A (in)constitucionalidade da Medida Provisória nº 936/2020

RESUMO: O texto analisa a constitucionalidade da Medida Provisória nº 936/2020, especificamente, no tocante à dispensa da negociação coletiva como mecanismo de implementação da redução salarial (por suspensão do contrato ou redução proporcional de jornada). Ao final, conclui-se que a mencionada regra, não obstante a boa intenção do legislador, ofende à Constituição Federal.

PALAVRAS-CHAVE: NEGOCIAÇÃO COLETIVA. MEDIDA PROVISÓRIA Nº 936. REDUÇÃO SALARIAL. REDUÇÃO DE JORNADA. SUSPENSÃO DO CONTRATO DE TRABALHO

São notórios os impactos que a pandemia da COVID-19 tem gerado no mundo inteiro, especialmente nas áreas social e econômica. No Brasil, por exemplo, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), há previsão de queda brusca do Produto Interno Bruto (PIB) e aumento severo do desemprego, cenário que, sem dúvida, exige medidas governamentais voltadas à mitigação da crise, com auxílio às empresas e reforço à manutenção dos postos de trabalho.(1)

Amparando-se nesse estado de coisas, foram editadas diversas medidas provisórias no campo trabalhista, por meio das quais o Presidente da República inseriu mecanismos teoricamente voltados à mitigação dos efeitos da crise nas relações de trabalho. Em uma dessas medidas provisórias, qual seja, a MP 936/2020, inovou-se na ordem jurídica nacional, ao conceder ao empregador nova modalidade de redução salarial e da jornada de trabalho ou mesmo a suspensão do contrato de trabalho, por simples acordo individual escrito, sem a participação dos sindicatos.(2)

Com efeito, a MP 936/2020 assegura a possibilidade de suspensão do contrato de trabalho ou redução do salário, com reflexo na jornada, nos percentuais de 25%, 50% ou 70%, a primeira com prazo máximo de duração de 90 (noventa) dias, e a segunda, 60 (sessenta) dias. Gize-se, ainda, que, em ambos os casos, o obreiro faria jus à garantia provisória ao emprego durante a execução da medida e, pelo período acordado, após o retorno regular ao trabalho.

Além disso, segundo a MP, o empregado que tivesse seu contrato suspenso ou jornada e salário reduzidos teria direito a um auxílio financeiro, denominado “Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda”, custeado pela União e calculado com base no seguro-desemprego, variando tal complementação entre R$ 261,25 a R$ 1.813, conforme parâmetros estipulados na MP.

Posta a medida, cumpre averiguar sua compatibilidade com a Constituição da República, especificamente, em relação ao disposto no artigo 7º, VI, que prevê, como direito fundamental e cláusula pétrea, a irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo, além do previsto no art. 7º, XXVI, da CF/88, que reconhece e estimula a negociação coletiva como método de resolução de conflitos.

De partida, ressalta-se que o tema em análise foi levado à apreciação do Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6363, ajuizada pelo partido Rede Sustentabilidade. Em tal ação, na data de 17 de abril de 2020, o Plenário do STF, por maioria, vencidos os Ministros Ricardo Lewandowski (relator), Edson Fachin e Rosa Weber, entendeu pela prevalência das regras trazidas pela Medida Provisória 936/2020.

Pois bem. Não obstante o resultado do julgamento pela Corte Suprema, é de fácil percepção que os artigos 7º, II e 8º, § 2º da MP 936/2020, ao agasalharem o acordo individual como mecanismo para a suspensão do contrato ou redução de jornada, deságuam na redução salarial e, nessa extensão, ofendem o disposto no art. 7º, VI, da Constituição Federal, uma vez que qualquer forma de redução salarial exige a participação do ente coletivo.

A simples leitura do art. 7º, VI, da Carta Política de 1988, que agasalha inequívoca cláusula pétrea (MENDES; BRANCO, 2015, p. 146), é suficiente para espantar qualquer interpretação no sentido da exclusão da participação sindical na redução salarial, tendo o Constituinte Originário garantido, de modo clarividente, especial proteção ao salário.

