Camila Mattos Simões

Naiane Valéria de Souza

Do crime de estupro de vulnerável ocorrido município de São Mateus, localizado no Estado do Espírito Santo, amplamente divulgado por todos meios de comunicação, convidamos você para iniciar um debate sobre o aborto. É sabido que o assunto é delicado, polêmico e divergente, porém nossa pesquisa ocorrerá no âmbito jurídico sob a perspectiva das disposições vigentes em nosso país. Com efeito, não será levado em consideração aspectos de cunho político, moral ou religioso.

A interrupção da gravidez foi regulamentada pelo Código Penal Brasileiro sob duas linhas: criminoso e permitido. No primeiro caso temos mandados expressos de criminalização quando praticado o autoaborto (artigo 124), provocado por terceiro sem (artigo 125) ou com (artigo 126) o consentimento da gestante. Em contrapartida, o artigo 128 autorizou o aborto quando necessário para salvaguardar a vida da gestante (inciso I), bem como o resultante de estupro, desde que o procedimento seja realizado com o consentimento da gestante ou do seu representante legal, quando incapaz (inciso II).

Além dessas possibilidades, o Supremo Tribunal Federal sob o manto do princípio da dignidade da pessoa humana relativizou o ordenamento jurídico pátrio a não equiparar a aborto a interrupção da gravidez até o terceiro mês de gestação (Habeas Corpus n° 124.306/RJ) – não sendo erga omnes – e ao tolerar o aborto quando constatado que o feto é anencéfalo (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 54).

Partindo do ponto de vista prático, mas sem adentrar as minúcias do caso da criança, observamos nas reportagens veiculadas alguns pontos que precisam ser esclarecidos, como o procedimento a ser adotado pelos profissionais de saúde ante sinais indicativos de violência sexual na paciente, assim como a (des)necessidade de autorização judicial para o procedimento abortivo.

Neste viés, a Portaria n° 204, de 17 de fevereiro de 2016, do Ministério da Saúde, prevê aos profissionais ou responsáveis pelos serviços públicos ou privados a notificação compulsória a autoridade de saúde em até 24 (vinte e quatro) horas a contar do primeiro atendimento a paciente com suspeita ou confirmação de violência sexual.

Não obstante, após a repercussão midiática do crime foi editada a Portaria n° 2.282, de 27 de agosto de 2020 que incumbiu aos profissionais supramencionados o dever de notificar o fato a autoridade policial, como também estipulou 04 (quatro) fases para a realização do procedimento, sendo a primeira fase a elaboração de termo de relato circunstanciado; a segunda se dará com a intervenção médica e com a elaboração de parecer técnico (nesta ocasião a equipe deverá informar a paciente da possibilidade de visualizar o feto ou embrião por meio de ultrassonografia); terceira a assinatura da termo de responsabilidade e a quarta a assinatura do termo de consentimento.

Nossa crítica às modificações advindas desta Portaria é quanto a burocratização, haja vista a imposição de fases antecedentes a interrupção da gravidez, que inclui  a exposição da paciente as imagens do produto da violência sexual e a perpetuação do seu sofrimento, dado que reviverá os fatos em mais de uma ocasião, ou seja, na unidade de saúde, delegacia de polícia e no Poder Judiciário.

No que concerne a autorização judicial, o legislador não incluiu no ordenamento jurídico pátrio nenhuma cláusula de reserva de jurisdição como requisito para interrupção da gravidez por questões humanitárias ou sentimentais. Por conseguinte, a paciente, vítima do crime de estupro, consinta com a realização do procedimento, não deve existir nenhuma objeção da unidade de saúde.

A menina deu entrada na unidade de saúde no município que reside, porém após o atendimento prévio e ante a impossibilidade de realizar o procedimento in loco, fora encaminhada para o Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes – HUCAM, localizado em Vitória, referência em aborto.

Na unidade hospitalar, a criança foi submetida a nova avaliação e, neste ínterim houve prolação de decisão judicial, autorizando a interrupção da gravidez. Em seguida, contrariando a legislação penal e o veredito, manifestou-se o HUCAM pela recusa em realizar o procedimento sob o argumento de avanço da idade gestacional e o peso superior ao recomendado na Norma Técnica, do Ministério da Saúde.

Sem aprofundar no tema, mas a título ilustrativo, salienta-se que as normas que compõe o ordenamento jurídico brasileiro estão escalonadas de acordo com a Pirâmide de Kelsen, onde a Constituição Federal e as Emendas Constitucionais ocupam o ápice. Posteriormente temos as normas supralegais, legais (Código Penal) e infralegais (Portarias e Normas Técnicas do Ministério da Saúde). Com efeito, normas inferiores devem está em consonância com norma superior.

Corolário a essas informações vislumbra-se que o HUCAM não tinha a faculdade de decidir sobre a realização ou não da interrupção da gravidez, mas o dever, visto que a legislação penal é cristalina quanto os requisitos autorizadores do aborto humanitário ou sentimental. Logo, as justificativas apresentadas pela unidade hospitalar carecem de amparo legal e resultaram em grave violação ao princípio da dignidade da pessoa humana.