Constitucionalismo

A Constituição tal qual vemos hoje tem origem nos postulados da Revolução Francesa e Americana em meados do século XVIII, apresentando traços marcantes de limitação do poder do Estado e preservação da Dignidade da Pessoa Humana. Surge, então, um movimento em oposição ao absolutismo; buscando a limitação do poder do Estado por uma lei escrita acima das outras leis (MENDES, 2018). Dá-se o nome específico de ‘constitucionalismo’, ao conjunto de movimentos que buscam construir esses limites do poder estatal.

No contexto histórico, o Constitucionalismo escrito surge com o Estado. Sendo assim, o Estado de Direito é consagrado com o Constitucionalismo liberal do século XIX (MORAES, 2017), em que se preconizava os direitos de liberdade individual.

Evoluiu-se, no século seguinte, a um Estado Social, em que se consagra os direitos sociais, cuja característica é um Estado intervencionista. Por fim, já no século XIX, alcança-se o Estado Global, cujas premissas são a divisão dos poderes sob a teoria dos freios e contrapesos e o pluralismo jurídico. Fala-se, em uma teoria do Transconstitucionalismo: O Estado Constitucional.

“O Estado Constitucional, portanto, é mais do que o Estado de Direito, é também o Estado Democrático, introduzido no constitucionalismo como garantia de legitimação e limitação do poder” (MORAES, 2017, p. 28).

Um corte metodológico no tema do Constitucionalismo e do Estado de Direito, temos o sistema da Tripartição do Poder, com a teoria dos Freios e Contrapesos, que estabelece a interpenetração das funções estatais, permitindo o controle recíproco entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Nesse contexto, limita-se o presente trabalho ao tema em discussão acerca dos limites de interpenetração entre os poderes; especificamente, a intromissão do Judiciário no Executivo.

O Brasil é uma República Federativa e tem a separação dos poderes como base para constituir um Estado Democrático de Direito. Como destaque nos princípios fundamentais, tem-se a harmonia e independência entre os poderes do Estado. A separação tornou-se um princípio essencial do Estado brasileiro.

Ocorre que, nesse sistema, o que se questiona é a real obediência a um dos princípios basilares da nossa Democracia. Isso porque, vivemos em um contexto de grande atuação do Poder Judiciário ante os outros Poderes.

Por conseguinte, o que se discute é o atual Judicialização da política – em que conflitos políticos são levados ao judiciário para uma resolução – principalmente ante o cenário político de crise institucional e de saúde.

Discute-se, portanto, a decisão liminar dada pelo Ministro Alexandre de Moraes no Mandado de Segurança Coletivo 37097/DF, em que o r. relator suspende a eficácia do Decreto de nomeação do delegado Alexandre Ramage Rodrigues ao cargo de Diretor- Geral da Polícia Federal.

Exclui-se do presente trabalho qualquer discussão sobre a legitimidade do impetrante do referido Mandado de Segurança, e sobre a regulamentação e o cabimento do instituto mandado de segurança coletivo. O que se pretende aqui é apenas a elucidação dos limites do Judiciário ao interferir em ato discricionário do Poder Executivo, em especial no caso da (não) nomeação do Diretor-Geral da Polícia Federal, Alexandre Ramage Rodrigues, em maio de 2020.

O Brasil vive em um Estado Democrático de Direito, em que prevalece a forma federativa de Estado com a tripartição dos poderes, bem como um sistema de controle recíproco entre os poderes, com a supremacia da Constituição Federal. Ocorre que o atual cenário político do país vem exigindo intervenções entre os poderes, principalmente entre o poder Judiciário e o Executivo, ante atitudes não democráticas do Presidente da República.

Percebe-se o chamado Constitucionalismo abusivo ou Democracia Liberal muito presente nos fenômenos atuais da política brasileira. Segundo Gilmar Mendes no ADPF 622, o modo de agir do líder do executivo, como o caso da interferência do Presidente no modo de operar da Polícia Federal (que ensejou o MS 37097), é o que caracteriza esse modo “às avessas” da Democracia, cujo resultado final é o surgimento de um regime autoritário – ainda que preservando a realização formal da democracia representativa: as eleições.

