PADRÃO DECISÓRIO DURANTE A CRISE

O mundo vive momentos tenebrosos por conta da pandemia da Covid-19 decorrente do avassalador vírus Sars-CoV-2.

Inegável que todo este panorama gerou e ainda vai gerar conflitos de interesse em matérias de A a Z, sendo voz corrente que em pouco tempo o sistema de justiça brasileiro enfrentará uma onda de novos processos judiciais.

Em um país de dimensões continentais, como o Brasil, em que os números de litigiosidade do CNJ referentes a 2018 contabilizavam 78,7 milhões de processos em tramitação[1], é de causar espanto e estarrecimento um ambiente ainda pior do que esse.

Se já é evidente a atual incapacidade estrutural (lato sensu) deste Poder da República para lidar com os processos que já possui, então, que dirá face aos que serão aparelhados.

Entretanto, com respeito sempre devido, é certo que a vida dos litigantes indistintamente seria severamente prejudicada neste momento de crise pela inconsciência jurisdicional decisória. Aborda-se o assunto sem qualquer pretensão de tecer crítica ao ofício judicante de todo relevante à sociedade.

Mas, afinal, o que se poderia entender como inconsciência jurisdicional decisória no âmbito do presente ensaio?

Resposta: seria a alteração do padrão de decidir do juiz, onde ao invés de fundamentar o ato decisório nas leis em vigor, regras e princípios, claro, sempre de olho nas provas que exercem papel fundamental na formação da sua convicção, passasse a se apoiar em desígnios da sua forma de pensar, visão de mundo, crenças, etc.

Hipoteticamente, esta alteração de padrão decisório se revelaria clara quando a parte que sentisse prejudicada por determinada decisão judicial, de forma descabida, lançasse mão da impetração de um Mandado de Segurança pela celeridade imprimida pelo seu rito, justamente para não se sujeitar ao rito menos célere do recurso que efetivamente fosse cabível, e mesmo assim situação fosse encampada pelo respectivo órgão jurisdicional como algo juridicamente aceitável em momentos de crise, dada “relevância” do bem da vida em disputa, que mereceria atenção e decisão pragmática, inclusive em sede liminar de efeito suspensivo ao ato judicial tido como coator.

Abre-se um necessário adendo para distinguir a hipótese acima da própria conformação encontrada em vários dispositivos da legislação em vigor, que possibilita a prevalência de uma exceção sobre uma regra, como é o caso, v.g., dentre tantos outros, do artigo 478 do Código Civil[2], que torna possível a resolução do próprio negócio ante a ocorrência de situações extraordinárias, excepcionais, que tornem a prestação onerosamente excessiva e impassível de ser mantida pelo contratante.

Portanto, o foco aqui é para com o risco da criação de um padrão decisório da crise, justificado apenas pela crise, sem qualquer amarra à lei, precedentes, jurisprudência, outra fonte do direito ou mesmo fora do caminho da possível hermenêutica em alguns casos, algo letal ao Estado Democrático de Direito construído às duras penas ao longo da história.

Ora, se a legislação que determina o modo de agir/decidir do magistrado se mantém intacta, não há espaço para tergiversações e modulações, devendo-se todo o império legal ser preservado, embora seja cabível a alteração da lei pelos meios adequados.

Esta alteração da lei supracitada é àquela que tem de acontecer no Congresso Nacional, e não no imaginário do juiz, haja vista o descalabro do ativismo judicial, por vezes motivado não como fundamento, mas como ocasião da sua ocorrência em palcos de grandes litigiosidades, e que, nas palavras do clamado jurista norte-americano Ronald Myles Dworkin[3]: “é uma forma virulenta de pragmatismo jurídico. Um juiz ativista ignoraria o texto da constituição, a história de sua promulgação, as decisões anteriores da Suprema Corte que buscaram interpretá-la e as duradouras tradições de nossa cultura política, o ativista ignoraria tudo isso para impor a outros Poderes do Estado o seu próprio ponto de vista sobre o que a justiça exige”. (negritamos)

Sobre esta temática, aliás, existe um jurista nacional de grande importância, Lenio Luiz Streck, cuja doutrina é valiosa a toda comunidade jurídica.

