxa de Cobertura Nacional em 12,3%. No comparativo anual – Fev/2019 a Fev/2020 – enquanto os Planos Médico-hospitalares obtiveram um crescimento de 0,3%, os Planos Exclusivamente Odontológicos chegaram a 6,9%.

Tais números evidenciam não só o aumento da procura pelos serviços odontológicos, como também uma nova perspectiva para o mercado de saúde suplementar, com destaque às operadoras que trabalham na segmentação exclusivamente odontológica que deverão atender satisfatoriamente a demanda pela cobertura da oferta contratada.

Com o aumento da demanda, surge a necessidade das operadoras em estabelecer regras contratuais que permitam controlar os custos e a qualidade dentro de preceitos éticos e legais. A auditoria odontológica, portanto, acaba por se consolidar como uma ferramenta essencial de gestão, apta a manter a higidez do sistema complementar de saúde bucal.

Exercida exclusivamente por um cirurgião-dentista (Resolução CFO nº 118/2012, art. 31, inciso IV), a auditoria odontológica consiste basicamente em um processo educativo que tem como enfoque a fiscalização dos contratos, atendimento e tratamentos, a fim de garantir o cumprimento das normas e itens contratuais entre empresas, credenciados e usuários.  Serve, por fim, como monitoramento da qualidade dos serviços oferecidos, prevenindo a má conduta.

Inobstante que se trata de uma efetiva ferramenta que garante a consolidação das regras de funcionamento da operadora e bom desempenho pelo profissional, a atividade de auditoria está inserida em um contexto historicamente litigioso, no qual estão envolvidos os seguintes agentes: operadoras de planos odontológicos, prestadores de serviços, beneficiários, e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANS).

Neste cenário, merece destaque os conflitos que surgem da relação entre as operadoras de planos de assistência odontológica e os prestadores de serviços. Com o aumento da demanda, as operadoras buscam cada vez mais racionalizar os gastos dos serviços com saúde impondo mecanismos de regulação para o controle de acesso à rede de serviço.

Criada pela Lei nº 9.961/1999, A ANS tem por finalidade institucional promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores, contribuindo para o desenvolvimento das ações de saúde no País (Art. 3º).

Dentre as atribuições da ANS, compete a fiscalização da atuação das operadoras de planos de saúde, bem como avaliar os mecanismos de regulação utilizados no âmbito da saúde suplementar.

Na tentativa de regulamentar a matéria, o Conselho Nacional de Saúde Suplementar (CONSU) publicou a Resolução 08, de 03 de novembro de 1998, a qual vedou expressamente o uso dos mecanismos de regulamentação em contrato de planos de saúde que implique em limitação da assistência.

Todavia, a instituição de protocolos e fluxos que dificultam a realização de procedimentos e o co-pagamento aos prestadores de serviços são ferramentas adotadas pelas operadoras e não reguladas, o que pode resultar na fragmentação do cuidado e interferir na qualidade dos serviços.

Nesta conjuntura, seria de grande valia a atividade do profissional auditor, cuja função precípua é zelar pela manutenção da qualidade dos serviços prestadora, não fosse pelas pressões econômicas exercidas pelas operadoras em restringir o acesso à assistência através da adoção irregular dos mecanismos de regulação, o que acaba desnaturando o objeto principal da auditoria odontológica.

Importante mencionar que a Resolução ANS nº 124/2006, em seu artigo 71, sujeita às penalidades de advertência e multa no valor de R$ 30.000 (trinta mil reais) a operadora que descumprir as regras previstas na legislação ou no contrato referentes à adoção e utilização dos mecanismos de regulação do uso dos serviços de saúde.

O dispositivo, entretanto, é absolutamente esvaziado de seu conteúdo na medida em que não há uma espécie de protocolo geral que estabelece orientações técnicas de auditoria em odontologia na rede suplementar, ao contrário do SUS, que já conta com a segunda edição revista e atualizada. [2]

Para suprir esta lacuna normativa, o profissional odontólogo que exerce a função de auditor se socorre às regras gerais da ANS e, sobretudo, aos preceitos do Código de Ética Odontológico. Frise-se, neste particular, o dispositivo do artigo 10, inciso I, da norma deontológica, verbis:

Art. 10. Constitui infração ética:

I – deixar de atuar com absoluta isenção quando designado para servir como perito ou auditor, assim como ultrapassar os limites de suas atribuições e de sua competência

[…]

De início, verifica-se que o dispositivo consagrou em primeiro lugar o dever de atuar com isenção e imparcialidade no exercício das funções de perito e auditor, sem olvidar de expedir os respectivos documentos – atestados, relatórios, declarações, laudos, etc. – fruto da avalição pericial ou auditada realizada (Res. CFO 118/2012, art. 18, inciso III).

A contrario sensu, o panorama atual demonstra uma total inversão dos propósitos da atividade da auditoria exercida pelo cirurgião-dentista às operadoras de planos odontológicos, com impacto direto na autonomia do profissional odontólogo assistente.

São diversos os casos que chegam aos Conselhos Regionais e ao Conselho Federal de Odontologia apontando faltas e abusos cometidos pelos profissionais auditores, sempre em favor das operadoras.

Recorrente são os casos onde logo após solicitar a autorização para a realização do procedimento cirúrgico ou terapêutico indicado para o melhor tratamento de seus pacientes, o profissional assistente é surpreendido com uma negativação do odontólogo auditor responsável sem qualquer fundamentação, tampouco são encaminhados ao mesmo profissional a cópia dos laudos e/ou exames periciais que justificam a desautorização.

