VÍCIOS CONSTITUCIONAIS

No dia 14/05/2020, foi publicada no Diário Oficial da União a Medida Provisória (MP) nº 966/2020, emitida pelo Presidente da Republica, que trata da: “responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da covid-19.” (negritamos)

É assegurado ao Presidente da República a edição de medidas provisórias, conforme prescreve o artigo 84, XXVI, da Carta Magna de 1988, as quais têm força de lei nos termos do seu artigo 62, que diz com a sua possibilidade em caso de relevância e urgência, sem prejuízo da sua subsunção ao Congresso Nacional.

O Congresso Nacional (composto pela Câmara dos Deputados e Senado Federal) é quem faz a votação das medidas provisórias, para que, se for aprovada, haja sua conversão em lei ordinária, e, se for reprovada, tenha sua vigência imediatamente interrompida, procedendo-se ao seu arquivamento.

O prazo inicial de sua vigência é de 60 dias prorrogáveis automaticamente por igual período, no caso de não ter sido concluída sua votação nas duas Casas Legislativas.

Necessário comentar, ademais disto, que tanto nos casos de aprovação, rejeição ou perda de eficácia da MP, o Congresso Nacional tem a prerrogativa de disciplinar as relações ali abordadas por meio de Decreto Legislativo.

Acaso o Decreto Legislativo não seja editado no interregno de 60 dias, as relações constituídas sob a vigência da MP conservam-se nesta regidas.

A rigor, os regramentos gerais de edição e votação de Medida Provisória estão disciplinados no artigo 62 da Constituição Federal da República Federativa do Brasil, de 1998.

Feito este introito, salta aos olhos que a Medida Provisória nº 966/2020, é altamente polêmica, daí surgirem inúmeras questões levantadas a seu respeito sob os variados enfoques, como o político, o jurídico, o social e o humanitário, para ficarmos apenas nestes poucos exemplos.

No campo de visão do Autor deste simplório ensaio, sem a menor pretensão de esgotar o tema, há razão para toda esta exaltação, porque a MP é desacertada, notadamente sob o prisma constitucional, bem com porque vai de encontro com o Direito, que por sua essência é autônomo e não pode ser manipulado por quem quer que seja, ainda que a quadra vivenciada pela sociedade mundial seja a pior da sua história recente.

E aqui não se está defendendo lados políticos (direita e esquerda do Governo), e sim trazendo reflexões sobre as questões jurídicas que emanam da MP ora em análise, sempre com todo respeito devido às opiniões convergentes ou mesmo divergentes daquela que expressa este ensaio.

Pois bem, fazendo-se uma rápida incursão à MP, é fácil denotar que o seu núcleo envolve a pandemia da Covid-19, os Agentes Públicos, e a (ir)responsabilidade civil e administrativa deles pelas condutas omissivas ou comissivas levadas a efeito durante este período, veja-se:

“Art. 1º Os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados, direta ou indiretamente, com as medidas de:

I – enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia da covid-19; e

II – combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da covid-19.

  • A responsabilização pela opinião técnica não se estenderá de forma automática ao decisor que a houver adotado como fundamento de decidir e somente se configurará:

I – se estiverem presentes elementos suficientes para o decisor aferir o dolo ou o erro grosseiro da opinião técnica; ou

 II – se houver conluio entre os agentes.

  • 2º O mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização do agente público.

Art. 2º Para fins do disposto nesta Medida Provisória, considera-se erro grosseiro o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.

Art. 3º Na aferição da ocorrência do erro grosseiro serão considerados:

I – os obstáculos e as dificuldades reais do agente público;

II – a complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público;

III – a circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência;

IV – as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação ou a omissão do agente público; e

V – o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia da covid-19 e das suas consequências, inclusive as econômicas.

Art. 4º Esta Medida Provisória entra em vigor na data de sua publicação.” (negritamos)

Antes de tudo, é importante colocar que os Agentes Públicos atingidos pela MP, segundo festejada doutrina de Jose dos Santos Carvalho Filho, 2015, p. 611, formam um conjunto de pessoas que a qualquer título exercem uma função pública dentro da estrutura do Estado, de forma remunerada ou gratuita, definitiva ou transitória, política ou jurídica, dentro da Administração Pública Direta ou Indireta.

