Resumo: O direito do consumidor tem contribuição relevante para a sociedade contemporânea, tornando possível esta ser mais igualitária, justa e democrática. E, também contribui positivamente para a formação do consumo consciente e sustentável.

Palavras-Chave: Direito do Consumidor. Dignidade da Pessoa Humana. Capitalismo contemporâneo. Consumo.

 

Autores: Antonio Gama Junior.

Gisele Leite

 

 

 

Introdução

 

Ao final da Guerra Fria[1] e com a predominância do sistema capitalista no mundo, sobreveio grande desenvolvimento tecnológico, o que possibilitou grande e amplo progresso industrial, além da transformação na forma de produção e na distribuição de produtos e, obviamente, da própria vida em sociedade.

Isso se deve porque no sistema capitalista, a capacidade de produção se tornou ilimitada, com o objetivo de induzir o consumo e obter lucros crescentes, soterrando as antigas formas de produção social. Para atingir tal fim, o capitalismo se utiliza de meios ideológicos, tecnológicos e sociais capazes de intensificar o consumo, aumentar os rendimentos, monopolizar os meios de produção e, enfim, acumular o capital nas mãos de poucos.

A sociedade contemporânea alcunhada de “sociedade de consumo” atende aos apelos e à ideologia capitalista e, consome excessivamente, muitas vezes, sem haver uma real necessidade. Nessa sociedade, o consumismo é induzido pela grande oferta de produtos e pela publicidade que cria a necessidade de adquirir novos objetos e satisfazer desejos, fortalecendo assim identidades individuais e laços sociais por meio de aquisição de bens e serviços.

Ainda nessa sociedade, a ideologia capitalista atribui sentido aos objetos e os usos que são atribuídos a eles, representam os símbolos de uma necessidade de pertencimento a um grupo. De sorte que, a ideologia capitalista legitima o consumismo, favorece e permite essas realizações e, ainda, aposta no consumo como elemento de progresso. Portanto, o consumo é padronizado e molda as relações sociais e jurídicas entre as pessoas.

Dentro dessa lógica, o incremento do consumo desenvolve a economia e a sociedade, gerando lucro ao comércio e às grandes empresas, aumentando o número de empregos e de renda do trabalhador.

Em contrapartida, esse consumo excessivo resulta em acúmulo de resíduos na natureza e, maior exploração de recursos naturais, inclusive em países pobres, causando séria degradação dos ecossistemas e das economias locais, para obter cada vez mais matéria-prima.

Nessa perspectiva, se propõe uma reflexão sobre os limites e as possibilidades de se estabelecer, por meio da informação e da educação para o consumo, uma consciência ética voltada ao consumo sustentável na sociedade contemporânea.

Sabemos que a ideologia se refere à produção de sentidos explicativos, de significados derivados de uma determinada visão de mundo que, no limite, acaba se comportando como um critério de aprovação ou reprovação de condutas humanas, como um critério de definição das redes de afinidades estabelecidas entre os parceiros e adversários em disputas políticas que envolvem o cotidiano e o destino da coletividade.

Assevera Marilena Chauí[2] que a origem do capitalismo só pode ser uma: ” O processo de separação entre o trabalhador e a propriedade das condições de seu trabalho, processo que, por um lado, converte em capital os meios sociais de vida e de produção, enquanto, por outro lado, converte os produtores diretos em assalariados. Portanto, o assalariado é o que se convencionou a chamar de “homem livre moderno“.

Enfim, o homem moderno se apresenta de duas formas diferentes como burguês, proprietário privado das condições do trabalho, e como trabalhador, desprovido dessas condições, liberado da servidão, mas também despojado dos meios de trabalhar.

O capital acumula e se reproduz por meio da exploração do trabalho, o lado livre e espiritual do trabalho é do burguês, que determina soberano os fins enquanto que o lado mecânico e corpóreo do trabalho pertence ao trabalhador, que representa mero meio para fins que lhe são estranhos. Conclui-se, que temos de um lado, a liberdade e, de outro lado, a necessidade.

A ideologia capitalista se mantém em razão da acumulação de grandes quantidades de recursos financeiros nas mãos de poucos e a existência de pessoas livres, mas que não possuem os meios de produção e de subsistência e necessitam vender a sua força laboral para poder viver.

Em relação ao monopólio dos meios de produção e a exploração do homem pelo homem, importante ainda ressaltar a lição de Marilena Chauí:

Quando Marx afirma que as relações sociais capitalistas  aparecem tais como são, que o aparecer e o ser da sociedade  capitalista se identificaram, ele o diz porque houve uma  gigantesca inversão na qual o social vira coisa e a coisa  vira social, tudo isto é a realidade capitalista”.

Perguntas nos açodam agora:

Por que os homens conservam essa realidade?

Como se explica que não percebam a retificação?

Como entender que o trabalhador não se revolte contra uma situação na qual não só lhe foi roubada a condição humana, mas ainda, é explorado naquilo que faz, pois seu trabalho não pago é o que mantém a existência do capital e do capitalista?

Como explicar que essa realidade nos apareça como natural, normal, racional e aceitável?

De onde vem o obscurecimento da existência das contradições e dos antagonismos sociais?

De onde vem a não percepção da existência das classes sociais, uma das quais vive da exploração e dominação das outras? A resposta a essas questões nos conduz diretamente ao fenômeno da ideologia”.

Conclui-se que a ideologia capitalista[3] mantém os trabalhadores presos, sem resistência ao que lhes é ofertado. Esses trabalhadores, dominados, levam a sério o que os burgueses, dominadores, propõem e insistem na ideologia que tanto os escraviza.

