A pandemia do novo corona vírus ou covid-19, mais especificamente, as restrições de circulação e de realização de grande parte das atividades produtivas que compuseram e ainda compõe a primeira linha de defesa do sistema de saúde brasileiro acarretaram incontáveis prejuízos a diversos segmentos do país. Do pequeno empreendedor até multinacionais de grande envergadura, as perdas imediatas, num cenário onde o país esboçava uma ligeira reação de melhora na economia, reduziram a zero o faturamento de muitos empresários e sociedades empresariais. O prejuízo de alguns setores, pela natureza dos produtos e serviços prestados, é sentido de forma ainda mais drástica, como a indústria do turismo, lojistas em centros comerciais e shopping centers, bares e restaurantes, enfim, atividades que em muito viviam da aglomeração e circulação de pessoas.

Neste cenário caótico, intuitivamente, questiona-se a possibilidade de não cumprimento de contratos diversos, como aluguéis, fornecimento de produtos, transportes e outros, ante, em verdade, a impossibilidade de prestação do serviço ou ausência de caixa para honrar com as obrigações. Não à toa, fora buscado através do legislativo federal a criação de uma série de regras de intervenção no domínio privado, mas especificamente o Projeto de Lei nº. 1179, de 2020 que criaria regras gerais, emergenciais e transitórias em alguns pontos específicos do Direito Privado.

Apesar de uma tentativa de resposta generalizada, por meio de inovação legislativa, que merece as mais severas críticas por sua falta de técnica e discussão, o direito pátrio nos proporciona elementos suficientes para uma análise casuística e, por consequente, uma resposta mais individualizada e equilibrada – sem o privilégio a uma das partes que uma norma emergencial de caráter geral possa atribuir.

Imprevisão e Onerosidade Excessiva – Rescisão e Revisão Contratual

Falamos assim das teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva, a segunda especificamente, consagrada nos artigos 317, 478, 479 e 480 do Código Civil. Compreende-se, resumidamente, que em contratos de execução continuada ou diferida (que se estendem durante o tempo, como aluguel por exemplo), se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis (como a pandemia da COVID-19), o devedor pode pedir a resolução do contrato ou a sua revisão, no intuito de equilibrar as condições do contrato.

É importante deixar claro que esta hipótese é uma exceção à regra do pacta sunt servanda – que é a ideia de que aquilo que está estabelecido no contrato e assinado pelas partes deve ser efetivamente cumprido – Esse princípio, longevo no direito pátrio, ganhou ainda maior notabilidade quando inovado o Art. 421-A do Código Civil a partir da Declaração de Direitos de Liberdade Econômica (Lei nº. 13.874, de 20.09.2019). Portanto, a análise do caso concreto para verificação da hipótese de onerosidade excessiva vislumbrada no Código Civil deverá ser feita de forma ainda mais criteriosa que do que já se fazia até então.

Tal revisão depende, pois, da existência de “fato superveniente, diante de uma imprevisibilidade somada a uma onerosidade excessiva” (TARTUCE, 2013).

E nesse sentido, o primeiro critério a ser verificado é se a pandemia do COVID-19 pode ser considerada ou não fenômeno extraordinário e imprevisível. A resposta, a toda evidência, é positiva. Entretanto, deve-se atentar para um detalhe: não existe necessariamente nexo causal entre a pandemia e o descumprimento dos contratos. Isto porque, o que em regra causará a deficiência no cumprimento dos contratos são as medidas governamentais de contenção da disseminação desta grave doença. Perceba-se que nesse ponto, a prova a ser feita em juízo não é exatamente da existência da pandemia, mas dos diversos decretos federais, estaduais e municipais que afetaram (e ainda afetam) o cumprimento dos contratos levados a discussão em juízo.

