Resumo: A peça teatral, em questão, envolve a autonomia privada, a obrigatoriedade dos contratos, cláusula penal, nulidade contratual, julgamento e, ainda, sobre nota promissória, fiança e, adimplemento contratual. Interessante é observar que ao final, podemos entender o dirigismo contratual do Estado e, a prevalência da função social do contrato como forma de respeito ao princípio da dignidade humana.

Palavras-Chave: Contrato. Mútuo. Cláusula Penal. Usura. Agiotagem. Nulidade contratual. Julgamento.

Há forte apelo jurídico na peça teatral de Shakespeare intitulada “O Mercador de Veneza” ou “The Merchant of Venice”. Shylock era judeu estabelecido que cobrava como remuneração de empréstimos altos juros. Trata-se, realmente, de criatura amargurada porque sua filha Jéssica fugiu e se converteu ao cristianismo. Shylock se acha perseguido e chama os juros cobrados como legítimos lucros. Sente que o mundo inteiro se voltou contra ele.

Contudo, há uma questão comercial, pois Shylock odeia o mercador cristão porque “em sua vil simplicidade”, empresta dinheiro de forma graciosa e, assim, promove a franca queda da usura[1] em Veneza.

A respeito de jurisprudência, no ordenamento jurídico brasileiro o Superior Tribunal de Justiça, na I Jornada sobre o Código Civil de 2002, fixou um entendimento prévio, in litteris:

“Jornada STJ 20: A taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 é a do art. 161, §1º do Código Tributário Nacional, ou seja, 1% ao mês. A utilização da taxa SELIC como índice de apuração dos juros legais não é juridicamente segura, porque impede o prévio conhecimento dos juros; não é operacional, porque seu uso será inviável sempre que se calcularem somente juros ou somente correção monetária; é incompatível com a regra do art. 591 do novo Código Civil, que permite apenas a capitalização anual dos juros, e pode ser incompatível com o art. 192, § 3º, da Constituição Federal, se resultarem juros reais superiores a 12% ao ano.”

Portanto, a limitação dos juros deve observar o índice de 1% ao mês, ou seja, 12% ao ano e, através de uma interpretação sistemática deste entendimento com o os dispositivos da Lei de Usura[2], a Professora Doutora Cíntia Rosa Pereira de Lima apud usura (In: Usura – pt.LinkFang.org ) ressalta que deve ser considerado o dobro desta taxa legal, ou seja, 2% ao mês ou 24% ao ano. Afora isso, estaria caracterizada a usura.

A Súmula Vinculante nº 7, editada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e publicada no Diário da Justiça Eletrônico nº 112, de 20 de junho de 2008, dita o seguinte:

“A norma do §3º do artigo 192 da Constituição, revogada pela Emenda Constitucional nº 40/2003, que limitava a taxa de juros reais a 12% ao ano, tinha sua aplicação condicionada à edição de lei complementar”.

A controvérsia que motivou a criação da Súmula Vinculante nº 07 se refere à discussão sobre a autoaplicabilidade ou não do disposto no artigo 192, §3º, da CFRB/1988, antes da EC nº 40/2003. Doutrina e jurisprudência, em sentido que pouco divergia, entendiam que tal norma era autoaplicável, ou seja, não necessitava da edição de lei, ordinária ou complementar, para que passasse a produzir efeitos.

Registre-se que, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4, em 07 de março de 1991, o STF entendeu que o dispositivo não era inconstitucional, mas aguardava, apenas, a edição de lei complementar que o regulamentasse, sendo que deveria ser observada a legislação anterior à Constituição brasileira de 1988 naquilo que fosse necessário.

Todavia, antes da EC nº40/2003, sem que o Congresso Nacional editasse tal lei, os bancos e demais instituições financeiras ficaram livres para fixar suas taxas de juros. Foram, então, incontáveis os julgamentos que contrariavam a orientação do STF, onde eram limitadas as taxas de juros mediante a aplicação da Lei da Usura (Decreto-Lei nº 22.626/1933) e do Código de Defesa do Consumidor (CDC); afinal, sem lei que regulamentasse o artigo 192, §3º, da CF/88, a cobrança de juros excessivos (usura) começava a surgir, correndo-se o risco de se tornar uma conduta recorrente.

Assim, o STF decidiu por editar referida súmula, afirmando que a aplicabilidade de tal dispositivo, e, consequentemente, da taxa de juros reais fixada, dependia de edição de lei complementar, que, saliente-se, jamais foi editada.

Apesar de questionada no meio jurídico, tal decisão se baseou no fato prático e cotidiano de que a taxa de juros[3] de uma economia jamais pode ser fixada por lei ou ainda pela própria Constituição. Isso porque tal taxa depende de uma série de indicadores macro e microeconômicos, além de variáveis referentes à economia nacional e também internacional.

Bassânio era outro personagem, muito inteligente, mas que dissipou toda sua fortuna e, precisa de dinheiro para viagem a Belmonte[4], onde deseja corteja Pórcia (Portia), uma abastada órfã.

Com esse propósito, Bassânio procura o amigo Antônio que é próspero comerciante em Veneza. Mas, infelizmente, naquele momento não tem dinheiro para emprestar o amigo porque toda sua fortuna está investida em seus navios mercantis, mas promete conseguir a referida soma. Acaba recorrendo a Shylock, a quem despreza. O judeu empresta dinheiro a Bassânio, tendo Antônio como fiador.

Importante salientar, a fiança é espécie de contrato através do qual uma pessoa, o fiador, garante com seu patrimônio a satisfação de um credor, caso o devedor principal, que é quem contraiu dívida, caso não a solva em seu vencimento. A peça retrata a garantia fidejussória, ou seja, de natureza pessoal baseada pela confiança existente entre as partes.

Embora envolva patrimônio de terceiro que garante o pagamento do débito, difere da garantia real, que é a que vincula determinado bem de propriedade do devedor ao cumprimento da obrigação.

A fim de garantir a execução de um contrato principal, como o mútuo[5], a fiança assume natureza jurídica de contrato acessório e subsidiário, dependente e seguindo a mesma sorte do contrato principal. Sendo que sua execução, o ficará subordinada ao não pagamento do contrato principal pelo devedor. Em razão desta característica, uma vez declarada a nulidade[6] do contrato principal, a fiança perecerá, a não ser que esta nulidade decorra de incapacidade pessoal do devedor, salvo nos casos de mútuo feito à menor de idade.

O menor de 18 (dezoito) anos pode celebrar contrato de mútuo desde que esteja assistido ou representado, salvo se emancipado. Se não estiver legalmente autorizado, o negócio jurídico é nulo ou anulável por faltar capacidade de direito ao menor de 18 anos, não podendo ser cobrado pelo mutuante, nem se houver celebrado o mútuo com garantia de fiança.

Tal regra não é absoluta, havendo exceções no artigo 589 do CC, se houver ratificação do representante legal, se for contraído para os alimentos habituais ou se reverteu em benefício do menor, se o menor tiver ganhos com o seu trabalho ou se agir o menor maliciosamente, no caso de omitir que era menor de 18 anos ao mutuante.

Visa evitar que o menor contraia empréstimo e depois alegue a incapacidade para se eximir da obrigação, conduta vedada pela teoria do venire contra factum proprium[7], que proíbe comportamento contraditórios.

A expressão venire contra factum proprium poderia ser vertida para o vernáculo em tradução que se apresentaria em algo do tipo “vir contra seus próprios atos” ou “comportar-se contra seus próprios atos”, pode ser apontada, em uma primeira aproximação, como sendo abrangente das hipóteses nas quais uma mesma pessoa, em momentos distintos, adota dois comportamentos, sendo que o segundo deles surpreende o outro sujeito, por ser completamente diferente daquilo que se poderia razoavelmente esperar, em virtude do primeiro.

Em decorrência de seu caráter acessório, seu valor pode ser inferior e, em condições menos onerosas às da obrigação assegurada, não podendo, porém, em hipótese alguma, ultrapassar o valor desta, uma vez que o acessório não pode superar o principal, sendo que, caso o acessório ultrapasse ao valor do principal, não se anula toda a fiança, mas somente o excesso, fazendo com que se reduza ao montante da obrigação afiançada.

Conclui-se que a fiança se institui como obrigação subsidiária entre as partes (fiador e afiançado), mas conforme prevê o artigo 828, inciso II do Código Civil brasileiro, esta responsabilidade pode ser convencionada como sendo solidária. É um contrato unilateral, pois só gera obrigações ao fiador, desde que intimado a cumpri-la, e é solene, pois só será considerado se feito nos moldes da lei, ou seja, na forma escrita, por instrumento público ou particular, no próprio corpo do contrato principal ou, em apartado.