Nesse sentido, a ideologia teria a função geral de integração e coesão social, legitimando, entre outras coisas, as ideias hegemônicas das classes dominantes de cada época.

Significa afirmar que a classe que possui a força material, os meios de produção e, ao mesmo tempo, a força “espiritual” dominante, isto é, a fonte de produção ideológica simbólica dita as regras e os comportamentos sociais.

Afinal, a função da ideologia hegemônica[4] é a de ocultamento da realidade, por meio da inversão da consciência, causando alienação e, sendo capaz de neutralizar os movimentos subversivos, de ideologia contra-hegemônica, tão ameaçadores do status quo da ideologia dominante.

Assim, aproveitando-se da alienação, a ideologia hegemônica promove a apropriação da ideologia contra a hegemonia e, incorpora elementos menos ameaçadores, por meio da desarticulação e rearticulação, mas abdica dos elementos contestatórios altamente ameaçadores passíveis de comprometer o núcleo ideológico dominante.

Eis que no embate entre a ideologia hegemônica e a contra-hegemônica, na busca de fundamentar uma visão de mundo que justifique de forma coerente a situação social, cada qual procura apresentar a melhor versão da verdade, já que a preocupação é a persuadir a fim de conquistar a adesão.

E, nesse sentido, a lógica capitalista de desenvolvimento transformou os processos de produção, a utilização de máquinas e novas matérias-primas, houve crescente desenvolvimento motivado por uma ideologia de progresso, mas sem observar, as consequências para o meio ambiente.

A indústria passou a extrair mais bens da natureza e, ainda, incrementar com tecnologia, produzindo os novos produtos em larga escala para atender o gradativo aumento da população.

E, o resultado de tudo, vai além da exploração de recursos e do acúmulo e descarte de resíduos, mas inclui também as próprias reações químicas e a liberação de rejeitos industriais na natureza, necessários à transformação da matéria-prima em produto final.

A ideologia capitalista está sempre se reinventando, buscando novos significados e justificativas para se manter e, tem no consumismo um grande aliado. Isso porque o consumismo mantém a força material de quem detém os meios de produção, isto é, a classe dominante. E, tal classe social é a fonte de produção ideológica simbólica que, por meio da ideologia do consumismo, difundida pela cultura de massas, concretizando os lucros capitalistas.

Jean Baudrillard e Zygmunt Bauman asseveram com razão que a sociedade pós-moderna é mesmo uma sociedade de consumo, onde tudo se torna transitório e, por conseguinte, descartável. Ressaltou, ainda, Baudrillard que a sociedade de consumo surge quando o elemento cultural e ideológico passa a conduzir cada vez mais o processo de consumo.

E, nesse caso, as necessidades se voltam mais aos valores de uso do que aos objetos e a satisfação se efetiva, primeiramente, por meio da adesão a esses valores. Isto é, o valor de uso é, no fundo, um álibi para o valor de troca-signo.

Bauman, por sua vez, afirma que o novo indivíduo consumista assume características líquidas e busca o prazer imediato ao consumir, e o consumo deixa de ser mero elemento de distinção para ser o elemento de inclusão por excelência.

E, o sociólogo polonês se refere para essa nova sociedade não interessa a durabilidade das mercadorias, já que serão logo descartadas, pois é preciso movimentar o mercado de consumo para a produção de outros produtos inovadores. Por isso, não existe lealdade aos objetos adquiridos com a intenção de consumir.

Baudrillard[5] também apresentou sua crítica de que as pessoas, com o passar do tempo, além de consumirem produtos sem real necessidade, passar a desperdiçar mais. Isto é, existem gastos para consumirem mercadorias desnecessárias.

Refere-se, ainda, o pensador que o consumo se transforma na MORAL do mundo contemporâneo, pois se percebe um nítido esvaziamento das relações humanas. E, para preencher tal vácuo se busca prazer, satisfação e conforto, consumindo produtos muitas vezes desnecessários ou cujas necessidades são criadas pelo mercado econômico.

Salientou Bauman[6], que os consumidores recebem grandes quantidades de informativos, de lojas, contendo oferta de mercadorias e serviços e precisam adquirir algum dos produtos ofertados se quiserem manter a posição social e proteger a autoestima.

Importa, destacar que o consumo é diferente do consumismo. No consumo as pessoas adquirem somente aquilo que lhes é necessário. Já, o consumismo se baliza pelos gastos excessivos em mercadorias desnecessárias e supérfluas, induzidos pela farta publicidade. Mas, também pelo apego aos bens materiais, que começou a se desenvolver nas décadas anteriores e se fortaleceu na sociedade contemporânea, tendo seu ápice na sociedade atual.

O consumo descomedido é determinado pelo intenso desejo de reconhecimento social, pela necessidade de fazer parte, a qualquer custo, de um determinado grupo e pelo forte apego a bens materiais.

Essas são as características marcantes da sociedade contemporânea, em que o sucesso pessoal é medido pelo grande consumo de bens materiais, acirrado por uma competitividade sem limites: se gasta o que não se tem para parecer o que não é.

É imperioso referir que esse consumo exagerado está levando o planeta ao uma crise, em função da degradação de recursos naturais. E, assim, se todos tivessem os mesmos níveis de consumo do cidadão norte-americano, o planeta não suportaria e, seria necessários quatro planetas Terra.

Mas, todavia, temos apenas um planeta e, o os norte-americanos consomem além da média e precisariam diminuir a sua pegada, possibilitando ao que consomem menos usufruir o direito ao acesso aos bens de consumo.