Neste grupo de pessoas estão obviamente inseridos os agentes políticos governamentais, como os detentores de mandato eletivo (dentre eles Presidente da República); servidores públicos em geral; particulares em colaboração com o Poder Público, o que dá a dimensão de grandeza do quadrante onde se acham os sujeitos que são considerados Agentes Públicos.

Com a profundidade de um pires, a MP em questão tem sua aplicação dirigida a todos os Agentes Públicos, o que é muito arriscado, malgrado suas responsabilidades devidamente insculpidas em Lei, sentido amplo.

Inequívoco que a MP propõe indubitável mitigação ou dificuldade da responsabilização civil e administrativa de Agentes Públicos durante o enfrentamento da pandemia da Covid-19, no que tange às emergências em saúde pública e combate aos efeitos econômicos e sociais.

O texto da norma contém aspectos de pura engenhosidade criativa, como aquele que diz que a opinião técnica não é elemento para o julgador entender pela responsabilidade do Agente Público, situação que apenas poderá ser revertida em estando presente o dolo, erro grosseiro e conluio de agentes.

Lê-se da MP, ainda, que o próprio nexo de causalidade, pressuposto inafastável da responsabilidade em geral, passa a ser filigrana jurídica de mera existência teórica.

Prosseguindo-se em leitura atenta do documento legislativo, verifica-se que o erro grosseiro ou erro manifesto concorrentes à responsabilidade do agente, é caracterizado pela culpa grave decorrente da ação positiva ou conduta omissiva, desde que fruto de elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.

Com efeito, emerge desta MP uma incontestável mixórdia de preceitos jurídicos já positivados no ordenamento jurídico, com inovações no seu sentido, no seu alcance, e na sua aplicabilidade, o que em última análise descortina a vontade do seu criador de lançar “pedras” no caminho do intérprete à responsabilidade civil/administrativa do Agente Público.

Não é à toa que a MP prestigia elementos subjetivistas que devem ser levados em consideração pelo decisor do caso, por exemplo: “elevado grau de negligência”, “complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente”, circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência”, “o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia da covid-19 e das suas consequências, inclusive as econômicas”, e outros. Só que ninguém diz o que são esses neologismos e quando eles devem ser aplicados, o que tende à irresponsabilidade do agente, simples assim.

Diretamente ao ponto, é salutar observar que a MP aponta para uma ruptura do Estado Democrático de Direito, que, como corolário da sua forma republicana, protege valores que lhe são fundamentais, como a Cidadania e o consagrado primado da Dignidade da Pessoa Humana.

Não é demais colocar que Dignidade da Pessoa Humana é um vetor transnacional e transgeracional que ganhou notoriedade no pós-guerra, em 1946, dando vida à Declaração Universal dos Direitos Humanos junto à Organização das Nações Unidas (ONU), que foi votada e aprovada pelos países-membros em Assembleia Geral no ano de 1948.

O Brasil, além de fazer parte deste grupo de países, ratificou o valioso documento como um dos seus signatários, sendo certo comentar que documentos de tamanha envergadura são equivalentes às suas emendas constitucionais, como anuncia o § 3º – complementado pelo § 2º – do inciso LXXVIII, do artigo 5º, da CF/88.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos é contextual ao afirmar que todo ser humano tem direito de receber dos tribunais nacionais remédio efetivo contra os atos que violem os direitos fundamentais, ex vi do seu artigo VIII. Verbis:

Todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.” (negritamos)

Esse preceito tem tudo a ver com o sistema de responsabilização existente em cada país, e no Brasil acaba espelhando a regra do artigo 5º, X, da CF/88, pois ali é compreendido como direito fundamental a inviolabilidade da intimide e vida privada em suas várias nuances, além da honra e imagem, sendo assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente da sua violação. Observe:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(omissis)

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; (negritamos)

Logicamente, a indenização material ou material entabulada no texto da Carta Maior deságua em um direito fundamental de cada indivíduo, e que para se materializado depende de um processamento justo de responsabilização daquele que infrinja a lei e cause dano a outrem, seja por culpa ou por dolo.

Este direito fundamental apenas pode ser exercido mediante um sólido ordenamento jurídico, já posto, como o brasileiro.

 Como valor social inarredável, o ordenamento jurídico de forma alguma poderá sofrer alterações fruto de ideologias governamentais ou de conjuntura política visando, por exemplo, apagar ou amenizar erros e distorções que têm assento em uma explícita incapacidade de gerenciamento da crise por aquele que habita hoje, de passagem, o Palácio do Planalto.