Em geral, considera-se contrato gratuito, pois a ajuda prestada pelo fiador ao afiançado não visa nenhuma contraprestação pecuniária, no entanto, pode ser oneroso, quando o afiançado remunera o fiador pela fiança prestada, como é no caso dos bancos, por exemplo.

Ainda, por ser um contrato benéfico não se pode cogitar de interpretação extensiva, segundo os artigos 114 e 819 do Código Civil. Trata-se, ainda, de contrato personalíssimo, contemplado como intuitu personae, porque se firma com fulcro na confiança que o fiador merece.

Enumeremos as características da fiança, a saber: ser uma garantia fidejussória; caráter acessório e subsidiário, ser contrato unilateral e solene, via de regra, ser gratuito e, por fim, ser contrato benéfico e personalíssimo[8].

Existem três espécies de fiança, a saber; convencional, legal e a judicial. A primeira decorrente de acordo entre as partes, a segunda é imposta por lei e, a última, é determinada pelo juiz.

A fiança poderá ser extinta por todas as causas que extinguem os contratos em geral, assim como por atos praticados pelo credor, conforme determina o artigo 838, do CC.

A redação deste artigo institui que “o fiador, ainda que solidário, ficará desobrigado: I – se, sem consentimento seu, o credor conceder moratória ao devedor; II – se, por fato do credor, for impossível a sub-rogação nos seus direitos e preferências; III – se o credor, em pagamento da dívida, aceitar amigavelmente do devedor objeto diverso do que este era obrigado a lhe dar, ainda que depois venha a perdê-lo por evicção”. A enumeração legal é taxativa.

Prevê o artigo 836, do CC, por sua vez, que “a obrigação do fiador passa aos herdeiros; mas a responsabilidade da fiança se limita ao tempo decorrido até a morte do fiador, e não pode ultrapassar as forças da herança”. Dispõe, ainda, o artigo 839, do CC, que se por negligência do credor, após ter o fiador requerido o benefício de ordem, o devedor principal tornar-se insolvente, seus bens não responderão por tal débito, ficando, por consequência, exonerado do encargo. Para ocorrer tal exoneração, deve-se demonstrar que, ao tempo da penhora, os bens nomeados eram suficientes para a satisfação da dívida.

Registra o judeu, Shylock que Bassânio não segue o conselho de Polônio de Hamlet. “Não peça emprestado nem empreste; pois com frequência quem empresta perde o emprestado e também perde o amigo”. (HAMLET, Ato I, Cena 3). Então, Shylock entrega o dinheiro a Antônio e o questiona: Então não sou mais o cão? Antônio, em resposta: – “Tu serás sempre um cão para mim; empresta esta soma como a um inimigo”.

O judeu busca resguardar-se e, procura uma sólida proteção ao empréstimo dado. E, como garantia, na eventualidade de o dinheiro não ser devolvido no prazo pactuado, Antônio, como devedor, se compromete em entregar uma libra de sua carne[9], que poderá ser escolhida e cortada de não importa qual parte do corpo que for do agrado do credor.

Portanto, Antônio oferece o próprio corpo como garantia da obrigação pactuada (empréstimo). Antônio pretendia pagar a dívida quando seus navios voltassem em breve, mas isso, não ocorre. E, por causa disso, não consegue quitar o empréstimo. E, diante da inadimplência, Shylock leva a demanda ao Doge[10] de Veneza, exigindo o integral cumprimento da cláusula penal que corresponde a efetiva entrega de uma libra de carne do devedor.

A cláusula penal é instrumento acessório que estabelece pena ou multa utilizada como elemento que visa punir o inadimplemento das obrigações. Incide de pleno direito, o devedor em cláusula penal, desde que, culposamente deixe de cumprir a obrigação, ou ainda, se constitua em mora.

A cláusula penal é acessória de uma obrigação principal, que sujeitará a vontade do devedor ao contrato. Nas obrigações decorrentes de ato ilícito, a mora decorre de determinação legal. Desde o momento em que o ato ilícito é cometido, os riscos da coisa devida correm por conta do devedor. A esse respeito, a propósito, informa o artigo 398, do Código Civil/2002.

Em síntese, sabe-se que a culpa é uma das integrantes da mora ou um dos seus pressupostos (art. 248, do Código Civil/2002). A mora é o retardamento na execução, de onde resulta a necessidade de presumir ainda a sua possibilidade.

O efeito da distinção entre cláusula penal compensatória e moratória vai encontrar no Código Civil/2002, nos artigos 410 e 411. A respeito da disposição contida no artigo 410, do Código Civil/2002, que trata do total inadimplemento da obrigação, aduz Maria Helena Diniz (2007), que o credor poderá, ao recorrer às vias judiciais, optar livremente entre a exigência da pena convencional e o adimplemento da obrigação. A cláusula penal é alternativa a favor do credor.

Escolhida a pena, desaparece a obrigação originária e, com esta, o direito de pedir perdas e danos, que já se acham prefixados na pena. Escolhendo o credor o cumprimento da obrigação, e não podendo obtê-la, a pena funcionará como compensatória das perdas e danos.

O artigo 411, do Código Civil/2002, que trata da mora ou em segurança  especial de outra cláusula determinada, apresenta duas vertentes: a) se a cláusula penal for convencionada para o caso de mora, assistirá ao credor o direito de demandar cumulativamente a pena convencional e a prestação  principal; b) se a cláusula penal visar à garantia da execução de alguma cláusula  especial, terá o credor a faculdade de reclamar a satisfação da pena ou multa  cominada juntamente com o desempenho da obrigação principal.

Trava-se interessante diálogo no qual Shylock toma ciência que nem o devedor, Antônio, nem o fiador, Bassânio, pagarão a dívida conforme estipulado. De forma, que o judeu pode cobrar a caução, ou seja, uma libra de carne do garantidor.

Mas, um outro comerciante questiona Shylock qual proveito teria com uma libra de carne? O que respondeu: – “Para cervar os peixes, se não vai servir para nada, saciará minha vingança”.

Evidentemente, o Direito não legitima tal propósito. Outro judeu[11], Tubal que é amigo de Shylock aparece para confirmar a falência de Antônio que em razão disso, não poderá pagar a dívida. E, ainda conta que a filha foragida, Jéssica, está desmedidamente gastando a fortuna de Shylock, que se apoderou ao fugir com o cristão.

Então, Shylock se desespera e Tubal ainda lhe conta que Jéssica trocara um precioso anel de turquesa por macaco. Jéssica levou parte da fortuna do pai para viver com o cristão e, ambos dilapidaram o dinheiro.

Na peça teatral, existe uma trama distinta, porém, convergente, como quem precisa do dinheiro é Bassânio para cortejar Pórcia (Portia), a rica jovem de Belmonte.

Bassânio é perdulário, pois para sustentar seu estilo custoso de vida, gastou suas fracas rendas. E, para casar-se com Pórcia (Portia), Bassânio precisa passar num teste que fora imposto em testamento do falecido pai da noiva.

A prova consiste que o pretendente é colocado diante três urnas, uma de ouro, outra de prata e, a última de chumbo[12]. Cabe ao candidato escolher uma única urna que, no seu interior tem uma pintura de Pórcia. Se o pretendente apontar para a urna errada, dever ir embora imediatamente. O que aflige muito Pórcia que está interessada em Bassânio.

Tentando burlar o teste imposto, Pórcia[13] pede a Bassânio que espera um dia ou dois, antes de proferir a escolha. Pois, se escolher erroneamente, ela perderá a companhia do pretenso noivo.

Bassânio enquanto escolhe uma das urnas, afirma in litteris: “As mais brilhantes aparências podem encobrir a mais vulgares das realidades. O mundo vive sempre enganado pelos ornamentos.”

“Em justiça, qual é a causa impura e corrupta a que uma voz persuasiva não possa apresentando-a com habilidade, dissimular o odioso aspecto?”

“Em religião, qual erro detestável que não possa, sacrificado por uma fronte austera e apoiado nos textos adequados, esconder grosserias debaixo de belos ornamentos? O mais simples dos vícios sempre se apresenta sob os aspectos da virtude”. (Ato III, Cena 2).

É o clássico paradoxo existente entre a forma e conteúdo. Mesmo a justiça fica refém da voz persuasiva. Bassânio, finalmente, escolhe a urna de chumbo. E, fez a opção correta.