Não é concebível que as sociedades continuem a incidir no desperdício, degradando sistematicamente a biosfera, aumentando a poluição e, esgotando os recursos ambientais que são sabidamente limitados. Faz-se necessário conceber uma nova maneira de produzir, consumir e viver.

Desenvolvimento

Acrescenta Juarez Freitas que sustentabilidade é princípio e é valor constitucional, de caráter vinculante, que tem o condão de modificar profundamente o nosso modo de ver e praticar direitos e deveres.

Revela que o modelo da insaciabilidade e do crescimento econômico ilimitado tem de ceder à economia verde e à sensata visão em longo prazo. Nesse sentido, é um “dever ético e jurídico-político de viabilizar o bem-estar no presente, sem prejuízo do bem-estar no futuro, próprio e de terceiros”.

Percebe-se que o desenvolvimento sustentável não é uma contradição em termos, tampouco se confunde com o delírio do crescimento econômico como fim em si. Conforme o referido autor, se assimilada de forma correta, a sustentabilidade traduz-se em assegurar, hoje, o bem-estar material e imaterial, sem inviabilizar no futuro o bem-estar próprio e o alheio.

Ou seja, refere-se à utilização responsável e consciente dos recursos naturais, evitando-se ao máximo os desperdícios e as agressões à natureza. A exploração de forma planejada, mantendo e garantindo que as futuras gerações também possam desfrutar da qualidade desses recursos.

Sendo assim, Freitas propõe que “a sustentabilidade somente poderá ser compreendida como um processo contínuo, aberto e integrativo de, pelo menos, cinco dimensões do desenvolvimento”.

Quais sejam: 1) dimensão social; 2) dimensão ética; 3) dimensão ambiental; 4) dimensão econômica; e 5) dimensão jurídico-política.

Na dimensão ambiental da sustentabilidade: a) não pode haver qualidade de vida em ambiente degradado; b) o hiperconsumismo haverá de ser confrontado nos países mais ricos; c) não pode perdurar a espécie humana, sem o zeloso resguardo da sustentabilidade ambiental, em tempo útil.

Em relação à dimensão econômica da sustentabilidade, Freitas afirma que:

(a) É indispensável lidar adequadamente com custos e benefícios, diretos e indiretos, bem como efetuar o pertinente trade-off entre eficiência e equidade intra e intergeracional;

(b) a economicidade implica o combate ao desperdício lato sensu, bem como o incremento da poupança pública, da taxa de investimentos, da responsabilidade fiscal e do limite regulatório do poder (público e privado), tendo toda e qualquer propriedade de cumprir a função (social, econômica e de equilíbrio ecológico);

(c) a regulação estatal do mercado precisa acontecer de maneira que a eficiência guarde comprovada e mensurável subordinação à eficácia.

Portanto, é preciso repensar o papel do Estado, no sentido de que ele existe para efetivar os direitos relativos à sustentabilidade justa, com prevenção e precaução, para salvar e resgatar, “não para ofender ou prejudicar gerações”.

O Estado existe para proteger direitos, para “promover o desenvolvimento durável, não para cultuar o crescimento (hiperconsumista) pelo crescimento. Existe para a cidadania ativa e altiva, não para a insaciabilidade que só faz enganar os consumidores vulneráveis das políticas públicas”.

Nesse sentido, que o próximo subcapítulo vai abordar os limites e as possibilidades de o direito à informação servir como balizador para o estabelecimento de uma consciência voltada ao consumo consciente, ético e sustentável.

O direito à informação como balizador para estabelecimento de um consumo em face da ideologia consumerista posta pelo capitalismo. Tal abordagem pretende ser voltada à efetivação do direito de escolha do consumidor e à proteção da dignidade da pessoa humana na seara do consumo na sociedade contemporânea.

Importa referir que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) identifica o consumidor como um novo sujeito de direitos especiais: trata-se da realização de um direito fundamental elencado no art. 5º, XXXII, da Constituição Federal brasileira de 1988.

Dessa forma, para a proteção e efetivação de direitos deste sujeito, foi construído, no CDC, um sistema de normas e princípios. Nesse sentido, nos incisos do art. 6º do CDC estão elencados os direitos básicos do consumidor. Merece destaque o direito “à informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem”.

O princípio da transparência é mais do que um simples elemento formal, afeta a essência do negócio, conduz do momento pré-contratual até a conclusão do contrato.

Assim, a informação repassada ou requerida integra o conteúdo do contrato, e, se a informação falhar, representa a falha na qualidade do produto ou serviço oferecido. Ou seja, como reflexo do princípio da transparência, tem-se o dever de informar, amplamente, o consumidor sobre os produtos ou serviços que vai adquirir.

O direito à informação vai além, ele assegura a igualdade material e formal para o consumidor frente ao fornecedor, em face do déficit informacional quanto ao produto e serviço, às características, aos componentes e aos riscos.

Destarte, a informação deve ser clara e adequada à compreensão de todos, considerando os consumidores mais vulneráveis, como os idosos, doentes e crianças.

Entende-se que um consumidor bem informado sobre os produtos disponíveis no mercado pode exercer com consciência o direito de escolha dos produtos que deseja consumir. Entretanto, mais do que escolher com consciência o que deseja consumir, é importante que o consumo seja sustentável; em outras palavras, o desafio é reduzir os altos níveis de consumo impostos pelo capitalismo,

Percebe-se que a função do Estado e do Direito pode ser uma função educativa e facilitadora, não somente punitiva, mas como uma forma de precaução em relação ao problema.

