PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

O princípio da insignificância, conhecido amplamente no direito brasileiro tem a sua origem no direito romano, em consonância com ACKEL FILHO (1998), que leciona que os magistrados/aplicadores da lei não cuidavam de eventos delituosos da sociedade que fossem inexpressivos, devendo se ater somente aos casos de maior relevância. Os axiomas jurídicos minimis no curat praetor e de minimis non curat lex, respectivamente, “o magistrado não deve preocupar-se com questões insignificantes” e “a lei não cuida de coisas minímas”, traduzindo-se num incipiente princípio da fragmentariedade. O eminente autor e doutrinador CAPEZ (2008) também preleciona que o direito penal não deve cuidar de atos/fatos que tenham uma lesividade mínima, devendo ser rechaçados estes tipos incriminadores.

Mesmo embora o princípio da insignificância tenha tido o seu início no direito romano, somente na década de 60 ele fora introduzido no sistema do direito penal alemão, pelo jurista Claus Roxin que preconizava que onde os outros ramos do direito fossem satisfatórios para resolver a demanda, o direito penal deveria ficar à margem ROXIN, (2002).

A doutrina de regência em nosso sistema pátrio é pacífica quanto a natureza jurídica do princípio da insignificância, que converge para causa supralegal de excludente de tipicidade, consoante ao pensamento do sapiente doutrinador GOMES (2009). A aplicação do referido princípio não se dá deliberadamente, sendo elencado pelo STF quatro requisitos que norteiam a sua aplicação, qual sejam: mínima ofensividade da conduta do agente, ausência de periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada. Sendo assim para que seja possível a aplicação do princípio da insignificância no caso concreto, o agente não poderá ter praticado um crime/delito de grandes proporções, afetando expressivamente o bem tutelado. O fato também não poderá ter lesado significativamente o bem/patrimônio jurídico protegido. Além disso, o evento delituoso também não poderá ser praticado com violência e o seu grau de reprovação social terá de ser o mínimo para que a autoridade policial possa lançar mão deste instrumento.

Diante da análise de um estado de flagrância, o Delegado de Polícia partirá para as nuances do caso concreto, como se deu a ação, qual foi a magnitude da lesividade de tal ato etc. Feito esta análise em um primeiro momento, além do vislumbre da tipicidade formal, que é a subsunção do fato ao tipo incriminador, faz- se a análise da expressividade, relevância material daquele bem tutelado. Sendo ausente este último elemento da tipicidade material o fato será considerado atípico, sob o prisma do princípio da insignificância, consequentemente sendo uma causa excludente de tipicidade. GOMES (2009) de igual modo assevera que também deve se fazer presente não somente a análise de cunho objetivo dos requisitos elencados pelo STF para aplicação do referido princípio, mas também a análise subjetiva como a reincidência do sujeito que perpetrou a ação criminosa, bem como o poder econômico do mesmo frente a lesão provocada ao patrimônio.

Presentes os requisitos elencados pelo STF ao analisar o caso, o Delegado de Polícia poderá (e deverá) deixar de lavrar o auto de prisão em flagrante frente a atipicidade material da conduta do agente. NUCCI (2014) preleciona que não há razão de se lavrar um auto de prisão em flagrante frente a um fato ínfimo pelo viés social e jurídico.

O inquérito policial é outro elemento que compõe a relação junto ao princípio da insignificância que merece destaque e que será apresentado a seguir.

O inquérito policial é o procedimento administrativo insculpido em nosso código de processo penal que consiste em apurar a verdade real com a finalidade de coligir provas para correto apontamento da autoria e materialidade de um crime. Em suma, o inquérito policial engloba uma série de atos, ações que visam elucidar a autoria e as circunstâncias de um crime, podendo o Delegado de Polícia inquirir o indiciado, o ofendido, requerer corpo de delito, proceder ao reconhecimento de pessoas e coisas, entre outras que sejam necessárias para a elucidação da demanda.

Neste norte, é possível perceber a movimentação de todo aparato Estatal, sendo evidente os esforços materiais e físicos para o cumprimento do procedimento. Diante deste contexto, o Delegado deveria deixar de deflagrar o inquérito policial, a vista de que a movimentação de toda máquina judiciária gera custos, ainda mais pelo prisma de que pelo princípio da insignificância, a persecução penal é indevida.  É cediço que o inquérito policial desnecessário traz um fardo ao indiciado onde o mesmo se vê investigado, ocasionando a expiação social, como ensina MACHADO (2015). É inegável o sofrimento da pessoa quando se vê envolvida em uma investigação policial. Com a aplicação do princípio da insignificância, vemos que o procedimento investigativo denominado inquérito policial perde a razão de ser deflagrado.

