Federalismo

Em tempos onde a política atual dos Estados Unidos da América é “endeusada” por alguns líderes e tomada como modelo de conduta a ser seguido, é comum compararmos diversos aspectos do Estado brasileiro com a estrutura estatal norte-americana.

Analisando tal situação de forma mais específica, observa-se que expressões como “pacto federativo” têm estado cada vez mais na boca do povo, sendo que a pauta da vez é a defesa de uma “descentralização de recursos da União”. Mas, afinal, o que isso significa?

De uma forma simples, a ideia de descentralização de recursos visa atribuir aos Estados e Municípios maior autonomia financeira e orçamentária, a fim de que esses entes possam gerir tais recursos de acordo com as necessidades específicas de seus cidadãos. Vê-se, portanto, um esvaziamento da esfera federal em detrimento dos demais entes.

Bem, essa discussão só é válida no Brasil por conta do Federalismo aqui adotado. Nos termos do artigo 1º da Constituição Federal de 1988, nosso país é formado pela “união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal”. Assim, diferentemente de alguns países que não possuem divisões administrativas internas, sendo geridos diretamente pelo governo central, o Brasil é dividido em unidades federativas autônomas e coexistentes entre si.

Mas, por que nosso país é assim? Já parou para pensar nisso?

Antes de aprofundarmos nossa análise, porém, é crucial estabelecermos algumas premissas.

Em primeiro lugar, o que é Estado? Bem, essa pergunta parece singela, mas traz consigo inúmeras respostas. De uma forma simplificada – com base na noção de Contrato Social, delineada por pensadores como Thomas Hobbes, John Locke e Jean Jacques Rousseau – é possível concluir que Estado é uma instituição intangível, mas real o suficiente para nos manter organizados, criada por nós (coletividade) com a finalidade de resguardar direitos a nós inerentes.

Portanto, tomando como base a premissa supra estabelecida, já é possível vislumbrar a função de garantidor de um Estado. E, para que essa função seja desempenhada da melhor maneira possível, o Estado pode assumir diversas formas, de acordo com a necessidade do seu povo, sua geografia e seu momento histórico.

Pois bem.

A República Federativa do Brasil é o quinto dos maiores países do mundo com uma área territorial de 8.515.767 Km². É o maior país da América do Sul, da América Latina e de todo o Hemisfério Sul. Sua extensão só fica atrás da Rússia, Canadá, China e Estados Unidos[1]. Dessa forma, torna-se clara a primeira conclusão que podemos chegar nessa nossa conversa: nosso país é, geograficamente, muito grande e, para que um governo possa gerir toda essa extensão territorial, a divisão do território em “territórios menores” facilita a organização interna do país.

Essa nossa realidade assemelha-se, em parte, ao cenário norte-americano. Segundo o professor Torquato Lorena Jardim, a partir do século XVII, imigrantes ingleses começaram a chegar no norte do território que, atualmente, compõe os Estados Unidos da América. A motivação que justificou a migração de tais pessoas foi, basicamente, religiosa e econômica. Assim como ocorreu aqui no Brasil, somente uma faixa de terra, a princípio, foi povoada e, para organizarem-se, os ingleses fundaram treze colônias que se submetiam à Coroa inglesa. Até então, a realidade vivida por nossos “irmãos do norte” não se difere muito do que fora vivido aqui. Ocorre, porém, que, embora seja possível traçar um paralelo geográfico entre ambos os territórios, o modelo político vigente diferenciava-se em muito em ambas as realidades.

Isso porque as unidades autônomas norte-americanas, que posteriormente formaram 50 estados, possuíam ampla liberdade de gestão. Tanto é que o plano inicial dos “pais fundadores” era que cada um dos estados constituísse um país independente. Por essa razão, portanto, é que o federalismo norte-americano é conhecido como “Federação Centrífuga” (que, nos termos da física significa simplesmente uma força que descentraliza a matéria).

No que se refere especificamente ao processo de formação do nosso país, porém, a colonização portuguesa realizada em território nacional foi responsável por estabelecer uma cultura de centralização máxima do poder. Até 1891, ano em que foi estabelecido (constitucionalmente) o Federalismo como Forma de Estado no Brasil, todo o território brasileiro era controlado por um governo central, ligado à Coroa Portuguesa.

O professor Boris Fausto, importante historiador brasileiro, ao explicar o sistema de “Capitanias Hereditárias”, afirma que nosso país foi repartido em quinze “quinhões”, sendo que cada uma dessas partes foi entregue a um capitão-donatário para que esse cuidasse financeira e administrativamente. Interessante destacar, ainda, que os donatários se tornavam possuidores, mas não proprietários da terra. Isso significa que suas prerrogativas consistiam, basicamente, na administração dos quinhões, estando eles submetidos, porém, à Coroa[2].