Portanto, é necessário rever conceitos e encontrar um ponto de equilíbrio entre o desenvolvimento e a preservação dos recursos naturais, integrando as visões econômica, social e ambiental.  Não somente esperar o resultado, mas sim, tentar inverter a lógica por meio da educação e informação voltadas para o estabelecimento de uma consciência ética na seara do consumo.

O Estado possibilita ao consumidor o direito à informação e a escolha do que ele quer consumir, assumindo os possíveis riscos daí advindos. Mas, diante da atual insustentabilidade e insaciabilidade, não basta a garantia do direito à informação e ao direito de escolha.

O Estado que investe em pesquisa científica e em inovação, de onde advêm novas tecnologias que, aplicadas na indústria, vão dar origem a novas mercadorias que serão disponibilizadas no mercado – deve, também, educar para o estabelecimento de uma consciência ética voltada para o consumo sustentável.

Além disso, para funcionar de forma mais justa, o Estado deve pautar todas as suas ações e políticas públicas considerando o termo “sustentabilidade”, de forma ampla, em todas as suas dimensões,

A informação e educação para o estabelecimento de uma consciência ética voltada ao consumo sustentável não precisa, necessariamente, ser dada na escola. Pode-se efetivar essa educação por meio de políticas públicas regulamentadoras, programas específicos, informativos, como exemplo as cartilhas e campanhas publicitárias por meio dos veículos de comunicação, principalmente por intermédio das novas tecnologias e da Internet.

Sabe-se que não é possível prescindir do consumo, já que ele é primordial à existência humana e ao desenvolvimento social e econômico. No entanto, deve se ter consciência dos impactos ambientais de um consumo excessivo, de um consumo desnecessário.

O ser humano precisa, humildemente, levar em consideração a sua própria fragilidade, vulnerabilidade e interdependência do meio ambiente. Assim, deve cuidar, conservar e respeitar considerando que a sua própria sobrevivência depende da preservação da natureza.

O capitalismo contemporâneo é fortemente marcado por crises que reverberam diretamente nas condições de vida, de consumo, de trabalho e atingem a classe trabalhadora. As mudanças nas relações entre capital e trabalho afetam diretamente as políticas sociais, cujos efeitos são devastadores para a proteção social, o que sublinha a precarização, seletividade e o atendimento pontual de diversas demandas as trabalhistas, os referentes ao direito do consumidor.

Ressalto que o Direito do Consumidor é disciplina sobre a qual se produziu muitos arquétipos e, dentre seus críticos não falta quem reclame do seu conteúdo exacerbadamente protetivo, paternalista ou de grave intervenção excessiva no mercado.

O Direito do Consumidor muitas vezes é um derradeiro obstáculo à voracidade do mercado, entre os entusiastas e os detratores lembremos que em geral tais posições extremadas revelam mais a vontade do que técnica, mais desejo do que propriamente realidade.

E, por essa razão é bom recordar sobre antigo brocardo latino virtus im medium est (a virtude está no meio). Este aforismo sublinha um aspecto importante da virtude moral (menos propriamente da virtude intelectual; e não da teologal), a saber: o seu equilíbrio ou “exatidão”.

A ação virtuosa, ou moralmente boa, afirma-se que estar “no meio” relativamente a todo e qualquer extremo ou excesso que, precisamente por o ser, a impediria de ser boa. A virtude leva, portanto, a ação certa (como a boa solução de um problema), à ação que “acerta” (como a flecha “no meio do alvo).

Cumpre registrar que os países mais desenvolvidos do mundo, economicamente, culturalmente e socialmente, são igualmente aqueles que possuem maior nível de efetividade dos direitos do consumidor.

Mas o direito do consumidor não é algo cultural ou espontâneo, senão resultado da construção de uma consciência comum, porém, baseada em legislação que ao longo do tempo definiu e sedimentou os direitos que devem ser respeitados pelos fornecedores.

Portanto, há de se assinalar que só há direito do Consumidor onde existir sociedade de consumo[7].

Igualmente, cabe destacar que o Direito do Consumidor compreende em si, uma projeção da proteção da pessoa humana. Pois, afinal, consumir revela uma necessidade existencial, ninguém vive sem consumir. Portanto, ao resguardar a integridade de cada pessoa significa também a tutela do consumidor.

Cumpre apontar, igualmente, para a dimensão ética da disciplina, afinal, consumir é ato eminentemente econômico, onde consumir significa tomar para si, exaurir as potencialidades e o valor da coisa ou serviço pelo uso.

A referida dimensão econômica que aparece no mercado traduz uma relação de interdependência necessária: pois só há mercado porque existe consumidor…

Defendo que o direito consumidor contribui positivamente para o aperfeiçoamento do mercado. E, são abundantes os exemplos para demonstrar tal contribuição funcional, particularmente, para a sociedade brasileira contemporânea.

Aliás, o Direito do Consumidor incrementou, como nenhuma outra disciplina jurídica, a transparência nas relações de mercado. E, foi a previsão pioneira do princípio da boa-fé[8] no CDC e seu vasto desenvolvimento jurisprudencial[9] que trouxeram consigo o reconhecimento jurídico do dever de informar e esclarecer do fornecedor, a força vinculativa da informação prestada, a repressão ao descumprimento do dever e o controle da veracidade da publicidade, dentre outros aspectos.

Ao afirmar que o consumidor tem o poder da escolha ou como a célebre expressão, o consumidor é o rei do mercado só adquiriu real sentido a partir de mecanismos que assegurem a efetividade do seu esclarecimento, de forma que tenha as informações necessárias para poder fazer escolhas em seu próprio proveito.