Eis a tradução literal da mensagem contida na urna: “Quem o aspecto não tentou. Escolheu bem, na verdade; se a fortuna te tocou. Não busques mais novidade. Se alegria ela te dá. E riquezas benfazejas. Beija a noiva que aqui está. Se é ela que desejas. É promissória[14] para dar e pagar”. (Ato III, Cena 2).

Inicialmente, Bassânio sela sua relação amorosa com Pórcia (Portia). Curiosamente, o bardo compara a noiva a uma nota promissória de fácil resgate. O que faz adequado sentido, pois é inserida num mundo comercial.

É necessário, entretanto, que apontemos as características próprias da nota promissória, que a diferenciam das demais espécies de títulos de crédito.

Gladston Mamede (2003) ensina que a nota promissória é um título de crédito que documenta a existência de um crédito líquido e certo, que se torna exigível a partir de seu vencimento, quando não emitida à vista, sendo um instrumento autônomo e abstrato de confissão de dívida, emitido pelo devedor que, unilateral e desmotivadamente, promete o pagamento de quantia em dinheiro que especifica, no temo assinado na cártula.

Segundo Fábio Ulhôa Coelho (2004), a nota promissória é uma promessa de pagamento, cujo saque gera, em decorrência, 2(duas) situações jurídicas distintas: a de quem, ao praticar o saque, promete pagar; e a do beneficiário da promessa.

O primeiro é referido, na Lei Uniforme, por subscritor (embora não esteja incorreto chama-lo sacador, emitente ou promitente), e o segundo é o tomador (por vezes também chamado de sacado). Pela nota promissória, o subscritor assume o dever de pagar quantia determinada ao tomador, ou a quem esse ordenar.

A nota promissória é a  espécie de título de crédito que se consubstancia numa declaração unilateral  de promessa de pagamento de determinada quantia líquida, independente de  condição (evento futuro incerto), e que gera 2(duas) situações jurídicas, a do  emitente (também denominado “subscritor”, “sacador” ou “promitente”) –  que é o emitente da nota promissória, aquele que se compromete a pagar a  quantia fixada no título na data avençada – e a do beneficiário (também  denominado “tomador” ou “sacado”), a quem cabe receber o valor do título  na data avençada (caso não o transfira a outra pessoa.

Em verdade, Pórcia (Portia) paga com a mesma moeda, depois de entregar um valioso anel a Bassânio, registra que “amar-te-ei muito”. Trata-se de um amor mercantil.

Porém, antes de casar, Bassânio toma ciência de que Shylock cobra a libra de carne de Antônio por uma dívida onde ele é o devedor principal. Em razão disso, Bassânio corre para Veneza para socorrer o amigo.

Diante o julgamento, perante o Doge, para afastar o dever do Antônio em dar a própria carne, Bassânio oferece ao judeu o dobro do valor devido. Mas, Shylock recusa a oferta e insiste o cumprimento do contrato.

O Doge roga a Shylock por alguma misericórdia. E, Shylock afirma que não comete erros. A resposta do judeu nos conduz a uma reflexão. Estaria Shylock correto? Podemos exigir nossos direitos acima de qualquer valor? Será certo afirmar que quem não respeita os direitos alheios, também não poderá reclamar quando seu direito for violado?

Os deveres jurídicos que correspondem ao viver honestamente e, não prejudicar a ninguém (neminem laedere), e o de dar a cada um, o que é seu (suum cuique tribuere). Ao exigir o seu direito, o seu crédito, deve-se atuar com base nessas máximas de Ulpiano. Se o direito é exigido com excesso, com prejuízo desnecessário há abuso de direito.

Entre os civilistas brasileiros mais modernos, afora Caio Mario da Silva Pereira, inexiste controvérsia sobre o fato de o Código Civil brasileiro ter consagrado a doutrina do abuso do direito. Há aqueles que sustentam expressamente o critério finalista ou o objetivista.

Exceção feita a Everardo da Cunha Luna, não se logrou encontrar uma defesa explícita do critério subjetivista, que em alguns casos apenas transparece. Singular é, ainda, a posição de Serpa Lopes que, sem negar a importância da vertente objetivista, afirmou que o legislador pátrio, ao traçar as regras dos artigos 100 e 160, I, do Código Civil de 1916, apenas fixou um critério geral; caberá à jurisprudência dele extrair o sentido mais apropriado à espécie sob julgamento.

Mas, a inserção do abuso do direito nos limites da teoria geral dos atos ilícitos também é objeto de muita controvérsia.  Há aqueles que consideram o ato abusivo um simples ilícito, categoria não autônoma, com repercussões no campo da responsabilidade civil. Outros tantos consideram-no, ainda que sob denominações diversas, uma ilicitude in lato sensu, que implica inclusive o dever de abstenção.

Há duas posições jurídicas sedimentadas quanto a natureza jurídica do abuso de direito. Uma corrente doutrinária enquadra o abuso de direito como uma categoria autônoma, com características próprias, não pertencendo a nenhuma categoria jurídica existente. Já para uma outra corrente, o abuso de direito trata-se de modalidade de ato ilícito.

O ato ilícito, cujos contornos estão no artigo 186 do Código Civil, tem concepção subjetivista, tendo a culpa como um dos requisitos para a sua configuração. Já em relação ao abuso de direito, muito embora o legislador o tenha qualificado como ato ilícito, importante seguimento doutrinário e jurisprudencial, como visto ao longo do presente artigo, entendem que na verdade, trata-se de um instituto de caráter objetivo e, portanto, dispensável o elemento culpa.

A questão que se coloca é saber se em razão de se adotar uma ou outra corrente, no que se refere à natureza jurídica do abuso de direito, há alteração nas consequências jurídicas daí decorrentes.

Entre os defensores do entendimento que o abuso de direito se trata de categoria autônoma, cita-se (NERY JUNIOR e NERY, 2003), para os quais o abuso de direito. No mesmo sentido, Heloísa Carpena (2002) apud Farias e Rosenvald (2012) afirma que “o ato abusivo está situado no plano da ilicitude, porém, não pode ser considerado como um ato ilícito, devendo ser classificada como uma forma autônoma de antijuridicidade.”

Em sentido contrário, Paulo Nader entende que o abuso de direito, in verbis: “É espécie de ato ilícito, que pressupõe a violação de direito alheio mediante conduta intencional que exorbita o regular exercício de direito subjetivo. É equivocado pretender-se situar o abuso de direito entre o ato lícito e o ilícito.

Ou o ato é permitido no iuspositum e nos pactos, quando é ato lícito ou a sua prática é vedada, quando então se reveste de ilicitude. Na dinâmica do abuso de direito, tem-se, no ponto inercial, aquele que imediatamente antecede a conduta e até quando esta não se complete, a esfera do direito, mas à medida em que a ação se desenrola, no iter, a conduta desdobra-se no âmbito da licitude para transformar-se em ato ilícito” (NADER, 2004).[15]

Deverá haver o enquadramento da pretensão do credor no que se admite como normal e razoável, no uso regular do direito, com fins justos e consequências adequadas. (In: CASTRO NEVES, J.R. Uma Introdução ao Direito Civil. 3ª edição. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2012, p. 178).

Shylock exige o cumprimento da prestação conforme convencionado. A negação de seu direito significa a negação das leis.  Jhering registra que é a própria lei de Veneza que reclama a sua libra de carne, porque o direito de Shylock é, o mesmo direito de Veneza.

Então, o Duque consente que Shylock cumpra o acordo, autorizando-se a retirar uma libra de carne do devedor inadimplente. Nesse momento, entra em cena Pórcia (Portia), a noiva de Bassânio entra travestida de advogado. Na ocasião, o Doge representando o Estado de Veneza, chamara um jurista de Pádua para determinar o caso.

Pórcia entrega uma carta ao Doge, supostamente do jurista de Pádua e, apresenta-se como sendo seu representante apto a solucionar a querela.

Pórcia desempenha um papel-chave na trama, mas precisa se passar por homem. E hoje? Qual o papel da mulher na sociedade? As conquistas femininas são iguais em toda parte? Sabemos que não, ainda no século XXI.

Outros amigos de Antonio tentam convencer Shylock de não cobrar a dívida em contrato, uma vez que Antonio não conseguiu cumprir sua parte e, em um momento de cólera, Shylock professa o célebre discurso “Hath not a jew eyes? “, que a seguir temos um trecho:

[…] “Ele desgraçou-me, e fez-me perder meio milhão, riu-se das minhas perdas, troçou dos meus ganhos, zombou da minha nação, destroçou as minhas barganhas, arrefeceu-me os amigos, aqueceu-me os inimigos. Qual o motivo? Porque sou judeu. Será que um judeu não tem olhos? Um judeu não tem mãos, órgãos, dimensões, sentidos, afetos, paixões? Não é alimentado com a mesma comida, ferido com as mesmas armas, sujeito às mesmas doenças, curado pelos mesmos meios, aquecido e arrefecido pelo mesmo Inverno e Verão, como um cristão? Se nos picarem, não sangramos? Se nos fazem cócegas, não rimos? Se nos envenenam não morremos? E se nos fizerem mal, não nos deveremos vingar?” […].

Curiosamente, a maneira como os judeus foram descritos na literatura inglesa ao longo dos séculos, e essa literatura influenciando outras literaturas e mídias, carrega forte influência de Shakespeare e a interpretação de seu Shylock.

Com poucas variações, a maior parte das obras literárias do país anteriores ao século XX mostram um judeu excessivamente caricato, descrito quase sempre como um indivíduo rico e avarento, lascivo e somente tolerado pela riqueza e influência que possui. Esse tema é bastante explorado no livro “The Fictive Jew in the Literature of England”, de David Mirsky.

Shylock, acuado, revê sua posição e afirma aceitar o dinheiro oferecido, mas o juiz lhe nega, por este já ter recusado esse acordo. Nesse momento, por ter conspirado contra a vida de um veneziano, é definido que Shylock terá que entregar metade de seus bens a Antonio e a outra metade ao Estado. Antonio, por fim, nega sua parte, afirmando como condição a conversão de Shylock ao cristianismo, forçando-o, assim, além de praticamente perder todos os seus bens, também abdicar de sua fé.

Há na teoria dos contratos muitos conceitos menos abstratos e mais aplicáveis. É utilizada em seus estudos o famoso Teorema da Utilidade de Neumann-Morgenstern, por exemplo, que é a base para a Teoria da Utilidade Esperada.

Consequentemente, a Teoria dos Contratos é profusamente analisada e aplicada em outra área importantíssima para Economia, e tão interessante quanto, a Teoria dos Jogos[16]. O Equilíbrio de Nash é um bom modelo para essa aplicabilidade, e todos os estudos acerca da Teoria da Decisão[17].

Procura encontrar soluções para o clássico e comum Problema da Seleção Adversa, problema qual ocorre quando uma das partes envolvidas numa transação sabe coisas relevantes à essa transação, mas que são desconhecidas para a outra parte interessada.

Age com cuidado o Doge e, solicita ao jurista que ocupe seu lugar e lhe indaga se conhece os fatos da demanda. Aliás, são garantias fundamentais para julgamento justo é a adequada ciência dos fatos e a legitimidade do julgador.

Aliás, a respeito das garantias fundamentais é importante salientar a importância do juiz das garantias. O “juiz das garantias” não é uma cogitação de agora, pois já estava contemplado no Projeto de Lei nº 156/2009 do Senado Federal, que trata da instituição do novo Código de Processo Penal, tendo-se submetido a amplo debate pela comunidade jurídica desde então.

O juiz das garantias é o responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário (art. 3º-B)”.

Clama, o advogado que Shylock deva se mostrar misericordioso. E, o judeu questiona onde está escrito que devemos ser misericordiosos.

Os principais Princípios Implícitos de Administração Pública são: Princípio da Supremacia do Interesse Público, Presunção de Legitimidade ou Presunção de Legalidade, Princípio da Continuidade do Serviço Público, Princípio da Isonomia ou Princípio da Igualdade, Princípio da Igualdade ou Princípio da Razoabilidade.

No plano processual, o julgamento também deve ser razoável e proporcional. Nesse ponto, no que se refere aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade dentro do contexto processual, observamos que também decorrem do devido processo legal.

Conforme leciona, a cláusula geral do devido processo legal trata-se do conjunto das garantias processuais mínimas (contraditório, ampla defesa, juiz natural, motivação, publicidade, tempestividade, etc.), explícitas e implícitas, que são asseguradas aos litigantes.

Contudo, todas essas garantias compõem o devido processo legal na sua dimensão processual. Estamos falando, nesse prisma, do devido processo legal na sua acepção formal, processual ou procedimental.

Mas a doutrina contemporânea vem inserindo o princípio do devido processo legal não apenas no contexto meramente processual, mas também substancial. É que a arbitrariedade pode ser cometida com violência processual formal (prova ilícita, inexistência de motivação, ausência de contraditório, etc.), mas também no conteúdo das decisões. É preciso impedir decisões desproporcionais, arbitrárias, irrazoáveis. Porque é possível que a decisão tenha respeitado todas as garantias processuais e seja absurda. Logo, o devido processo legal também adentra no conteúdo. É preciso que as decisões judiciais também sejam devidas no que se refere à sua substância. Estamos cogitando agora do devido processo legal na sua acepção material, substancial, ou substantiva, que é exatamente a aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

A doutrina costuma dividir o devido processo legal em formal e substancial. O devido processo legal formal (processual) é o conjunto das garantias processuais a assegurar um processo justo em conformidade com o direito, acepção já muito difundida.

Já o devido processo legal material (substancial) é a exigência de justiça no conteúdo da decisão, isto é, no aspecto substantivo, um processo que seja justo não só nas garantias formais, mas também no plano material. Não basta a obediência às formas prescritas (garantias processuais formais), é necessário que isto reflita em uma decisão justa.

E no Brasil, entende-se o devido processo legal substancial como uma aplicação dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Em outros termos, o princípio do devido processo legal substancial é a fonte dos deveres de proporcionalidade e razoabilidade.

Grande parte da doutrina e da jurisprudência tratam tais princípios como sinônimos, principalmente por transmitirem a mesma noção de adequação. Porém, existem doutrinadores que traçam as diferenças técnicas entre a proporcionalidade e razoabilidade. É adotada também por parte da jurisprudência. E, segundo ela, enquanto a proporcionalidade consiste na graduação da medida (proibição do excesso[18]), a razoabilidade considera a análise de: adequação (que a compatibilidade entre a medida adotada e o caso concreto), necessidade (exigibilidade da medida em face da situação).

A diferença mais evidente entre tais princípios é quanto a origem. Pois a proporcionalidade nasceu no direito alemão, enquanto a razoabilidade[19] no direito anglo-saxônico. É bem verdade que por vezes um buscou a inspiração do outro, porém, cada qual resguardou aspectos culturais próprios.

A razoabilidade teria como objetivo impedir a prática de atos que fogem a razão e ao equilíbrio do “pensamento comum”. Já a proporcionalidade teria um campo de atuação maior: seria um verdadeiro parâmetro para se aferir à adequação e a necessidade de um determinado comando normativo no ordenamento jurídico.

Desta forma, a proporcionalidade seria uma espécie de “teste de fogo” para todas as normas que limitam direitos fundamentais. No entanto, esclarecemos que há doutrinadores que usam o termo “razoabilidade” de forma bem abrangente, incluindo aí aspectos relacionados à proporcionalidade.

A crueldade do contrato está em prever a violenta cláusula penal. Realmente, quando a clemência tempera a justiça, o poder do homem fica mais próximo do poder divino. Curiosamente, na Inglaterra havia regras que impediam o juiz de perdoar.

A remissão tida como perdão foi tema examinado detidamente pelo filósofo Hobbes em 1666. O texto era “Diálogos entre um Filósofo e um jurista”. O debate incide em saber se o Estado pode intervir para perdoar se o Estado pode ser clemente. Questiona-se: se haveria espaço para o árbitro? Apesar de bela a ponderação de Pórcia (Portia), não sensibiliza Shylock.

Bassânio oferece o dobro da soma dando como garantias suas mãos, cabeça e o coração. E, sustenta que diante da iniquidade, a lei deve ser esquecida e renegada. Traz a questão, um típico exemplo de abuso de direito onde a “maldade impõe sobre a inocência”. Há o duelo entre o pacta sunt servanda e summum jus summa injuria, o primeiro, na visão de Pórcia leva melhor. Cumpra-se o contrato[20].

O Estado de Direito preocupa-se com a coerência e razoabilidade. Segue o julgamento e Pórcia lê o contrato e prevê que o credor deve tirar uma libra de carne, sem tirar qualquer gota de sangue, devendo o credor, retirá-la sem tirar qualquer gota de sangue.

E, o jurista não admite, portanto, que o credor sangre o devedor, pois não fora pactuado. Com a impossibilidade, não é possível a entrega de uma libra de carne.

Aplicou-se ao extremo, o conceito de identidade da prestação, admitindo-se a interpretação literal, retirando-lhe qualquer efeito prático.  O jurista (travestida de Pórcia) acusa Shylock: a cláusula penal atenta contra a vida do devedor. É nítido o abuso de direito.