Ante esse cenário duvidoso, cabe aos guardiões da Constituição a vigília do regime democrático, interferindo, quando necessário, ao controle dos outros poderes. Compete à Corte Superior precipuamente a guarda da Constituição, conforme art.102, caput, da Constituição Federal.

O grande problema é que atos como o do presidente, de nomear o diretor-geral da Polícia Federal, também consta na Constituição como ato discricionário do chefe do Executivo; então como definir se tal nomeação extrapola ou não os limites democráticos? Como determinar se tal fenômeno da Democracia liberal vem ganhando força no Brasil?

Além disso, até onde a Suprema Corte se mantém no sistema de freios e contrapesos, sem usurpar a competência dos outros poderes? Agiu certo o Superior Tribunal Federal decidindo, liminarmente, pela não nomeação do diretor-geral Alexandre Ramagem da Polícia Federal?

Dessa forma, a grande questão é: quem estaria agindo de forma abusiva: o Executivo ou o Judiciário?

É possível que a Corte suprema tenha tomado a medida mais plausível à época, ante fortes indícios da interferência do chefe do executivo na instituição da Polícia Federal, configurando abuso de poder, na forma de desvio de finalidade. Isso porque a nomeação de Alexandre Ramagem Rodrigues para exercer o cargo de Diretor-Geral da Polícia Federal seria mera expressão da vontade pessoal do Presidente, imiscuir-se na atuação da Polícia Federal […]. Pretende-se, ao fim, o aparelhamento particular – mais do que político, portanto – de órgão qualificado pela lei como de Estado (Lei Federal nº 9.266/1996, art. 2º) (MS 37097/DF).

Sendo assim, não estaria o presidente exercendo apenas o ato discricionário permitido por lei, mas sobejando seus poderes, entrando na esfera de satisfação dos seus intentos pessoais através do poder público, configurando, assim, além de ato ilegal, imoral. Cabendo, portanto, a função jurisdicional típica da revisão do ato do executivo. pois, como muito bem ressaltado por Jacques Chevallier, “o objetivo do Estado de Direito é limitar o poder do Estado pelo Direito” (L’Etat de droit. Paris: Montchrestien, 1992. p. 12).

Por outro lado, dentre as atribuições do presidente da República previstas na Constituição do Brasil, está a de nomear o diretor da Polícia Federal, cuja exigência mínima é o nomeado ser delegado de classe especial. Nada fala a Constituição sobre impedimento da designação de pessoas próximas ao Presidente.

Lenio Luiz Streck traz uma reflexão interessante sobre esse ponto: “O delegado parece não poder ser nomeado não pelo que ele fez ou diz, mas pelo que disse quem o nomeou.”(STRECK, 2020). Há, no mínimo, certa incongruência nisso.

Ademais, o Judiciário condiciona os atos do Executivo a “censura prévia”, nas palavras de Lenio Luiz Streck (2020), o que desfigura o previsto no art. 2º da Constituição Federal: “São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.” Certo que abusiva interferência do Judiciário contraria os princípios constitucionais de dependência e harmonia entre os Poderes.

Nas palavras do autor:

Legitimar uma decisão ativista porque concordamos com a racionalidade moral ali pressuposta nada mais é do que legitimar que o Direito possa ser filtrado pela moral. E se aceitarmos que o Direito seja filtrado pela moral, indago: quem vai filtrar a moral? É esse o ponto.(STRECk,2020)

Sendo assim, deixa-se a segundo plano a racionalidade jurídica para satisfazer a moralidade política, sem qualquer substrato constitucional e democrático.

Informações adicionais: 

Perda do objeto do MS 37097

http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=443007

REFERÊNCIAS

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 622. DISTRITO FEDERAL RELATOR : MIN. ROBERTO BARROSO

BRASIL. Constituição 1988. Brasília: Senado Federal, 2019.

MANDADO DE SEGURANÇA 37.097. DISTRITO FEDERAL. RELATOR : MIN. ALEXANDRE DE MORAES

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 13. ed. rev. e atual. São Paulo : Saraiva Educação, 2018.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 33. ed. rev. e atual. até a EC nº 95, de 15 de dezembro de 2016 – São Paulo: Atlas, 2017.