Enfim, trata-se de decisiva contribuição que o Direito do Consumidor conferiu ao aperfeiçoamento das relações jurídicas na dinâmica do mercado, primeiro, reconhecendo a vulnerabilidade técnica do consumidor e sua consequente assimetria informativa em relação ao fornecedor e, então, definindo, os deveres específicos em relação às informações que devem ser prestadas e o resultado que devem procurar realizar, em proteção à própria utilidade do contrato. Reconhecendo-se sua nítida função social.

Destaco, ainda, outra influência do Direito do Consumidor sobre o mercado consumidor que se refere à interação com a livre concorrência. Que é protegida justamente para promover a maior eficiência do mercado, em prol do consumidor.

As práticas comerciais abusiva[10]s e lesivas tal como a venda casada ou a recusa da contratação, ou infrações à ordem econômica como a venda abaixo do preço de custo, lesam o consumidor e prejudicam a existência de concorrência saudável entre vários competidores no mercado.

Conclusão

Enfim, friso: em toda violação a direito do consumidor se esconde uma ineficiência do fornecedor, que busca compensá-la com a violação da lei. E, isso repercute também sobre os demais fornecedores, particularmente, os que atuam conforme a lei, quando isso represente um custo que o infrator não tem. (grifo meu)

Bem se percebe pela jurisprudência pátria que se refere ao uso indevido da marca com o propósito de confundir o consumidor. A construção da marca e sua valorização depende de recursos e esforços do agente econômico, em geral, vinculado a um determinado padrão de qualidade que se agrega aos sinais que a caracterizam.

A ofensa à exclusividade de uso da marca, sob as mais variadas estratégias, viola o dever de transparência, e o direito do consumidor à informação, ao buscar confundi-lo em relação à identidade e características do próprio fornecedor, ou de produto ou serviços que oferte.

Importante novamente atentar que o interesse do consumidor e a livre concorrência são fatores para elevação da qualidade de serviços e produtos e, servem de bússola para o reconhecimento de novos serviços, como os presentes na economia digital[11], conforme é o caso de aplicativos de transporte, hospedagem, de entrega de comidas e, etc. …

Lembro também que sempre haverá quem sustente a necessidade de restrição de acesso ao mercado em nome de supostos benefícios ao consumidor. Porém, tais vantagens se comparam aos benefícios reais, tal como o aumento da qualidade produtiva e a redução de preços, a distância entre os argumentos e a realidade já denuncia o grande sofisma.

O conceito de qualidade dos produtos e serviços oferecidos no mercado é uma das premissas principais do Direito do Consumidor. E, por qualidade, entenda-se, tanto a utilidade de produtos e serviços para os fins que legitimamente destes se esperam, quanto que ofereçam apenas riscos normais e previsíveis.

Novamente, nada além daquilo que é o razoavelmente esperado, de forma que, na comparação entre os benefícios e danos, a balança sempre penda, com toda evidência, para os primeiros.

O fomento à qualidade é uma das repercussões mais positivas do Direito do Consumidor sobre o mercado econômico. E, não apenas para impor o dever jurídico correspondente, mas principalmente, por construir um sistema de responsabilidade diante de sua violação.

Uma questão bem atual é a chamada obsolescência programada[12], que é, no fundo, uma estratégia adotada por certos fornecedores, consistente em reduzir o tempo de vida útil de um determinado produto com o fito de estimular nova aquisição de outro produto semelhante.

Obviamente, isso contribui para o uso de novos materiais, que permitiram redução de custos e tornar muitos produtos mais acessíveis aos consumidores. Todavia, isso não se deve às características dos produtos em si, mas de uma estratégia onde vige evidente violação do dever de transparência do fornecedor.

Afinal, o que não pode é gerar certa expectativa sobre a durabilidade do produto e, mais tarde, frustrá-la. E, caso queira vender por um preço menor poque o produto terá menor durabilidade, é simples, basta esclarecer isso aos consumidores. Porém, respeitando o dever de assegurar a possibilidade de conserto dos produtos, conforme o CDC (artigo 33).

Sublinhe-se, ainda, outro efeito cruel da obsolescência programada que ocorre em referência ao meio ambiente, provocando aumento exponencial do descarte de resíduos, tema atualmente enfrentado sob a denominação de “responsabilidade pós-consumo”, e o compartilhamento de deveres entre fornecedores, consumidores e o poder público.

Evidentemente, o Direito do Consumidor então define nova distribuição dos riscos da oferta de produtos e serviços no mercado. E, tal distribuição ou rateio de riscos considera as próprias características da atividade econômica, de forma que, ao definir que o fornecedor deve responder, independe de culpa, por defeitos e vícios[13] de produtos e serviços, não é porque define que deva ele suportar todos os custos.

Ao contrário, é porque só o fornecedor, ao fixar o preço de produtos e serviços, quem pode distribuir o custo desses riscos a todos. É o chamado risco-proveito[14], com sólida justificação lógica. Não é, por outra razão, que só será sustentável economicamente a oferta ao mercado de produtos e serviços com riscos normais e previsíveis.

Enfim, sobre estes há como prevenir ou mitigar os efeitos, bem como incorporar os custos dos danos que decorram de uma economia de escala, e distribuí-los pelo sistema de preços. A eficiência no controle desses riscos e no seu custo promove a eficiência do mercado, maior qualidade de produtos e serviços e ganhos efetivos para consumidores (menor lesividade) e fornecedores (maior lucro).

Nessa equação, reduzir custos em detrimento da segurança dos consumidores, além de razões ético-jurídicas e normativas de proteção à pessoa do consumidor, torna-se também uma decisão ineficiente em termos econômicos.