O julgador inova o tema em debate, criando uma acusação sem oportunidade de defesa. Segundo as leis de Veneza, se ficar provado que um estrangeiro, através de manobras diretas ou indiretas, atentar contra a vida de um cidadão, a pessoa ameaçada ficará com a metade dos bens do culpado e a outra metade, vai para caixa privada do Estado e a vida do ofensor ficará entregue à mercê do exige que terá voz soberana.

Por uma generosidade de Antônio Shylock pode manter metade dos bens, desde que se converta ao cristianismo e faça uma doação futura, quando morrer, a fim de que seus bens sejam integralmente herdados por sua filha Jéssica que fugira com um cristão.

A outra metade dos bens de Shylock vai para o Estado de Veneza. A propriedade do judeu é mutilada; metade diretamente ao Estado, enquanto a outa só será mantida se cumprir dois requisitos, um é extremamente cruel, que é o obrigar renunciar à sua religião.

De fato, privar uma pessoa de todos os seus bens, retira-se, dela, também, a possibilidade de viver com dignidade. Há regras no ordenamento jurídico com o propósito de não permitir que alguém fique sem o mínimo necessário à sua subsistência.

Em termos literários, a peça em comento, é uma tragicomédia[21] tanto que finda com três casamentos. Pórcia e Bassânio, Nerissa (amiga de Pórcia) e Graciano (amigo de Bassânio) e, Lorenzo com Jéssica (filha de Shylock).

Shylock é uma figura complexa e enigmática[22], que, inclusive, porém, é coadjuvante pois quem dá o nome a peça é o Antônio que o Mercador de Veneza, mas que é uma figura triste, capaz de dar em garantia o próprio corpo.

O julgamento presente na peça teatral nos incita à inúmeras reflexões. E, resta maculado de suspeição do julgador cuja real identidade é ocultada por Pórcia que tem interesse em ajudar Antônio, amigo de seu futuro marido. Todo o dinheiro do judeu que é retirado em favor dos protegidos de Pórcia, o que é feito com cinismo.

A julgadora não é imparcial, e a justiça mostra-se travestida. Literalmente.

Ao tempo das peças de Shakespeare foram pela primeira vez representadas, só se permitia que atores do gênero masculino atuassem. Assim, mesmo os papéis femininos eram desempenhados por homens. Apenas em 1660 que se permitiu que as mulheres atuassem nas representações teatrais.

Pórcia era um homem fantasiado de mulher, fingindo ser um homem. O que consubstancia avesso do avesso. Configura-se extrema hipocrisia.

Shylock tem sido citado, desde a sua criação por Shakespeare, como a encarnação da usura, a cobrança de juros por empréstimo superiores aos limites admitidos pelo ordenamento jurídico.

Há a exposição de abuso de direito. É evidente que Shylock move a demanda por vingança. O julgador testa a aplicação reta e cega, do princípio da obrigatoriedade do contrato, a força do cumprimento das obrigações, impondo a execução do contrato, apesar do evidente abuso de direito, ao sugerir que Shylock tem direito a receber a sua garantia.

Depois, contudo, faz valer a ferro e fogo, o princípio da identidade das prestações contratuais, proibindo ao credor da garantia retirar uma só gota de sangue de Antônio.

Com esse litígio muito restritiva de objeto da prestação, acaba-se por frustrar a garantia, que se impossibilitou, pois seria materialmente impraticável pegar a libra de carne sem que, ao mesmo tempo, fosse retirado sangue.

Qual seria a utilidade e razão de ser da referida garantia do mútuo praticado? Lembremos da clássica regra da interpretação de Pothier: Quando uma cláusula admitir dois sentidos, deve ser interpretada de modo e que produza algum efeito, zelando-se pela interpretação funcional do contrato.

Foi a regra de Pothier que serviu da interpretação para o artigo 1.157 do Código Civil francês e, depois replicado nos Códigos civis italiano e espanhol (artigo 1.367 e artigo 1.284).

Outro funcionamento não usado, porém, seguramente, a mais forte, que se relaciona ao fato de que, no caso concreto, a entrega de garantia contratada por Antônio acarretaria a sua morte. O objeto da garantia era ilícito e, o possível adimplemento acarretaria a morte de Antônio.

Evidentemente, não se poderia exigir o cumprimento da prestação se isso fosse implicar na morte do devedor. Segundo o artigo 1.135 do Código Civil francês que informa que os contratos obrigam não somente que neles está expresso, mas ainda todas as suas consequências que a equidade, os usos ou a lei dão a obrigação seguindo a sua natureza.

O vínculo do contrato extrapola o que foi redigido e pactuado, para alcançar e respeitar outros limites. O contrato deve ser lido e interpretado harmoniosamente com todo o ordenamento jurídico.

Shylock e Antônio pactuaram uma garantia, cuja execução acarretaria a perda de sangue e, em decorrência da ameaça à vida do devedor, não é exequível. Afinal, o adimplemento provocaria um assassinato do devedor, o que não é permitido pelo ordenamento jurídico.

O Mercado de Veneza retrata um lugar onde vige a plena liberdade de contratar. E, a autonomia privada não encontra balizas, como convém o universo mercantil de uma burguesia em ascensão, que cultua o império da livre vontade[23].

A autonomia privada é o princípio pelo qual o agente tem a possibilidade de praticar um ato jurídico, determinando-lhe o conteúdo, a forma e os efeitos. Já a autonomia privada é o poder que o particular tem de criar, nos limites legais, normas jurídicas.

A autonomia da vontade vai sendo moldada e relativizada, à medida que a sociedade vai evoluindo, particularmente, após a Primeira Grande Guerra Mundial, quando o Estado assume uma posição mais intervencionista, passando a regular com mais rigor as relações privadas.

Nesse cenário, surgiu dirigismo contratual que foi caracterizado pela crescente intervenção estatal onde as relações privadas começam a se pautar, cada vez mais, no interesse da coletividade em detrimento do interesse particular. O que também foi denominado de publicização do Direito Privado, ou ainda, a constitucionalização do Direito Civil.

Conclui César Fiuza, a contratualidade teria evoluído da autonomia da vontade para a autonomia privada, tendo em vista que o contrato deixou de ser acordo livre de vontade entre as partes, sendo possível contratar qualquer coisa que seja do desejo e da necessidade humana, para representar um valor de utilidade social, passando, a ter a combinação de três elementos a saber: ordem, justiça e liberdade[24].

Cabe ao intérprete aferir se o objeto do negócio jurídico em sintonia com os valores sociais e, logo, se é digno receber a tutela do Estado. Evidentemente, a garantia dada por Antônio a Shylock, no ordenamento jurídico vigente, seria considerada nula por violar o respeito à integridade física do ser humano e, ipso facto, sua dignidade humana.

Outro tema, se refere ao julgamento de Shylock. Teria sido injustiçado por sua religião? Houve um julgamento isento? Então, um judeu não possui mãos, órgãos, dimensões, sentidos, afeições e paixões?

Curiosamente, cumpre ainda assinalar que praticamente não havia judeus na Inglaterra, na época de Shakespeare, pois, oficialmente todos os judeus foram expulsos em 1290 pelo Rei Eduardo I.

Além disso, o pai do dramaturgo fora acusado de praticar agiotagem, e a peça poderia ser uma tentativa de humanizar tal atividade empresarial de mútuo, recebendo como contraprestação a quantia somada aos juros cobrados.

Em 1590, deu-se um ruidoso caso que influenciou o bardo, entre os poucos judeus que viviam em Londres, encontrava-se médico nascido em Portugal, chamado Roderigo Lopes[25], e chegou até servir a Rainha Elizabeth I. O médico judeu, se envolveu em intriga e, acabou sendo acusado por tentar envenenar a Rainha Virgem. O processo de julgamento do médico judeu, ocorreu em 1594, foi um simulacro, pois tudo já estava organizá-lo para culpa-lo.

Foi condenado e esquartejado em praça pública. E, o bardo, provavelmente, presenciou toda a referida cena macabra. E, então criou Shylock que é o personagem complexo e não maniqueísta e sofre tanto a dor da rejeição da filha, Jéssica como também de toda a sociedade.

Neste enredo, William Shakespeare constrói imagem estereotipada e preconceituosa acerca do judeu e suas crenças, o que valeu a pecha de “antissemita”, mas que revela as visões históricas sobre o pensamento inglês da época. Harold Bloom (2000) afirmou que: “Somente um cego, surdo e mudo não constataria que a grandiosa e ambígua comédia que é “O Mercador de Veneza” é obra profundamente antissemita.

No mundo medieval britânico, o judeu tinha papel relevante, sendo a única figura a prestar-se a função de prestamista. Afinal, a Igreja aceitava a proibição bíblica acerca da usura, vedando-a entre seus fiéis e atribuindo à prática a condição de pecado[26].

Afinal, sempre havia a necessidade de socorrer os cofres públicos e privados, todos se valiam dos judeus prestamistas, pois estes não eram sujeitos às leis da Igreja e raramente o eram às do Estado. Paradiso e Barzotto (2008) concluíram que a peça teatral é de cunho antissemita, mas não poderiam provar que o autor usou e abusou de adjetivos depreciativos, não devendo ser perseguido nem humilhado por sua arte literária.

A peça encerra[27] um sincero convite à reflexão para que os direitos mínimos sejam respeitados para proteger a dignidade da pessoa humana, mesmo na seara do Direito Privado, particularmente, nos contratos.

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[1] Etimologicamente, a usura provém de duas palavras latinas, usus e rei, com sentido de cobrança pelo uso das coisas. Num conceito mais moderno, a usura resume pela cobrança de remuneração abusiva pelo uso do capital, na cobrança de empréstimo pecuniário. É prática socialmente repudiada, sendo considerada uma conduta criminosa em diversos ordenamentos jurídicos, inclusive no Brasil, vide o Decreto 22.626. Importante diferenciar a usura real da usura pecuniária.  Porque o artigo 4 da Lei 1.521/51 que prevê crimes contra a economia popular insere a prática das usuras pecuniária e real no rol de delitos contra a economia popular. Usura pecuniária “é aquela em que ocorre cobrança de juros excessiva, que ultrapassa os limites legais; já a usura real é aquela em que ocorre estipulação contratual de vantagem desproporcional, que ultrapasse um quinto do valor da prestação feita ou prometida, abusando de necessidade, inexperiência ou leviandade da outra parte.” Portanto que a usura pecuniária é o empréstimo de pecúnia (dinheiro) com fixação de taxa de juros superior àquela estipulada em lei, o que resulta em lucro excessivo por parte do credor e prejuízo por parte do devedor. Considera-se também a cobrança excessiva de ágio, ou seja, superior à taxa oficial de câmbio sobre quantia permutada em moeda estrangeira.  Ainda, o empréstimo sob penhor que seja privativo de instituição oficial de crédito também pode ser considerado como usura pecuniária, bem como o anatocismo, que é a cobrança de juros sobre juros, acrescidos ao saldo devedor, em razão de não terem sido quitados os mesmos quando do vencimento da dívida. A usura real seria, portanto, a obtenção de lucro mediante contrato patrimonial que exceda o quinto do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida, abusando o credor da premente necessidade, inexperiência ou leviandade da outra parte. Como visto, tais condutas são criminalizadas pelo ordenamento jurídico brasileiro.

[2] Há debate sobre se a lei de usura recepcionada como lei pela CFRB/88 sequer poderia ter sido extinta pela via do decreto executivo em 1º lugar, mas o resultado é o mesmo. A LEI DE USURA NÃO FOI REVOGADA. Outrossim, não se pode concordar com a argumentação no sentido de que a Lei de Usura teria sido revogada pela Lei 4594/64, tampouco com afirmação de que o aludido diploma estaria a disciplinar o sistema financeiro em atendimento à parte final do caput do art. 192, da Constituição de 1988. Não bastasse o disposto no art. 11 do Decreto nº 22.626/33, suficiente para a nulidade de pleno direito da cláusula que estipula os juros acima do permissivo legal, incidem os artigos 6º, V, 39, V e XI, e 51, IV e 1º, do CDC, geradores de idêntica consequência.

[3] No mútuo feneratício, presumem-se devidos os juros, ainda que não estipulados no contrato, os quais não poderão exceder a taxa a que se refere o artigo 406 do C.C. Se as partes não tiverem estipulado expressamente o prazo do mútuo este será de 30 dias se for o empréstimo de dinheiro. A Fazenda Nacional adota a Taxa SELIC, que é variável e disponibilizada pelo Banco Central, faz controle de inflação e deflação e decorre de política macroeconômica. O limite previsto no artigo 406 do CC não se aplica as instituições financeiras, porque a jurisprudência entende que se aplica a Lei 4.595/64 que é norma especial.

[4] Em Belmonte, Pórcia está sendo visitada por diversos pretendentes a casamento. Por um ardil do pai, para se casar com Pórcia, os pretendentes devem escolher entre um dos três cofres: o de ouro, o de prata ou o de chumbo, cada qual com uma inscrição. Aquele que escolhesse corretamente seria o vencedor.

[5] O contrato de mútuo está disciplinado no art. 586 do Código Civil e consiste no empréstimo de coisa fungível e consumível ao mutuário, que por sua vez deverá restituir à mutuante coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade. Por meio do contrato de mútuo se transfere o domínio da coisa emprestada ao mutuário, o qual fica responsável por todos os riscos desde a tradição.

Quando o empréstimo de dinheiro é feito por uma instituição financeira, certamente, será na modalidade de mútuo oneroso, o qual implica na cobrança de juros (remuneração devida pela utilização de capital alheio) e também na exigência de garantia (real ou fidejussória) da devolução desse dinheiro, o que por sua vez ocorrerá nos termos do art. 590 do CC: “O mutuante pode exigir garantia da restituição, se antes do vencimento o mutuário sofrer notória mudança em sua situação econômica”.

[6] A nulidade prevista no CDC em seu art. 51 é uma consequência jurídica que ocorre em decorrência de uma cláusula iníqua constatada em um contrato de consumo que leva o consumidor a uma forte desvantagem frente ao fornecedor. A nulidade nada mais é que uma sanção aplicada quando verificada uma cláusula abusiva. O artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor – CDC é claro e prevê que as cláusulas contratuais referentes a fornecimento de produtos ou serviços que sejam abusivas ao consumidor são nulas de pleno direito. As cláusulas abusivas são determinações contratuais que dão vantagens exageradas aos fornecedores em desrespeito às proteções e garantias previstas no CDC. Por exemplo, cláusulas que ofendam princípios fundamentais das relações de consumo, como a proteção do consumidor diante de sua vulnerabilidade; restrinjam direitos ou obrigações ou impliquem em ônus excessivo ao consumidor. O artigo 51 do CDC traz em seu texto a descrição de abusos que podem ser cometidos nos contratos que envolvam relações de consumo, entre eles estão cláusulas que: – Excluam ou diminuam a responsabilidade dos fornecedores; – extingam algum tipo de direito do consumidor; – transfiram a responsabilidade a terceiros; – coloquem o consumidor em desvantagem exagerada; – invertam o ônus da prova, ou seja, passem para o consumidor o dever de provar suas alegações em eventual processo judicial, ferindo a proteção dada no artigo 6o do CDC, que prevê a facilitação da defesa de seus direitos.   – Permitam ao fornecedor alterar o preço, cláusulas ou cancelar o contrato sem anuência do consumidor.

[7] O princípio do Venire Contra Factum Proprium veda o comportamento contraditório, inesperado, que causa surpresa na outra parte. Embora não tenha previsão expressa no CDC, sua aplicação decorre da boa-fé objetiva e da lealdade contratual, exigíveis de todos os contratantes. Existem, portanto quatro elementos para a caracterização do venire: comportamento, geração de expectativa, investimento na expectativa gerada e comportamento contraditório. Nos dizeres de Anderson Schreiber, a tutela da confiança atribui ao venire um conteúdo substancial, no sentido de que deixa de se tratar de uma proibição à incoerência por si só, para se tornar um princípio de proibição à ruptura da confiança, por meio da incoerência. Em suma, segundo o autor fluminense, o fundamento da vedação do comportamento contraditório é, justamente, a tutela da confiança, que mantém relação íntima com a boa-fé objetiva.

 

 

[8] Um dos principais efeitos decorrentes do contrato de fiança é o benefício de ordem ou benefício de excussão. Este benefício configura a possibilidade de o fiador, quando demandado, indicar os bens livres e desembaraçados do devedor. No entanto, só poderá requerer tal benefício quanto aos bens existentes antes da contestação e desde que estes sejam suficientes para saldar a dívida. A finalidade de tal benefício é permitir que o fiador evite que seus bens sofram a excussão, posto que sua obrigação é acessória e subsidiária. Em outras palavras, o benefício de ordem configura-se no direito de requerer que primeiramente sejam alcançados os bens do devedor para, posteriormente, alcançar os do fiador. O artigo 828, do Código Civil, por sua vez, estabelece que “não aproveita este benefício ao fiador: I – se ele o renunciou expressamente; II – se se obrigou como principal pagador, ou devedor solidário; III – se o devedor for insolvente, ou falido”.