Com o passar dos anos, inúmeras insurreições separatistas tiveram palco no Brasil. Grande parte das reivindicações se voltavam para a independência de territórios aqui sediados – hipótese completamente incabível para a Família Real Portuguesa, que tinha a centralização política como modelo de governo a ser seguido.

Mesmo após a Independência do Brasil, em 1822, a aguardada desvinculação do governo português não ocorreu – diferentemente do que aconteceu nos EUA, onde a independência resultou numa ruptura com a Coroa inglesa. Por aqui, vigorou um modelo de Império, com ampla centralização de poder.

Assim, com base em todo o exposto até o presente momento, fica claro que o modelo de colonização que vigorou no Brasil diferiu em muito do sistema adotado nos Estados Unidos – sendo que o nosso país sofreu por muito mais tempo e com muito mais intensidade a influência da política portuguesa.

Deve-se ter em mente que Portugal é um Estado unitário, isto é, seu território não é repartido em unidades autônomas, como os estados. Sendo assim, cabe ao governo central controlar e administrar tudo que diz respeito à esta nação. Tal organização deriva de um histórico de conflitos que marcou o estabelecimento do Estado português: a partir do século XII ocorreram diversas batalhas para expulsão dos mouros da Península Ibérica. Senão vejamos:

“[…] apenas no último quartel do século XII há notícia da organização das primeiras povoações sob o domínio português. A reconquista portuguesa vai desenvolver-se rapidamente, mediante pouco mais de um século entre as primeiras ações militares de Afonso Henriques e a ocupação das últimas povoações do Algarve.”[3]

A obra “O Federalista” salienta a importância de uma maior centralização no combate às fragmentações, afirmando que “um dos grandes benefícios da União, relativamente à paz e à tranquilidade dos Estados, é a barreira que ela deve opor às insurreições e às facções”. Isso dá maior suporte à ideia de que, para Portugal, foi fundamental a estruturação em torno de um modelo unitário para garantir a efetividade dos interesses nacionais[4].

Esse pensamento foi, claramente, importado para o solo brasileiro, que viveu por muito tempo instabilidades políticas e encontrou no unitarismo a justificativa para que pudesse concentrar o poder nas mãos de um governo central.

Desse modo, com base em todas essas afirmações, é possível concluir que a herança portuguesa de centralização é mais forte do que as ideias de descentralização que povoaram o Brasil com a Proclamação da República. Isso ocorreu por conta da formação do Estado brasileiro, que teve como diretriz principal a ideia de manutenção da unidade territorial (da mesma forma que ocorreu no caso de Portugal). Deste modo, o federalismo no Brasil se configura de uma forma flexibilizada, que se nota na repartição de competências estabelecidas em todas as ordens constitucionais.

Mas, afinal, qual a relação desse extenso panorama histórico na tentativa atual de se descentralizar os recursos em prol dos estados e municípios? A resposta para isso é bastante simples: por mais que a intenção política esteja em conformidade com o modelo de Estado constitucionalmente estabelecido, a história, os costumes e a cultura política do Brasil estão enraizados num pensamento diverso, pensamento esse de centralização do poder.

Por essa razão é equivocado comparar o Brasil com outros países que, embora possuam formalmente o mesmo modelo organizacional, são completamente diferentes de nós no que diz respeito ao seu processo de formação.

Não obstante, por mais que esteja enraizado em nosso histórico a cultura centralizadora, nunca é tarde para começarmos a adotar novos hábitos políticos. Nesse sentido, um bom exemplo são as inúmeras propostas de Reforma Tributária em tramitação no Congresso Nacional. Essas propostas têm como objetivo aumentar a autonomia dos estados e municípios na arrecadação e utilização dos recursos públicos.

Mas atenção! Por mais que, à primeira vista, a ideia de autonomia federativa seja atraente, não se pode esquecer de uma coisa: o pacto federativo e todos os pormenores que lhe cercam não tratam apenas de questões financeiras. É importante que as responsabilidades sejam, também, igualmente divididas entre os entes, para uma gestão mais justa e coerente.

 

[1] https://mundotop10.com/maiores-paises-do-mundo/

[2] FAUSTO, Boris. História do Brasil. 13 ed, 2ª reimpressão. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010.

[3] RIBEIRO, Orlando. A formação de Portugal. Instituto de cultura e língua portuguesa, 1987.

[4] HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. O Federalista. Livraria Líder e Editora: Belo Horizonte, 2003.