Conclui-se que não haverá livre mercado eficiente sem o respeito aos direitos do consumidor. É uma exigência civilizatória. E, muitos exemplos há no mundo. No Brasil, contudo, onde há o capitalismo de compadrio, a perseguição de favores ou da leniência do Estado e, ainda, a contradição fundamental existente entre a condenação pública e o proveito, em privado, dos múltiplos vícios e “jeitinhos” que são por vezes desnudados pela crônica política, empresarial e policial e, ainda apontam que existe muito a ser feito.

Diante de violações repetidas e cotidianas dos direitos do consumidor é pungente o número de reclamações e ações judiciais de consumidores lesados correspondendo a causa de problemas do mercado e, de como é tão difícil empreender em nosso país.

Aproveito para citar doutrinadoras estimadas (minhas amigas), a de Gisele Leite e Denise Heuseler que afirmaram, in litteris:

       “Afinal o CDC adotou um sistema aberto de proteção baseado em conceitos legais indeterminados e ainda em construções vagas que possibilitam a melhor adequação aos casos concretos. Realizando a confrontação principiológica entre o CDC e o Código Civil percebemos que muitos de seus conceitos encontram raízes na Lei 8.078/1990.  E devido à aproximação entre o C.C. de 2002 e o CDC, a professora Cláudia Lima Marques, a partir da lição de Erik Jayme propõe o diálogo das fontes onde se dá prevalência a coerência de complementariedade e de subsidiariedade”.

O diálogo das fontes[15], enfim, propicia a adequada compreensão do Direito do Consumidor e sua importância para a sociedade contemporânea ser mais justa, igualitária e democrática.

 

Referências

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DA SILVA, Paulo Fernando. Conceito de ética na contemporaneidade segundo Bauman.  FEU – Fundação Editora Unesp.  São Paulo: Cultura Acadêmica, 2013.

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BAUDRILLAC, J. A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edições 70, 1970.

_____________. Simulacro e Simulação. Lisboa: Relógio d’Água, 1991.

FREITAS, Juarez. Sustentabilidade Direito ao Futuro. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2019.

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[1] Este período de intensa hostilidade começou em 1947 e foi até 1989, e não contou com um conflito armado direto entre as duas potências. Por isso o nome: Guerra Fria, ou seja, o conflito não chegou a “esquentar” e ir para o campo de batalha. Mas isso não significou que não houve combates indiretos.

[2] Marilena de Souza Chauí (Pindorama, 4 de setembro de 1941) é uma escritora e filósofa brasileira, especialista na obra de Baruch Espinoza e professora emérita de Filosofia Política e Estética da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.  Considerada uma das filósofas mais importantes do Brasil e uma das mais influentes intelectuais do país, com vasta e reconhecida obra. Marilena Chauí é autora de vários livros, dentre os quais: “A Ideologia da Competência”; A nervura do real II: Imanência e liberdade em Espinosa: Editora Companhia das Letras; “Brasil: Mito Fundador e Sociedade Autoritária”, “Boas-vindas à Filosofia”, “Cidadania Cultural”, “Conformismo e Resistência”, “Contra a Servidão Voluntária; Convite à filosofia: Ática; “Cultura e Democracia, o Discurso Competente”, “Da Realidade sem Mistérios ao Mistério do Mundo”, “Desejo, Paixão e Ação na Ética de Espinosa”, “Dialética Marxista e Dialética Hegeliana”, “Direitos Humanos, Democracia e Desenvolvimento”, “Eja – Filosofia e Sociologia”, “Escritos Sobre a Universidade”, “Espinosa: Uma Filosofia da Liberdade”, “Experiência do Pensamento”, “Filosofia: Volume Único”, “Ideologia e Mobilização Popular”; Iniciação à filosofia. São Paulo: Ática; Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles: Editora Companhia das Letras “Manifestações Ideológicas do Autoritarismo Brasileiro”, “O que é Ideologia”, “O Ser Humano é um Ser Social”, “Política em Espinosa”, “Professoras na Cozinha”, “Repressão Sexual”; Simulacro e poder: uma análise da mídia.

[3] Capitalismo é um sistema econômico baseado na propriedade privada dos meios de produção e sua operação com fins lucrativos. As características centrais deste sistema incluem, além da propriedade privada, a acumulação de capital, o trabalho assalariado, a troca voluntária, um sistema de preços e mercados competitivos. O capitalismo é um sistema econômico em que as entidades privadas possuem os fatores de produção. Os quatro fatores são empreendedorismo, bens de capital, recursos naturais e trabalho. Os donos de bens de capital, recursos naturais e empreendedorismo exercem controle através de suas empresas. As principais características da ideologia capitalista são: O Estado intervém pouco no mercado de trabalho; O trabalhador é assalariado; Os proprietários controlam os fatores de produção e obtêm sua renda de sua própria propriedade; Exige uma economia de mercado livre para ter sucesso e distribui bens e serviços de acordo com as leis de oferta e demanda; Há divisão de classes sociais; A propriedade privada predomina; Teoria da Mais-Valia: termo cunhado pelo autor Karl Marx, a Mais-valia diz sobre o grande abismo econômico causado pelo capitalismo, que gera a desigualdade social entre empregadores e empregados.