Para elucidar e tornar mais lúdico no que consiste o princípio da insignificância e a sua aplicação no caso concreto, imaginemos a seguinte hipótese de caso concreto:

Luiz Carlos, 34 anos, trabalhador rural, sem antecedentes criminais e com boa reputação na comunidade em que reside, decide cometer um furto subtraindo de uma famosa granja produtora e exportadora de ovos de sua cidade. A granja em questão é de médio para grande porte com uma produção de ovos expressiva. A corroborar o seu intento, Luiz Carlos entra na granja e subtrai duas dúzias de ovos sendo flagrado a posteriori pelo vigia do estabelecimento. Já detido pelo vigia, Luiz Carlos não ofereceu resistência e esperou a polícia que fora chamada pelo vigia, já em sede policial o detido confirmou que furtou dois pentes de ovos, a totalizar vinte e quatro ovos. Neste momento, o Delegado começa a lançar mão das informações do caso concreto, juntamente com os dados da vida pregressa do conduzido. Diante de tais dados, é cediço que frente ao poder econômico da referida granja, o objeto do furto, duas dúzias de ovos é uma quantidade inexpressiva. Observa-se também que a conduta do agente não se deu com violência e o grau de ofensividade e reprovabilidade da ação é a mínima possível. Percebemos neste viés que os requisitos objetivos elencados pelo STF para a aplicação do princípio da insignificância foram alcançados, restando apenas analisar a circunstância subjetiva, que diz respeito à vida pregressa do nosso agente fictício Luiz Carlos.

O delegado de polícia passa a analisar a vida pregressa de Luiz Carlos e chega a conclusão de que ele é uma pessoa com uma conduta digna, ilibada e que em nenhum momento anterior a este se viu acusado ou mesmo indiciado por algum tipo de delito. A autoridade policial, tendo em vista toda análise e circunstância do fato pode (e deve) deixar de lavrar o auto de prisão em flagrante tento em vista a falta de tipicidade material da ação delituosa, sendo assim causa excludente de ilicitude. Ressalta-se que há subsunção formal do fato ocorrido à norma, porém quando se olha através do aspecto material, não há que se falar no direito penal cuidando de coisas ínfimas, insignificantes, relação estreita com o princípio da fragmentariedade, que preleciona que a demanda poderá ser resolvida em outros ramos do direito, já que o direito penal prima-se pela intervenção mínima na sociedade, como já cediço, a ultima ratio.

Outro aspecto relevante da aplicação do princípio da insignificância é que ele converge para outros princípios basilares de nossa Carta Magna, como por exemplo o da dignidade. Ainda seguindo o exemplo ficto do furto da granja de ovos, percebe-se que se instaurado inquérito policial para saber as nuances da ação, observa-se o manto invisível do Estado recair sobre a pessoa indiciada, mesmo sendo um processo sigiloso, vários autores e doutrinadores apontam que ocorre uma expiação moral na figura do indiciado, um constrangimento, uma angústia que somente quem se vê na esfera jurídica-administrativa-policial, se dá conta do fardo que é ter o nome e a vida sob o escopo de uma investigação. O delegado, ao aplicar o princípio da insignificância, está também deixando de pesar a mão do Estado na pessoa do indiciado, evitando assim o constrangimento desnecessário e, por conseguinte, ilegal.

A aplicação do princípio da insignificância coaduna também com o princípio da economicidade, previsto no artigo 70 da Constituição Federal, em que se espera a melhor celeridade nos serviços prestados e trato aos bens públicos. A aplicação da insignificância representa economia para o Estado e celeridade para eventos delituosos que realmente exijam uma repressão, pois diante de um fato que se reputa insignificante, sendo assim irrelevante e atípico para a esfera penal. Dito isso, não há interesse em mover a máquina estatal para reprimir um crime que é um indiferente penal.

GRECO (2012) ensina que, além dos outros princípios citados acima, o princípio da insignificância tem íntima relação com o princípio da adequação social, que preconiza que somente há tipicidade quando a lesão expressiva à sociedade. O eminente doutrinador nos ensina também que o referido princípio se prima por ser um instrumento de interpretação do tipo penal, complementando o princípio da fragmentariedade, bem como o da insignificância.

Sabendo a natureza do referido princípio, escopo deste trabalho, temos o afastamento da tipicidade, aos olhos do direito penal e os seus aparelhos repressivos, não há que se falar em tipicidade, rechaçando seus desdobramentos administrativos e jurídicos.