[9] A libra de carne (the pound of flesh) pode significar a desumanidade do mercador (Shylock), sua natureza predatória, seu desejo de vingança; ou mesmo sua confiança na referência da literalidade da lei, o que mais tarde se voltará contra ele. A tática virou-se contra o tático.

[10] Durante mais de mil anos a cidade de Veneza e mais tarde a Sereníssima República de Veneza era denominado Doge, um título raro, mas não único na Itália, proveniente do termo latino dux. Os Doges de Veneza eram eleitos até ao fim da vida pela aristocracia da cidade-estado e eram normalmente escolhidos entre os mais velhos nobres da cidade. Do século IX ao século XII, os doges juntaram ao título os de dux Croatorum (“chefe dos Croatas”), dux Dalmatinorum (chefes dos Dálmatas), totius Istriæ dominator (” soberano de toda a Ístria”), dominator Marchiæ (“soberano das Marcas”), traduzindo assim o domínio veneziano no mar Adriático. Em 1095, o epitáfio do doge Vitale Faliero de’ Doni proclamava-o mesmo rex et corrector legum (“rei e promulgador das leis”). Enrico Dandolo, no fim do século XII, intitulava-se dominator quarte et dimidie partis totius Imperii Romanie (“soberano de um quarto e meio de todo o Império Romano”). O título prolongou-se até 1356 e foi abandonado por Giovanni Delfino.

[11] Christopher Marlowe inspirado nas peças teatrais de vingança, na época elizabetana, cria em “O judeu de Malta” escrita entre 1589 e 1590, o personagem Barrabás, um judeu de caráter vingativo e cruel. Paradiso (2008) referindo-se ao personagem criador, afirma que Marlowe gerou uma criatura grotesca, um ser demoníaco e perverso, que, ao mesmo tempo dedica a sua vida à acumulação material do ouro, ao roubo, a prática de fornicação, etc. Em “O Mercador de Veneza” inspirado na peça de Marlowe, o bardo usa principalmente o discurso entre os personagens para julgar, condenar os valores da cultura judaica e impor regras inglesas e religiosas para o judeu, um desenfreado abuso de poder. Ele constrói

estereótipos negativos sobre o povo judeu quando narra as ações de um agiota por nome Shylock.

[12] Antes de escolher a arca de chumbo (desprezando o ouro e a prata que contém em seus bojos uma pilhéria e uma réplica de um bobo) Bassânio justifica sua escolha: “Bastantes vezes a aparência externa carece de valor. Sempre enganado tem sido o mundo pelos ornamentos. Em direito, que causa tão corrupta e estragada, não fica apresentável por uma voz graciosa, que a aparência malévola disfarça? Praia traiçoeira é o ornato, por tudo isso, de um mar mui perigoso, linda charpa que esconde o rosto de uma bela indiana; em resumo: aparência da verdade, de que se vale o tempo experto, para colher até os mais sábios. Assim sendo, brilhante ouro, de Midas duro cibo, nada quero de ti, como não quero também de ti, intermediário pálido e vulgar entre os homens. Minha escolha recai em ti, em ti, modesto chumbo, que mais ameaças do que prêmio inculcas. Tua lhaneza é a máxima eloquência. Seja, pois, alegria a consequência.”

[13] Pórcia é a heroína. Rica, é titular de uma grande herança. Bonita, despertou a paixão de muitos homens. Além de Bassânio, tentaram o casamento com Pórcia os príncipes do Marrocos e de Aragão. Este último, um arrogante nobre espanhol. Pórcia é inteligente, domina a retórica e a boa argumentação. No fecho da peça, e travestida de homem, destruirá os argumentos de Shylock. Pórcia é a musa do positivismo de combate e do antifetichismo jurídico. Mostrou-se uma tremenda advogada. Nerissa é sua dama de companhia, sempre solícita, apaixonada por Bassânio.

[14] Art. 54 – A nota promissória é uma promessa de pagamento e deve conter estes requisitos essenciais, lançados, por extenso, no contexto: I – a denominação de “nota promissória” ou termo correspondente, na língua em que for emitida; II – a soma de dinheiro a pagar; III – o nome da pessoa a quem deve ser paga; IV – a assinatura do próprio punho do emitente ou do mandatário especial. Vale apena destacar algumas divergências em relação a doutrina e a pratica, quando se analisa a indicação da data e do lugar onde a nota promissória é emitida que em certas ocasiões se mostram essenciais e em outras se mostram secundarias. Portanto tais requisitos podem acarretar a nulidade da execução assumindo, portanto, as custas processuais e honorários advocatícios e outras cominações legais, portanto isso sempre pesa para o lado do credor que investe em uma execução possuindo uma nota promissória desvestidas dos requisitos presentes na nota promissória.

[15] Um dos mais famosos casos julgados na França e que estabeleceu as bases para a teoria do abuso de direito, trata-se do caso Clement Bayard, no qual o vizinho de um construtor de dirigíveis que, para força-lo a adquirir seu terreno, nele ergueu grandes pilastras de madeira armadas com agudas pontas de ferro com o intuito de dificultar a aterrissagem de aeronaves. (RODRIGUES, 2003, p. 45)

 

[16] É um ramo da matemática aplicada que estuda situações estratégicas onde jogadores escolhem diferentes ações na tentativa de melhorar seu retorno. Inicialmente desenvolvida como ferramenta para compreender comportamento econômico e depois usada pela Corporação RAND para definir estratégias nucleares, a teoria dos jogos é hoje usada em diversos campos acadêmicos. A partir de 1970 a teoria dos jogos passou a ser aplicada ao estudo do comportamento animal, incluindo evolução das espécies por seleção natural. Devido a interesse em jogos como o dilema do prisioneiro iterado, no qual é mostrada a impotência de dois jogadores racionais escolherem algo que beneficie a ambos sem combinado prévio, a teoria dos jogos vem sendo aplicada nas ciências políticas, ciências militares, ética, economia, filosofia e, recentemente, no jornalismo, área que apresenta inúmeros e diversos jogos, tanto competitivos como cooperativos. Finalmente, a teoria dos jogos despertou a atenção da ciência da computação que a vem utilizando em avanços na inteligência artificial e cibernética. A teoria dos jogos tornou-se um ramo proeminente da matemática nos anos 30 do século XX, especialmente depois da publicação em 1944 de The Theory of Games and Economic Behavior de John von Neumann e Oskar Morgenstern. A teoria dos jogos distingue-se na economia na medida em que procura encontrar estratégias racionais em situações em que o resultado depende não só da estratégia própria de um agente e das condições de mercado, mas também das estratégias escolhidas por outros agentes que possivelmente têm estratégias diferentes, mas objetivos comuns. Os resultados da teoria dos jogos tanto podem ser aplicados a simples jogos de entretenimento como a aspectos significativos da vida em sociedade. Um exemplo deste último tipo de aplicações é o Dilema do prisioneiro (esse jogo teve sua primeira análise no ano de 1953) popularizado pelo matemático Albert W. Tucker, e que tem muitas implicações no estudo da cooperação entre indivíduos. Os biólogos utilizam a teoria dos jogos para compreender e prever o desfecho da evolução de certas espécies. Esta aplicação da teoria dos jogos à teoria da evolução produziu conceitos tão importantes como o conceito de Estratégia Evolucionariamente Estável, introduzida pelo biólogo John Maynard Smith no seu ensaio Game Theory and the Evolution of Fighting.

 

[17] A Teoria da Decisão procura responder a essa dupla necessidade de racionalizar os processos de tomada de decisão – explicando a forma pela qual se tomam decisões – e de fundamentar as escolhas realizadas. Entretanto, aquele que decide racionalmente não sente somente a dificuldade de justificar as suas escolhas. A teoria explica a forma que foi tomada a decisão e o fundamento das escolhas, conjunto de teorias que se ocupam no campo das decisões. Organiza a quantidade de métodos e de resolução de problemas. Existem vários modelos de exemplo de decisão judicial que servem como exemplo bom, será que se tem a faculdade de interferir qual é o melhor modelo para a decisão de um magistrado, a liberdade do juiz pode trazer o melhor modelo. A decisão judicial é um objeto complexo, o que significa dizer que são vários os componentes a serem verificados do direito.