[4] A noção de hegemonia, segundo Gramsci, é a maneira como o poder é exercido não só através de um conjunto de instituições políticas, mas através também da cultura. Quanto mais difundida uma determinada ideologia, mais sólida fica a hegemonia e há menos necessidade do uso de violência explícita. A ideologia dominante detém o controle da práxis humana a tal ponto que pode levar aqueles que nela fundamentam sua vida à uma naturalização da vida social. Segundo a ideologia possui poder para tornar aquilo que é resultado da ação histórica em produto invariavelmente necessário. A ideologia marxista é contra-hegemônica e assim sendo, aquilo que era puramente utopia, ou seja, pensamento visto como algo inviável em um dado momento histórico e que se propõe crítico daquilo que é hegemônico, deixará de sê-lo para passar a constituir aquela estrutura ideológica que antes a censurava. Para Antônio Gramsci, a ideologia faz parte do arcabouço estruturador da sociedade.

[5] Jean Baudrillard. (1929-2007) foi sociólogo e filósofo francês. Enfrentou uma época bastante conturbada em seu país, durante a depressão da década de 1930. Sua biografia é de difícil acesso, tanto pela inexistência de documentos sobre ele, quanto por sua personalidade reservada, pois resguardava exageradamente sua privacidade. Sociólogo, poeta e fotógrafo, este personagem polêmico desenvolve uma série de teorias que remetem ao estudo dos impactos da comunicação e das mídias na sociedade e na cultura contemporânea. Partindo do princípio de uma realidade construída (hiper-realidade), o autor discute a estrutura do processo em que a cultura de massa produz esta realidade virtual. Suas teorias contradizem o discurso da “verdade absoluta” e contribuem para o questionamento da situação de dominação imposta pelos complexos e contemporâneos sistemas de signos. Os impactos do desenvolvimento da tecnologia e a abstração das representações dos discursos são outros fenômenos que servem de objeto para os seus estudos. Sua postura profética e apocalíptica é fundamentada através de teorias irônicas que têm como objetivo o desenvolvimento de hipóteses e polêmicas sobre questões atuais e que refletem sobre a definição do papel que o homem ocupa neste ambiente.

[6] Zygmunt Bauman (1925=2017) foi sociólogo e filósofo polonês, professor emérito de Sociologia das Universidades de Leeds e Varsóvia. Durante uma entrevista ao jornal The Guardian, Bauman confirmou ter sido um devotado comunista – durante e depois da Segunda Guerra – e nunca ter feito segredo disso. Admitiu que ingressar no serviço de inteligência militar aos 19 anos tenha sido um erro, apesar de só ter realizado tediosas atividades burocráticas e jamais ter dado informações sobre alguém. Enquanto servia no KBW, Bauman também estudava sociologia na Academia de Política e Ciências Sociais de Varsóvia. Mas, em 1953, já no posto de major, foi subitamente excluído do KBW – e de maneira desonrosa -, depois que seu pai se aproximou da embaixada israelense em Varsóvia, com vistas a emigrar para Israel. Uma vez que Bauman não compartilhava absolutamente das ideias sionistas do pai , sendo, de fato, francamente antissionista, sua demissão causou um severo, embora temporário, distanciamento do pai. Durante o período em que ficou desempregado, decidiu completar seu mestrado e, em 1954, tornou-se professor assistente na Universidade de Varsóvia, onde permaneceu até 1968. Inicialmente, Bauman se manteve próximo à ortodoxia marxista, mas, influenciado por Antonio Gramsci e Georg Simmel, tornou-se crescentemente crítico ao governo comunista da Polônia. Passaria então a trabalhar, com outros acadêmicos da Universidade, numa concepção humanista do marxismo. De todo modo, Bauman sempre se declarou socialista e, nos seus últimos anos de vida, dizia que, mais do que nunca, o socialismo é necessário ao mundo. De acordo com Bauman, nos tempos atuais, as relações entre os indivíduos nas sociedades tendem a ser menos frequentes e menos duradouras. Uma de suas frases poderia ser traduzida, na língua portuguesa, por “as relações escorrem pelo vão dos dedos”. Segundo o seu conceito de “relações líquidas”, formulado, por exemplo, em Amor Líquido, as relações amorosas deixam de ter aspecto de união e passam a ser mero acúmulo de experiências, e a insegurança seria parte estrutural da constituição do sujeito pós-moderno, conforme escreve em Medo Líquido. Bauman é frequentemente descrito como um pessimista, na sua crítica à pós-modernidade. De fato, enquanto os cientistas, poetas e artistas da mainstream empenham-se na exaltação das virtudes do capitalismo, ele se insere na contracorrente, procurando expor a face desumana do capital.

[7] A sociedade de consumo é um termo bastante utilizado para representar os avanços de produção do sistema capitalista, que se intensificaram ao longo do século XX, notadamente, nos Estados Unidos e que, posteriormente, espalharam-se – e ainda vem se espalhando – pelo mundo. Nesse sentido, o desenvolvimento econômico e social é pautado pelo aumento do consumo, que resulta em lucro ao comércio e às grandes empresas, gerando mais empregos, aumentando a renda, o que acarreta ainda mais consumo. Uma ruptura nesse modelo representaria uma crise, pois a renda diminuiria, o desemprego elevar-se-ia e o acesso a elementos básicos seria mais dificultado.

[8] A boa-fé objetiva é um princípio basilar do direito do consumidor, segundo o qual as partes possuem o dever de agir com base em valores éticos e morais da sociedade. Desse comportamento, decorrem outros deveres anexos, como lealdade, transparência e colaboração, a serem observados em todas as fases do contrato. O princípio da boa-fé como cláusula geral, serve de paradigma para as relações provenientes da contratação em massa e deve incidir na interpretação dos contratos relativos a planos de saúde. É o princípio máximo orientador do Código de Defesa do Consumidor e basilar de toda a conduta contratual que traz a ideia de cooperação, respeito e fidelidade nas relações contratuais. Refere-se àquela conduta que se espera das partes contratantes, com base na lealdade, de sorte que toda cláusula que infringir esse princípio é considerada, ex lege como abusiva. Isso porque o artigo 51, XV do Código de Defesa do Consumidor diz serem abusivas as cláusulas que “estejam em desacordo com o sistema de proteção do consumidor”, dentro do qual se insere tal princípio por expressa disposição do artigo 4º, caput e inciso III.