 Acredita-se que pensamentos destoantes poderiam até ecoar, porém, não resistiriam à certeza e autonomia do Direito, que não pode ser manipulado ou sofrer investidas de quem quer que seja.

Aliás, por falar em investidas, a MP apresenta ameaça a uma cláusula pétrea dos direitos e as garantias individuais, dentre os quais àquela que dá ao cidadão livre passagem para buscar a tutela do Estado diante de uma violação a direito seu.

Esta cláusula pétrea está disposta no artigo 60, § 4º, IV, da CF/88, vide:

“Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

  • 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

(omissis)

IV – os direitos e garantias individuais.” (negritamos)

Logo, mesmo no campo das ideias, a MP em tela poderia ensejar interpretação da existência de crime de responsabilidade do Presidente, com enquadramento no artigo 85, III, V, VII, da CF/88.

Isso porque, se de um lado, ao “afrouxar” as regras de responsabilidade civil e administrativa de Agentes Públicos, tende a impedir/abolir a concreção do exercício de direito individual e fundamental ao processamento daquele que atuou em desacordo com lei durante a pandemia e causou dano, por outro lado, propicia cenário de enfraquecimento da Probidade Administrativa, impregnada na figura do Gestor da Coisa Pública, que por sua vez é incompatível com ideias de anti-responsabilidade dos seus agentes.

Os Agentes Públicos desde quando estão em suas funções, fruto justamente das suas invariáveis responsabilidades, devem atuar com Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência, tal qual anuncia o artigo 37, caput, da CF/88, independentemente do momento vivenciado pela Nação.

Existe em vigor, tendo sido construído às duras penas ao longo da história, um sistema jurídico normativo com a Constituição Federal no ápice, que também cuida da responsabilização civil e administrativa de Agentes Públicos, o que inclui legislação infraconsticional, e que não pode ser destruído na vigência de um cataclismo, sob pena de se inaugurar a anarquia institucional em detrimento do administrado, que é o povo, o elo mais fraco da corrente.

A própria CF/88 obsta que pretextos como aqueles inaugurados na MP nº 966/2020, sirvam de argumento convincente numa direção contrária a que está aqui sendo grafada, e deixa isso à evidência ao longo do seu texto, como aquele denotado do artigo 141, no qual garante a responsabilidade de agentes por atos cometidos durante o Estado de Sítio ou de Defesa:

“Art. 141. Cessado o estado de defesa ou o estado de sítio, cessarão também seus efeitos, sem prejuízo da responsabilidade pelos ilícitos cometidos por seus executores ou agentes.” (negritamos)

 Pode se concluir, desta forma, que a MP nº 966/2020 é inconstitucional, máxime por não se afinar ao Interesse Público, vetor alimentado pelo regime democrático e de representatividade em vigor, que direciona a atividade estatal (lato sensu) à coletividade, sempre no intuito de atingir seu bem-estar.

Sigamos fortes, unidos, com responsabilidade pessoal e coletiva, além de esperançosos por dias melhores, e cientes de que, como nas palavras valiosas de Martin Luther King, grande ícone do Séc. XX: “A verdadeira medida de um homem não se vê na forma como se comporta em momentos de conforto e conveniência, mas em como se mantém em tempos de controvérsia e desafio”. (negritamos)

Referências:

[1]        ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Administrativo Descomplicado. 18ª ed. Rio de Janeiro: Método, 2010.

[2]        BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 17 de Maio de 2020.

[3]        BRASIL. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf. Acesso em: 17 de Maio de 2020.

[4]        BRASIL. Emenda Constitucional nº 45/2004. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc45.htm. Acesso em: 17 de Maio de 2020.

[5]        FILHO, Jose dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 28ª ed. São Paulo: Atlas, 2015.

[6]        BRASIL. Legislação COVID-19. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/Portaria/quadro_portaria.htm. Acesso em: 17 de Maio de 2020.

[7]        BRASIL. Martin Luther King Jr, um prisioneiro da justiça. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/170-noticias/noticias-2014/527402-martin-luther-king-jr-um-prisioneiro-da-justica. Acesso em: 17 de Maio de 2020.

[8]        BRASIL. Medida Provisória nº 966/2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Mpv/mpv966.htm. Acesso em: 17 de Maio de 2020.

[9]        PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 1999.