[18] Outra questão terminológica a ser resolvida refere-se ao uso do conceito de proibição de excesso, visto que muitos autores tratam a regra da proporcionalidade como sinônimo de proibição de excesso. Ainda que, inicialmente, ambos os conceitos estivessem imprescindivelmente ligados, principalmente na construção jurisprudencial do Tribunal Constitucional alemão, há razões para que essa identificação seja abandonada. Conquanto a regra da proporcionalidade ainda seja predominantemente entendida como instrumento de controle contra excesso dos poderes estatais, cada vez mais vem ganhando importância a discussão sobre a sua utilização para finalidade oposta, isto é, como instrumento contra a omissão ou contra a ação insuficiente dos poderes estatais.

[19] Salienta Willis Santiago Guerra Filho, na Inglaterra cogita-se em princípio da irrazoabilidade e não em princípio da razoabilidade. E a origem concreta do princípio da irrazoabilidade, na forma como aplicada na Inglaterra, não se encontra no longínquo ano de 1215, nem em nenhum outro documento legislativo posterior, mas em decisão judicial proferida em 1948.23 E esse teste da irrazoabilidade, conhecido também como teste Wednesbury, implica tão somente rejeitar atos que sejam excepcionalmente irrazoáveis. Na fórmula clássica da decisão Wednesbury: “se uma decisão […] é de tal forma irrazoável, que nenhuma autoridade razoável a tomaria, então pode a corte intervir”. Percebe-se, portanto, que o teste sobre a irrazoabilidade é muito menos intenso do que os testes que a regra da proporcionalidade exige, destinando-se meramente a afastar atos absurdamente irrazoáveis.

[20] Cumpre apontar a Súmula 308 e 302 do STJ que prevê que é abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do segurado. A mencionada súmula apresenta a aplicação do princípio da função social dos contratos, relativizando a força obrigatória dos contratos, como efeito inter partes. O mesmo acontece a renegociação de contrato bancário ou a confissão da dívida não impede a possibilidade de discussão sobre as eventuais ilegalidades dos contratos anteriores. A finalidade da súmula é impedir que haja enriquecimento sem causa, o locupletamento sem razão, a lesão subjetiva e a desproporção negocial.

[21] Essa tragicomédia foi escrita entre 1596 e 1598 e tem como temas a amizade, a ganância e a vingança, também trata sobre preconceito e hipocrisia. A peça serviu de inspiração para o autor brasileiro Ariano Suassuna, na obra “O Auto da Compadecida”. Em Ariano, no seu Auto, a personagem Chicó – graças às “maravilhosas ideias” de João Grilo- fica obrigado ante o Cel. – que é pai da donzela Rosinha – a lhe permitir a retirada de “uma tira de carne”, caso não tenha como pagar um empréstimo que lhe tomou. Tudo materializado num contrato celebrado entre ambos e tudo com vistas a que Chicó – que “não tem onde cair morto” … – se case com Rosinha. Ora, com o Cel. ocorre o mesmo que com Shylock: ao exigir, de Chicó, o dinheiro e ante a negativa/impossibilidade deste, exige-lhe a satisfação do contrato, ao que se vê diante da argumentação de que o contrato fala apenas em carne, não em sangue… O Cel. deserda a filha Rosinha, que, então, se casa com Chicó. As ideias são as mesmas e propositais. Claro que um escritor da envergadura de Suassuna serviu-se do antigo inglês, conscientemente

[22] Sua posição como um judeu é muito valorizada na peça e na Grã-Bretanha de Shakespeare alguns podem argumentar que isso o posicionaria como um vilão, no entanto, os personagens cristãos na peça também estão abertos à crítica e, como tal, Shakespeare não é necessariamente julgando-o por sua crença religiosa, mas demonstrando intolerância em ambas as religiões.  Shylock está cumprindo seu compromisso com sua palavra. Ele é fiel ao seu próprio código de conduta. Antonio assinou a fiança e prometeu esse dinheiro, Shylock foi prejudicado; ele teve seu dinheiro roubado por sua filha e Lorenzo. No entanto, Shylock é oferecido três vezes seu dinheiro de volta e ele ainda exige sua libra de carne; isso o move para o reino da vilania. Depende de seu retrato, de quanto o público simpatiza com sua posição e personagem, e de quanto ele é julgado no final da peça.

[23] Apesar do estabelecido na ideia do princípio da autonomia da vontade e definido pela CFRB/88 (art. 5º, II) são necessárias restrições impostas ao mesmo, por não ser absoluto, pois: a) não se pode contratar o que for contrário à lei, à ordem pública e aos bons costumes; b) em determinadas situações – monopólios estatais, por exemplo – não se pode escolher o outro contratante; e c) nos contratos de adesão não é possível exigir alterações específicas. Parte-se da premissa que o tal princípio nasce de ideais iluministas liberais, onde reside uma redução (ou quase inexistência) de intervenção, e do equilíbrio entre os sujeitos envolvidos no ato jurídico e na negociação entre as partes. Este, em conjunto com o princípio da força obrigatória, foi a base indispensável para a segurança dos contratos e, a partir deles, da enorme geração de riqueza ocorrida a partir do século XIX.

[24] Cumpre salientar que no Brasil a autonomia da vontade estava no código Civil de 1916 e em todas as Constituições anteriores à Carta Magna de 1988, enquanto que a autonomia privada está presente no Código Civil de 2002 e na Constituição de 1988. Autonomia da vontade e autonomia privada são lados opostos da mesma moeda, tendo em vista que a primeira é a vontade humana elevada à condição de base do liberalismo e a segunda representa a vontade humana adapta às necessidades e expectativas da sociedade em geral.

[25] Foi filho de um médico real português de parte judia e, foi criado como católico e educado na Universidade de Coimbra. Durante a Inquisição Portuguesa, fora acusado de praticar secretamente o judaísmo, e obrigado a deixar o país. Estabeleceu-se em Londres, em 1559, filiou-se à Igreja da Inglaterra, e tornou-se médico domiciliar no Hospital St. Bartholomew. Ganhou boa reputação de médico, sendo considerado habilidoso, e conquistou muitos clientes poderosos, incluindo o Conde de Leicester e Sir Francis Waksinghham e, eventualmente, a própria Rainha Elizabeth I. O Conde de Essex acusou Lopes de conspirar para envenenar a Rainha em janeiro de 1594. Insistindo em sua inocência, o médico foi condenado por alta traição em fevereiro e, foi condenado e esquartejado em junho, após afirmar do cadafalso que amava a Rainha assim como amava a Jesus Cristo. Declaração que provocou a zombaria na multidão. O atraso de três meses, da Rainha em assinar a sentença de morte de Lopes foi interpretado como prova que duvidava sobre a acusação contra ele. Tanto que devolveu quase todos os seus bens à viúva e aos filhos.

[26] De acordo com o socialista francês Jacques Attali (2003) a base ideológica sobre o dinheiro no judaísmo é totalmente oposta ao ideal cristão. No judaísmo ser abençoado é ser rico, ao contrário do cristianismo. Assim, a questão principal, na visão do bardo, não é religiosa, mas sim, monetária.  Nas palavras de Attali (2003, p. 242): Paralelamente aprofundam-se as diferenças entre as duas doutrinas econômicas. Quer no Judaísmo como no Cristianismo acredita-se nas virtudes da caridade, da justiça e das ofertas. Mas para os Judeus, é desejável ser rico, enquanto que para os Cristãos é recomendado ser-se pobre. Para uns, (os Judeus) a riqueza é um meio para melhor servir Deus; para os outros, (os Cristãos) ele impossibilita a salvação. Para uns, o dinheiro pode ser um instrumento do bem; para os outros os seus efeitos são sempre desastrosos. Para uns, qualquer pessoa pode gozar do dinheiro bem ganho; para os outros ele queima-lhe os dedos. Para uns, morrer rico é uma bênção, desde que o dinheiro tenha sido adquirido moralmente e que se tenha cumprido com todos os deveres para com os pobres da comunidade; para os outros, morrer pobre é uma condição necessária da salvação

[27] O mais assombroso da peça é o final de Shylock. Após todo o engodo do falso julgamento (não houve justiça para com o judeu e seu contrato), a corte veneziana concorda em puni-lo com a forca; mas, como “boa ação”, a morte seria revogada caso o judeu aceitasse “doar” seus bens ao Estado e ao genro cristão e converter-se ao cristianismo. Isto prova definitivamente que o maior pecado de Shylock, não foi a usura, o contrato com Antônio, sua “perversidade” ou frieza. O ato IV mostra que o maior erro de Shylock, para Shakespeare, fora o fato de ter nascido judeu.