A corroborar que a doutrina de regência converge e sedimenta o uso do princípio da insignificância, nas palavras de GOMES (2006), o Delegado tem a missão de ser um garantidor dos direitos fundamentais insculpidos em nossa Constituição, pois em primeira vista, ele é a primeira autoridade a fazer uma análise das nuances da persecução penal em seus estágios incipientes, coadunando assim para um direito garantista, econômico e protetor dos direitos dos cidadãos. Ainda na seara dos fundamentos doutrinários que justificam muitos passos da aplicação do princípio supra, outro não é o que ensina GOMES (2001), sendo que quando da interpretação das normas, elas não podem ser interpretadas isoladamente, literalmente como se somente o texto normativo fosse suficiente para alcançar a justiça, no sentido mais amplo da palavra, no caso concreto, ela deve ser interpretada juntamente com o contexto fático e situação político-social do microcosmo onde passa-se os eventos relevantes para o mundo jurídico e em especial ao direito penal.

Os reflexos advindos da aplicação do princípio da insignificância têm impacto em várias áreas que influenciam o direito como um todo. Um dos mais proeminentes é na harmonia com a constituição no que diz respeito a dignidade da pessoa, uma vez que, conforme supracitado, quando da aplicação do princípio da insignificância ao caso concreto, afastando assim a tipicidade da conduta, a pessoa cujas investigações seriam direcionadas, deixará de suportar o constrangimento e o fardo de se ver indiciado, por não haver justa causa para deflagração do inquérito e consequente prisão, sendo que para o direito penal este é um irrelevante jurídico.

O aspecto carcerário é um outro ponto cujos reflexos do princípio ora citado , em consonância com GENELHÚ (2015), existem muitos presídios cuja população mostra um número significativo de reeducandos que foram condenados por crimes insignificantes, onde o princípio da insignificância seria um grande divisor de águas, aplicando-se com parcimônia o mesmo no caso concreto, a atingir então um senso maior de adequação social e por conseguinte, uma maior adequação da justiça. A economia do Estado frente a esta população carcerária se traduz em menos gastos com aparato repressivo, menos servidores em diligências sem nenhum resultado prático, além disso, se houvesse a aplicação do princípio da insignificância, o direito penal comportaria com mais espaço para atuar em bens que necessitam realmente de uma tutela Estatal.

Diante do exposto, concluiu-se que a aplicação do princípio da insignificância é mais que um poder do Delegado de polícia, mas configura-se como um verdadeiro dever como instrumento de garantias para o cidadão. Evitar o movimento desnecessário do maquinário estatal é economizar recursos públicos, e isso depreende-se da análise do caso concreto pelo Delegado de polícia.

O Delegado é o primeiro garantidor da justiça e sua atuação não se limita apenas a seara administrativa, o seu papel é fundamental no momento pré-processual, sendo assim cediço sua atuação primordial para uma resolução digna dos fatos.

Dessa forma constatou-se que o Delegado de polícia ao interpretar e analisar os casos concretos com muita parcimônia, sendo esta primeira interpretação do caso concreto essencial ao bom deslinde de toda situação fática, converge harmonicamente para os preceitos de dignidade, economicidade e razoabilidade ao proceder a aplicar o referido princípio da insignificância.

REFERÊNCIAS

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

GENELHÚ, Ricardo. Do discurso da impunidade à impunização: o sistema penal do capitalismo brasileiro e a destruição da democracia. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

GOMES, Luiz Flávio. Delito de Bagatela: Princípios da Insignificância e da Irrelevância Penal do Fato. Revista Diálogo Jurídico.  2001, p. 08. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br> Acessado em: 13 de abril de 2020.

GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

GOMES, Rodrigo Carneiro. Inquérito policial. In: Revista dos Tribunais, v. 852, 2006.

GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 6ª edição. Rio de Janeiro: Impetus, 2012.

MACHADO, Leonardo Marcondes. Flagrantes de bagatela: considerações sobre a aplicação do princípio da insignificância pelo delegado de polícia. In: SANTOS, Cleopas Isaías; ZANOTTI, Bruno Taufner (Org.). Temas avançados de polícia judiciária. Salvador: Juspodivm, 2015.

NICOLITT, André. O delegado de polícia e o juízo de tipicidade: um olhar sob a ótica da insignificância. In: Temas para uma Perspectiva Crítica do Direito: homenagem ao Professor Geraldo Prado. Rio de Janerio: Lumen Juris, 2010.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico penal. Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.