Vale notar que os atos e eventos em saúde odontológica censurados pelas operadoras, além de figurar regularmente na tabela TUSS, e serem indispensáveis ao tratamento do paciente, possuem plena cobertura contratual.

É preciso lembrar que a auditoria odontológica não é um tribunal de exceção, nem um organismo ditador de normas; serve, porém, a um fim mais nobre e elevado, que é o de promover a qualidade da atenção odontológica e da educação profissional.

Uma auditoria ética e qualificada segue, a rigor, critérios claros, objetivos e precisos, visando tão somente prevenir a organização de riscos de fraudes, e adequar as atividades dentro do que fora planejado.

Como já foi dito, não há uma norma geral e abstrata que defina os critérios e procedimentos para a instauração de uma auditoria odontológica.  No entanto, um processo de auditoria deve conter não menos que os seguintes requisitos:

  1. Definir objetivos que devem ser seguidos e resultados que devem ser alcançados;
  2. Fazer cronogramas e planos que sejam cumpridos por todos os colaboradores, incluindo prestadores da rede assistencial, credenciada, contratada ou referenciada;
  3. Promover um processo que seja válido e claro para todos, permitindo que cada um consiga entender e executar todas as etapas;
  4. Gerenciar todas as ações que são realizadas dentro da clínica, acompanhando os passos dos responsáveis para saber como anda cada procedimento;
  5. Criar relatórios que possam ser compartilhados e comparados constantemente.

Em relação aos odontólogos auditores, à míngua de uma legislação específica, ficam sujeitos às disposições do Código de Ética profissional (Res. CFO 118/2012).

Sendo assim, o profissional odontólogo, no exercício da função de auditor das operadoras de planos odontológicos, que infringir qualquer dos deveres de isenção, transparência, plena fundamentação, e isonomia, ficará sujeito às penalidades ético-disciplinares previstas no Código de Ética Odontológico, art. 51, incisos, sancionadas mediante processo disciplinar instaurado junto ao Conselho Regional respectivo, nos termos da Res. CFO nº 59/2004.

A auditoria odontológica é uma ferramenta fundamental para a gestão do sistema suplementar de saúde odontológica, notadamente em razão do aumento expressivo da demanda vista nos últimos tempos.

Não pode, portanto, ser utilizada como um impeditivo ao acesso à cobertura contratada, tampouco como um instrumento de coerção – devido as ameaças de descredenciamento em massa – e entrave ao livre exercício da profissão do cirurgião-dentista.

A tecnologia em gestão de processos é muito bem-vinda, desde que respeitadas as prerrogativas profissionais do cirurgião-dentista, indispensáveis ao bom e fiel desempenho da função, destacando sempre a liberdade e a autonomia profissional.

REFERÊNCIAS 

INSTITUTO DE ESTUDOS EM SAÚDE SUPLEMENTAR. Nota de Acompanhamento de Beneficiários. 2020, Pág. 02. Disponível em < https://www.iess.org.br/cms/rep/NAB45.pdf>.

BRASIL. Conselho Federal de Odontologia. Resolução nº 118, publicada no 14 de junho de 2012. Dispõe sobre o novo Código de Ética Odontológico. DOU, pág. 118 da seção 01. Disponível em < http://website.cfo.org.br/wp-content/uploads/2018/03/codigo_etica.pdf>.

BRASIL. Conselho Nacional de Saúde Suplementar. Resolução nº 08, de 03 novembro de 1998. Dispõe sobre mecanismos de regulação nos Planos e Seguros Privados de Assistência à Saúde. DOU, pág. 211, 04/11/1998. Disponível em <https://www.ans.gov.br/component/legislacao/?view=legislacao&task=TextoLei&format=raw&id=MzA3>.

COSTA, Mário Teixeira. ALEVATO, Hilda. Auditoria Odontológica: uma ferramenta de gestão em saúde suplementar. VI Congresso Nacional de Excelência em Gestão. 5, 6 e 7 de Agosto de 2010, ISSN 1984-9354. Disponível em <http://www.inovarse.org/sites/default/files/T10_0315_1184.pdf>.

NEUMANN, Gabriela Garbin. et al. Relações e conflitos no âmbito da saúde suplementar: análise a partir das operadoras de planos odontológicos. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Vol.27 nº.3, Rio de Janeiro Jul./Set. 2017.

BRASIL. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Saúde Suplementar. RN, de 30 de março de 2006. Dispõe sobre a aplicação de penalidades para as infrações à legislação dos planos privados de assistência à saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2006. Disponível em <http://www.ans.gov.br/component/legislacao/?view=legislacao&task=TextoLei&format=raw&id=Nzkw>

BRASIL. Ministério da Saúde. Lei n. 9.961, de 28 de janeiro de 2000. Cria a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União, p. 000005, col. 2, 29 jan. 2000a. Seção Extra.

BRASIL. Conselho Federal de Odontologia. Resolução nº 118, Publicada no DOU em 07 de outubro de 2004. Dispõe sobre o novo Código de Processo Ético Odontológico. Seção 1, págs. 430 e 431. Disponível em < http://website.cfo.org.br/wp-content/uploads/2019/04/Codigo-de-Processo-Etico-Odontologico-2004.pdf>

[1] Disponível em <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/orientacoes_tecnicas_auditoria_odontologia_2ed.pdf>.