Num dos seus primorosos ensaios denominado de: O que é decidir por princípios? A diferença entre a vida e a morte”, publicado no portal Consultor Jurídico[4], que tem grande prestígio, o jurista demonstra que juízes não constroem as leis, mas as seguem, in verbis:

Tenho referido isso todos os dias. Juízes devem decidir com responsabilidade política. Não para agradar a A ou B; não para aliviar a própria consciência; não para moralizar o direito. Juiz não constrói leis; segue padrões interpretativos. Doa a quem doer. Para isso é bem pago e tem garantias. Contra tudo e contra todos, se o direito do réu existe e está comprovado, deve conceder o habeas corpus ou absolver, mesmo que, internamente, pense que o acusado deva ser fritado no inferno. Decidir por princípio significa não ser consequencialista nos moldes da análise econômica do direito (AED) ou da análise moralista do direito (AMD). (negritamos)

De outra parte, em sua obra: “O que é isto? Decido conforme minha Consciência”, ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, o douto jurista, com total correção, assim se pronuncia:

Para os efeitos do que estou debatendo neste livro, é preciso deixar claro que existe uma diferença entre decisão e Escolha. Quero dizer que a decisão – no caso, a decisão jurídica – não pode ser entendida como um ato em que o juiz, diante de várias possibilidades possíveis para a solução de um caso concreto, escolhe aquele que lhe parece mais adequada. Com efeito, decidir não é sinônimo de escolher. Antes disto, há um contexto originário que impõe uma diferença quando nos colocamos diante de dois fenômenos. A escolha ou a eleição de algo, é um ato de opção que se desenvolve sempre que estamos diante de duas ou mais possibilidades, sem que isso compromete algo maior do que simples presentificado em uma dada circunstância. (negritamos)

 E arremata:

Combater a discricionariedade, o ativismo, o positivismo fático, etc, – que, como se sabe, são algumas das várias faces do subjetivismo – quer dizer compromisso com a Constituição e com a legislação democraticamente construída, no interior da qual há uma discussão, no plano da esfera pública, das questões ético-morais da sociedade. Portanto, não será o juiz, com base na sua particular concepção de mundo, que fará correções morais de leis “defeituosas”. O direito não é aquilo que o judiciário diz que é.” (negritamos)

Desta forma, o que se espera é que mesmo sob a forte pressão exercida pela crise, mantenha-se a estabilidade da regra do padrão decisório pelo Poder Judiciário, a fim de afastarem-se ativismos, irregularidades, aberrações, incongruências, engenharias jurídicas, enfim, cenários que possam gerar muito mais problemas do que a falsa e injusta sensação de resolução.

Com a devida permissão constitucional, deixemos a cargo da política legislativa, dentro do Congresso Nacional, as alterações que possam ser feitas à correção ou adequação ainda que momentânea de normas em vigor à realidade da crise, para que, aí sim, atendido o processo legislativo, sancionada a norma, possa ela ser aplicada.

Enquanto isso não acontece, sem afronta aos limites hermenêuticos, o que se espera é que na hora de decidir o magistrado se valha das leis, regras e princípios em vigor, respeitando-se o ordenamento jurídico, o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, transmitindo segurança jurídica em seus pronunciamentos, eis que este é o protagonismo que se espera do Poder Judiciário.

Referências

[1] BRASIL. Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em: 27 de Abril de 2020.

[2] BRASIL. Código de Processo Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 27 de Abril de 2020.

[3] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 27 de Abril de 2020.

[4] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em: 27 de Abril de 2020.

[5] DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007. P. 451.

[6] STRECK, Lênio Luiz. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-ago-06/senso-incomum-decidir-principios-diferenca-entre-vida-morte. Acesso em: 27 de Abril de 2020.

[7] STRECK, Lênio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

[6] STRECK, Lênio Luiz. Revista Brasileira de Políticas Públicas. Disponível em: https://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/RBPP/article/viewFile/3139/pdf. Acesso em: 27 de Abril de 2020.