E não poderia ser diferente a previsão constitucional, pois o salário é meio de prover a sobrevivência do trabalhador e de sua família, não sendo possível reduzi-lo por mero acordo individual, onde evidentemente prevalecerá a vontade do empregador, haja vista a ínsita hipossuficiência do obreiro na relação de trabalho, reforçada pelo receio de perda do emprego, neste momento de crise.

Assim, com vistas a propiciar efetivas condições para negociação de tamanha monta, a  Carta Política exigiu cenário no qual os trabalhadores estivessem devidamente protegidos. Portanto, a participação do ser coletivo na negociação para redução salarial é imprescindível para prover as condições de real equilíbrio entre os atores da negociação, possibilitando, assim, efetiva transação, e não apenas a formalização dos interesses de um dos lados da balança.

Além disso, no rol de direitos sociais, a Constituição Federal previu o reconhecimento de acordos e convenções coletivas como fonte de criação de normas jurídicas (inciso XXVI do artigo 7º), incutindo-lhes importância até superior à lei, como na espécie em exame. No mesmo sentido, embora não seja objeto específico deste artigo a análise convencional da MP 936, cumpre sublinhar que as Convenções da Organização Internacional do Trabalho nº 98 e nº 158, ambas ratificadas pelo Brasil, no mesmo trilho da CF/88, estimulam os instrumentos coletivos de trabalho como meio autônomo de resolução de conflitos.

Convenção nº 98: Art. 4º  Deverão ser tomadas, se necessário for, medidas apropriadas às condições nacionais, para fomentar e promover o pleno desenvolvimento e utilização dos meios de negociação voluntária entre empregadores ou organizações de empregadores e organizações de trabalhadores com o objetivo de regular, por meio de convenções, os termos e condições de emprego.

Convenção nº 154: Art. 5º. Deverão ser adotadas medidas adequadas às condições nacionais no estímulo à negociação coletiva.

Art. 8º. As medidas previstas com o fito de estimular a negociação coletiva não deverão ser concebidas ou aplicadas de modo a obstruir a liberdade de negociação coletiva.

Assim, cabe indagar se há permissão jurídica para implantação de medidas que afastem as partes da negociação coletiva de trabalho, quando normas constitucionais e internacionais preveem o fomento a esse tipo de resolução de conflito. A resposta a essa questão certamente será negativa, sob pena de violação à ideia de hierarquia, que rege a concepção de sistema jurídico.

Portanto, seja em nível constitucional, seja no âmbito internacional, o Brasil firmou pactos de reconhecimento e estímulo aos instrumentos coletivos de trabalho (direitos sociais), compromissos que, hierarquicamente, posicionam-se acima das leis infraconstitucionais. Logo, a função da legislação ordinária deve ser orientada pela ampliação de tais marcos jurídicos, e não o contrário.

Fixada essa premissa, é correto concluir que a dispensa da negociação coletiva no tema em voga, por constituir regra contrária ao prestígio e estímulo à negociação, encontra-se em descompasso com o previsto nos artigos 7º, caput e XXVI, da CF/88, 4º da Convenção da OIT nº 98 e 5º e 8º da Convenção da OIT nº 154.

Sublinhe-se, ainda, por oportuno, que, embora aparentemente convincentes, são falhos os argumentos calcados na necessidade de releitura da Constituição da República, em razão do período calamitoso que o país enfrenta. Isso porque a Carta Política, como norma fundamental, deve prevalecer não apenas em tempos de bonança, mas, especialmente, em períodos de crise ou turbulência.

Nesse sentido, compartilha-se da opinião de Gustavo Filipe Barbosa Garcia (2020), que, reforçando o caráter inconstitucional da dispensa da participação sindical na transação em exame, assegura necessidade de observância ao devido processo legal e, por conseguinte, a impossibilidade de afastamento do comando constitucional, mesmo em caso de situações adversas:

No Estado Democrático de Direito, o devido processo legal substancial impõe às atividades legislativa, administrativa e jurisdicional que o comando constitucional, ao excepcionar certa determinação, seja respeitado, independentemente de quem o aplica e de sua percepção subjetiva a respeito da matéria.

É o que ocorre quanto ao direito fundamental de irredutibilidade de salário, que, segundo regra constitucional expressa, apenas pode ser ressalvado, justamente em situações excepcionais, como a atual, por meio de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho (artigo 7º, inciso VI, da Constituição Federal de 1988). Não há outros preceitos jurídicos em colisão na disciplina dessa questão específica, os quais não se confundem com opiniões pessoais a respeito do que seria melhor para enfrentar os períodos de crise.

O meio constitucionalmente legítimo para a redução de salário, ainda que acompanhada de redução de jornada de trabalho (artigo 7º, inciso XIII, da Constituição da República), em qualquer circunstância, é a negociação coletiva, na qual, em regra, é obrigatória a participação dos sindicatos (artigo 8º, inciso VI, da Constituição Federal de 1988). Desse modo, ainda que o fim almejado seja a manutenção de empregos em situações de pandemia e de força maior, evitando-se dispensas individuais e coletivas de trabalhadores, a redução salarial deve respeitar o devido procedimento constitucionalmente estabelecido, que é a negociação coletiva de trabalho, e não o acordo individual.

De igual modo, em nota pública, a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (2020) destacou:

[…] persiste a preocupação central desta entidade quanto à postura normativa também presente também na MP n. 936/2020, de reiterado afastamento da negociação coletiva na implementação das aludidas medidas emergenciais, relativamente a considerável parcela dos vínculos de trabalho, sobretudo quando referentes à redução de salários e suspensão de contratos de trabalho, pois a Constituição da República garante como direito do trabalhador brasileiro a irredutibilidade salarial, só sendo possível a diminuição dos salários a partir de negociação coletiva (art. 7º, VI). Prever a redução salarial sem a participação do sindicatos de trabalhadores, mesmo em tempos de crise acentuada, é medida de natureza inconstitucional.

[…] Ao dispensar a negociação coletiva para implementação das medidas emergenciais sobretudo aos trabalhadores com mais baixa remuneração (até 3 salários mínimos), a MP n. 936/2020 acentua ainda mais o aludido quadro de violação às normas constitucionais e internacionais que garantem a negociação coletiva como instrumento constitucional e democrático destinado à composição dos interesses de empregados e empregadores, especialmente quanto aos trabalhadores mais vulneráveis, “convidados” a negociar sob ameaça de perda do emprego em momentos de crise.

No mesmo trilho, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (2020) manifestou as anomalias da MP ora discutida:

A expectativa, num cenário de crise, é de que a prioridade das medidas governamentais se dirija aos mais vulneráveis, notadamente, aqueles que dependam da própria remuneração para viver e sustentar as suas famílias. Tais medidas devem ser, além de justas, juridicamente aceitáveis. Na MP 936 há, contudo, insistência em acordos individuais entre trabalhadores e empregadores; na distinção dos trabalhadores, indicando negociação individual para “hiperssuficientes”; na desconsideração do inafastável requisito do incremento da condição social na elaboração da norma voltada a quem necessita do trabalho para viver; e no afastamento do caráter remuneratório de parcelas recebidas em razão do contrato de emprego, que redundará no rebaixamento do padrão salarial global dos trabalhadores e das trabalhadoras. Tudo isso afronta a Constituição e aprofunda a insegurança jurídica já decorrente de outras mudanças legislativas recentes.

A Constituição de 1988 prevê, como garantia inerente à dignidade humana, a irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo (art. 7º, IV). Por isso, a previsão de acordos individuais viola a autonomia negocial coletiva agredindo, primeiro, o sistema normativo que deve vincular todos os Poderes Constituídos e, segundo, a Convenção nº 98 da OIT, que equivale a norma de patamar superior ao das medidas provisórias.

De igual modo, não permanecem de pé as alegações no tocante às dificuldades práticas para atuação dos sindicatos no cenário desafiador em tela, visto que ferramentas alternativas, como uso da tecnologia (assembleias virtuais etc) poderiam ser adotadas pelos entes sindicais, permitindo sua adequada participação nas transações coletivas.

Além disso, como já sublinhado, não há dúvidas de que a MP 936/2020, no ponto ora discutido, deixa desprotegidos inúmeros trabalhadores, especialmente, aqueles mais vulneráveis (menos favorecidos), que, inevitavelmente, serão “convidados” a aceitar a suspensão contratual ou redução de jornada/salário ou pura e simplesmente perder o posto de trabalho.

Portanto, não obstante a intenção legislativa voltada à facilitação da adoção das medidas em xeque, surge evidente que os artigos 7º, II e 8º, § 2º da MP 936/2020, ao dispensarem a negociação coletiva como mecanismo para redução salarial, ofendem, de modo contundente, o disposto nos artigos 7º, VI e XXVI, da CF/88, arranhando também diplomas internacionais (Convenções da OIT nº 98 e nº 154), merecendo, assim, a rejeição do Congresso Nacional.

NOTAS

#ftn1 Estudos recentes do IPEA indicam que “no cenário em que o isolamento duraria mais um mês (até o final de abril), a previsão é que o PIB feche o ano com uma queda de 0,4%. Nos cenários com isolamento por dois e três meses, as quedas do PIB em 2020 seriam ainda maiores, de 0,9% e 1,8%, respectivamente. O custo em termos de PIB é crescente porque, mesmo com medidas mitigadoras bem sucedidas, os riscos de falências e de demissões aumentam quanto maior for o tempo em que as empresas ficam com perda muito grande (ou total) de faturamento”. 

#ftn2 Conforme o art. 12 da MP n. 936, a redução de jornada/salário e a suspensão contratual podem ser realizadas por meio de acordo individual entre empregado e empregador, relativamente aos empregados com salário igual ou inferior a R$ 3.135,00 (equivalente a 3 salários mínimos) e aos portadores de diploma de nível superior e remuneração igual ou superior a duas vezes o teto dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social. Além disso, o art. 12 da MP, parágrafo único, estabelece a possibilidade de redução de jornada/salário em até 25%, por meio de acordo individual, independentemente do valor da remuneração do trabalhador.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS MAGISTRADOS DA JUSTIÇA DO TRABALHO (ANAMATRA). NOTA PÚBLICA. Disponível em <https://www.anamatra.org.br/imprensa/noticias/29583-nota-publica-5>. Acesso em 21 mai. 2020.

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROCURADORES DO TRABALHO (ANPT). NOTA PÚBLICA – A MP N. 936/2020, A REDUÇÃO DE SALÁRIOS, A SUSPENSÃO CONTRATUAL DO EMPREGO E O INCONSTITUCIONAL AFASTAMENTO DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA. Disponível em <http://www.anpt.org.br/imprensa/noticias/3647-mp-936-anpt-reafirma-preocupacao-com-a-flexibilizacao-de-direitos-trabalhistas-no-periodo-de-calamidade-publica>. Acesso em 21 mai. 2020.

GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Crise não autoriza redução de salário sem participação de sindicato. Disponível <https://www.conjur.com.br/2020-abr-19/gustavo-garcia-crise-nao-autoriza-reducao-salario-sindicato>. Acesso em 21 mai. 2020.

JUNIOR, José Ronaldo de C. Souza et. al. Visão geral da conjuntura. Disponível <https://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura/wp-content/uploads/2020/03/CC46_Vis%C3%A3o-Geral.pdf>. Acesso em 21 mai. 2020.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 10a. Ed. São Paulo: Saraiva, 2015.