Podemos citar como exemplo os contratos de aluguéis comerciais em shopping centers, cujas atividades foram suspensas por decretos municipais e estaduais. No Espírito Santo, por exemplo, seguiram diversos decretos estaduais que inicialmente fecharam as escolas, universidades e faculdades, das redes de ensino pública e privada (Decreto 4597-R, 16/03/2020) e, logo nos dias seguintes, paralisaram uma série de atividades comerciais no Estado (Decretos 4599-R, 17/03/2020 e 4600-R, 18/03/2020). Assim, percebe-se que o nexo causal não é exatamente a pandemia, mas as intervenções estatais na atividade econômica como medida específica para contê-la.

A análise, entretanto, não se cinge somente ao fenômeno extraordinário e imprevisível, mas deve abarcar também alguns requisitos elencados nos artigos 317 e 478 do Código Civil. Apesar dos dispositivos elencarem seis requisitos, revela-se de sobremaneira importante a necessidade de comprovação da onerosidade excessiva. Vejamos, não é suficiente alegações de cunho genérico – o prejuízo advindo das medidas citadas é notório – mas assume primordial importância a comprovação dos prejuízos realmente experimentos, cujo nexo causal seja o acontecimento extraordinário e imprevisível (medidas de contenção da pandemia).

Neste caso, o Direito irá abraçar as Ciências Contábeis e a Administração Financeira, por meio de uma série de documentos e, em muitos casos, até perícia, dos prejuízos experimentados ante esta crise econômica. Vale, para tanto, documentos oficiais como o IRPJ, notais fiscais, relatórios, extratos de contas e investimentos e toda a sorte de documentos que comprovem as perdas sofridas e a impossibilidade de cumprimento do contrato.

Por último, a própria dicção do artigo 478 denota de maneira simples os outros três requisitos a serem preenchidos:

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

Compreende-se a partir da descrição que o contrato deva ser a) de execução continuada ou diferida; b) oneroso; c) comutativo; O primeiro representa aquele contrato cujas as obrigações se alongam no tempo como, por exemplo, o já citado contrato de aluguel. Depois, o contrato deve ser por óbvio oneroso, ou seja, fixação de uma remuneração (ou obrigação) a ser paga/cumprida. Por final, o contrato deve ser comutativo, significando dizer que as prestações devem ser certas e determinadas, de amplo conhecimento de ambas as partes.

Fechado este cenário fático-probatório e não havendo diálogo entre as partes, perfeitamente cabível a rescisão ou revisão judicial do contrato. E hoje, passados pouco mais de 30 dias das primeiras medidas de restrição em todo país, são diversos os exemplos de medidas emergenciais deferidas pelo Judiciário.

Os Tribunais

Em São Paulo, por exemplo, o Juiz da 22ª Vara Cível acolheu em sede tutela de urgência, o pedido de um restaurante que está fechado devido as medidas restritas a pagar a importância somente de 30% do valor do aluguel originalmente contratado. Na mesma linha, o TJRJ deferiu tutela de urgência em sede recursal para possibilitar que um lojista de Shopping Center pague a título de aluguel mínimo, fundo de promoção e propaganda (FPP) e despesas condominiais pague 30% dos valores originais. Igualmente em sede recursal, o Desembargador Jorge Henrique Valle dos Santo do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo determinando o pagamento das parcelas de aluguel no montante de 50% do valor mínimo previsto em contrato, e mantendo a suspensão do pagamento ao fundo de promoção e propaganda.

Concluindo, a força vinculante das obrigações contratuais e sua não modificação quando presente a comutatividade entre as partes, é um princípio inevitável e importantíssimo que integra inclusive o arcabouço de segurança jurídica. Por isso, revisão sempre foi exceção, reforçada ainda pela interpretação cada vez mais restritiva denotada a partir da declaração de liberdade econômica. Essa pandemia, desafia o interprete do direito a analisar com acuidade os elementos que o caso concreto apresenta, desempenhando o seu papel essencial da Justiça de promover o diálogo entre as partes e, outrossim, submetendo com a critério a questão ao Poder Judiciário.