[9] Perspectivas prevalecentes na jurisprudência do STJ. Doutrina e jurisprudência desenvolveram três teorias para explicar quem vem a ser o “destinatário final” de produto ou serviço mencionado na definição de consumidor no caput do art. 2º da lei consumerista: a teoria finalista, a maximalista e a finalista mitigada. A teoria finalista aprofundada ou mitigada amplia o conceito de consumidor para alcançar a pessoa física ou jurídica que, embora não seja a destinatária final do produto ou serviço, esteja em situação de vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica em relação ao fornecedor.

[10] As práticas abusivas nas relações de consumo estão previstas no artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor, sendo elas : a venda casada, a recusa de demandas dos consumidores, o envio de produtos sem solicitação prévia, a ausência de orçamento, a ausência de prazo para cumprimento da obrigação do fornecedor, produtos e serviços sem especificação legal, reajuste e aumento de preço e por último a cobrança indevida. Exemplos:  Venda casada, Mentir sobre falta de produto, Envio de produto não solicitado, Cobranças abusivas de dívidas, Contratação de um serviço sem apresentação de orçamento prévio, Humilhação ou difamação: o fornecedor não pode humilhar ou difamar o consumidor porque ele exerceu o seu direito, por exemplo;  Falta de fixação de prazo nas prestações de serviço; Reajuste de preço acima da média;  Não entregar cupom fiscal após a compra; Cobrar preços diferentes em cartões de crédito ou cheque.

[11] A Economia Digital se caracteriza por incorporar a internet, as tecnologias e os dispositivos digitais nos processos de produção, na comercialização e na distribuição de bens e serviços. Por sua vez, o setor da economia digital inclui plataformas digitais, aplicativos móveis e serviços de pagamento. O termo “Economia Digital” foi mencionado pela primeira vez no Japão por um professor japonês e economista pesquisador no meio da recessão japonesa dos anos 90.

[12] A obsolescência programada, também chamada de obsolescência planejada, é uma técnica utilizada por fabricantes para forçar a compra de novos produtos, mesmo que os que você já tem estejam em perfeitas condições de funcionamento. Ela consiste em produzir itens já estabelecendo o término da vida útil deles. Esse conceito surgiu entre 1929 e 1930, tendo como pano de fundo a Grande Depressão, e visava incentivar um modelo de mercado baseado na produção em série e no consumo, a fim de recuperar a economia dos países naquele período – algo parecido ao que ocorre nos dias de hoje, em que o crédito é facilitado e os governantes incentivam o consumo. Um caso emblemático dessa prática foi a formação do Cartel Phoebus, que, sediado em Genebra, teve a participação das principais fabricantes de lâmpadas da Europa e dos Estados Unidos e propôs a redução de custos e da expectativa de vida das lâmpadas de 2,5 mil horas para mil horas.

[13] Temos, então, que o vício pertence ao próprio produto ou serviço, jamais atingindo a pessoa do consumidor ou outros bens seus. O defeito vai além do produto ou do serviço para atingir o consumidor em seu patrimônio jurídico mais amplo (seja moral, material, estético ou da imagem).  O que é VÍCIO: Esse termo é usado quando um produto ou serviço se torna inadequado para o consumo ou não funcionam, tornando a utilização menos eficaz ou impossível. Seguem exemplos do que pode ser considerado um vício: – Um liquidificador que não gira é um produto que não funciona adequadamente; – Televisão sem som é um produto com mal funcionamento;  O que é DEFEITO: Primeiro, precisamos entender que existe vício sem defeito, mas não existe defeito sem vício (grifo meu). Nessa condição, o defeito no produto ou serviço vai além do vício, ou seja, é pior. Ele também traz um dano ou causa algum mal ao consumidor, podendo ser físico, moral ou psicológico. Seguem exemplos:  Se o consumidor compra a mesma caixa de creme de leite, mas abre apenas a ponta da caixa, sem conseguir ver de fato que estava embolorado e usa pra fazer estrogonofe, depois come esse estrogonofe e passa mal, é um caso de defeito.

[14] Segundo a teoria do risco, o risco proveito está fundado no princípio ubi emolumentum ibi onus, que se traduz na responsabilidade daquele que tira proveito ou vantagem do fato causador do dano é obrigado a repará-lo. A teoria do risco-criado é mais abrangente do que a teria do risco-proveito, pois aumenta os encargos do causador do dano e é mais justa à vítima, que não necessita provar que o dano resultou de uma vantagem ou de um benefício obtido pelo agente danoso.

[15] A teoria do diálogo das fontes é um novo método de solução das contradições, diferente daqueles critérios clássicos de solução de antinomias estabelecidos na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/1942). O diálogo das fontes propõe a superação dos critérios clássicos de interpretação das normas quando há conflito entre elas. Previsto desde a época de Savigny, a superação desses conflitos deve ser feita pelos critérios hierárquico, de especialidade e cronológico, ou seja, a norma superior supera a inferior, a especial supera a geral e a posterior supera a anterior. Com normas principiológicas, como é o caso do CDC, não há mais necessidade de aplicação desses critérios, pois ele necessita de uma interpretação conjunta para a sua aplicação. É uma necessidade de coordenação das normas que estão em conflito. Um bom exemplo é a relação entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil.