Em virtude do Coronavírus (Covid-19) e sua notória disseminação pelo mundo todo, neste ano de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) considerou a doença grave o suficiente para classificá-la como pandemia. Diante de sua súbita difusão sobrevieram diversos impactos, sobretudo econômicos e sociais em todas as regiões do globo. Especificamente, em nosso País, o estado de calamidade pública fora reconhecido[1] e os impactos da doença vem sendo sentidos em todas as áreas, inclusive no bojo do processo trabalhista.[2]
Cumpre ressaltar que vivenciamos uma situação inusitada, grave e sensível em âmbito mundial, até então jamais vista e tampouco enfrentada pelo Poder Judiciário Trabalhista brasileiro. Nesse contexto, este ramo vem recebendo inúmeras ações, as quais compreendem a discussão de questões relacionadas ao meio ambiente de trabalho e a aplicação das medidas provisórias editadas pelo governo federal[3], e também é chamado para enfrentar e decidir sobre os reflexos do Covid-19 em reclamações ajuizadas antes do início da decretação do referido estado de calamidade (pré-pandemia), incluindo, a possibilidade (ou impossibilidade) de suspensão dos acordos já homologados, sob a justificativa adotada pelas empresas de que os impactos econômicos oriundos das medidas de distanciamento social têm afetado suas atividades empresariais.
Como é sabido, o direito é baseado em uma integração normativa pela conjunção de fatos e valores[4], e ao Estado-juiz é vedada a escusa de julgamento, sob a alegação de que ainda não há amparo legal para solução de uma dada situação[5], uma vez que o ordenamento jurídico é uno e, assim sendo, encontra-se respostas em si próprio pelo uso da formas interpretativas para tanto, dentre elas, a sistemática[6]. Assim, diante de um ordenamento pátrio posto, muitas vezes, não há respostas prontas e imediatas, especialmente como é o caso do cenário que estamos vivendo. Portanto, nesse momento tão delicado, é primordial que os juristas operem com a devida cautela na interpretação e adaptação dos institutos jurídicos existentes, sempre respeitando os ditames da nossa Carta Maior, notadamente a valorização social do trabalho, a livre iniciativa (art. 170 da CRFB) e a segurança jurídica (art. 5º, XXXVI da CRFB).
É certo que o acordo judicial pactuado entre as partes é fruto da autonomia privada das partes, dotado da garantia do ato jurídico perfeito[7] e, justamente por assim ser, não restam dúvidas que a via mais adequada, em princípio e diante da atual conjuntura, é que o empregado e o empregador atuassem em suas relações pautados na cooperação (art. 6º do CPC), na lealdade, boa-fé e transparência, de forma a dialogarem a respeito das dificuldades que veem passando neste cenário, a fim de resolverem a questão e renegociarem, por si só e em prestígio a autonomia da vontade, o acordo ora entabulado. Entretanto, caso uma nova conciliação seja infrutífera ou inviável, imperiosa e atual é a discussão a respeito das possibilidades interpretativas respaldadas no ordenamento jurídico brasileiro para enfrentamento desses requerimentos empresariais levados à sub judice.
Vejamos. O acordo judicial é um desdobramento dos negócios jurídicos, no qual deve-se vigorar a máxima, o princípio “pacta sunt servanda”, isto é, a obrigatoriedade de cumprimento do pactuado[8]. Na seara trabalhista, celebrado o acordo em juízo, “ou homologado judicialmente acordo extrajudicial (CLT, art. 855-B), a conciliação adquire força de coisa julgada para partes no exato momento em que referendada pelo Juiz do Trabalho.”[9] Portanto, caso reclamante e reclamada firmem um pacto este deverá ser respeitado, sob pena de ofensa ao cumprimento da coisa julgada e eventual imposição de multa. Ocorre que, não é incomum nesse ramo especializado que as partes acordem de forma a obrigarem-se continuamente no tempo, em prestações periódicas. E é justamente o caso em questão que aqui se impõe: a existência de acordos, com obrigações prologadas no tempo, cujo cumprimento deu-se de forma contínua no período da doença.
Deve-se asseverar que a pandemia do Coronavírus é fato totalmente imprevisível, que se enquadra na hipótese de caso fortuito (art. 393, parágrafo único do Código Civil e art. 501 da CLT), eis que a doença e as consequentes medidas de isolamento divulgadas amplamente na mídia – em especial no âmbito da municipalidade -, por óbvio, configurar-se-iam como sendo independentemente da vontade dos indivíduos ora pactuantes. Tanto o trabalhador, que afigura-se como parte hipossuficiente da relação[10], quanto o empregador estão sofrendo as dificuldades econômicas e, por isso, a existência de repercussão nos acordos trabalhistas anteriormente firmados, em momento no qual não se cogitava a possibilidade de termos que enfrentar uma crise sanitária de tal magnitude.
Portanto, considerando que nenhum princípio é absoluto[11], nem mesmo o da confiança jurídica, necessário se faz elencarmos as exceções discutidas no bojo da doutrina para relativização desse postulado, quais sejam: i) a teoria da imprevisão; ii) a teoria dinâmica da coisa julgada. Por meio da análise de tais teorias, somada às condições fáticas em decorrência do cenário em que vivemos, será possível a ponderação a respeito da possibilidade de requerimento de revisão e suspensão dos acordos já homologados, com obrigações contínuas durante a vigência do estado de calamidade pública.
Mais uma vez, deve-se ressaltar que a regra é estrita observância do pactuado nos acordos homologados perante o âmbito da justiça do trabalho, em prol do respeito à expectativa legítima das partes, da obrigatoriedade contratual e do Princípio da segurança jurídica, consolidado na Constituição da República de 1988.
Contudo, diante da crise sanitária que vivemos, deve-se encontrar meios condizentes e proporcionais para adaptarmos o direito à realidade fática, porquanto a sociedade como um todo está sofrendo os efeitos da pandemia. Assim, o Poder Judiciário Trabalhista, ao deparar-se com tal requerimento deve-se ater, em primeiro lugar, que o mero fechamento dos estabelecimentos em razão do isolamento social não é elemento suficiente para caracterizar a alteração do pactuado.
Para tanto, é imprescindível a existência de prova cabal por parte da empresa, ora Reclamada, de que os efeitos provenientes do Covid-19 e o consequente fechamento de seus estabelecimentos e a interrupção de seus serviços por determinação da Administração Pública ocasionaram um grande desequilíbrio em suas contas. Ou seja, se faz necessário que a empresa demonstre, de forma fundamentada, que o inadimplemento contratual, cuja culpa não tenha concorrido ainda que indiretamente[12], tem nexo com a pandemia e seus decorrentes efeitos.
A título exemplificativo, o empregador poderá trazer à baila, em simples petição juntada aos autos (embasado no princípio da simplicidade que rege o processo trabalhista) os balancetes financeiros, fluxo de caixa e demais documentos que figure essenciais para a comprovação da solicitação.[13] É que ao empregador recai o ônus do risco de seu empreendimento (art. 2º da CLT), haja vista que na seara laboral vigora o princípio da alteridade (ou assunção dos riscos).[14]
Nesse espeque, a exceção à obrigatoriedade da força contratual, trazida pela cláusula rebus sic stantibus – corolário da Teoria da Imprevisão[15] -, possibilita a alteração do pactuado, caso não sejam mantidas as mesmas condições, à época de sua elaboração. Havendo desequilíbrio, encontrando-se uma das partes em onerosidade excessiva, admite-se a revisão do acordado, com vistas ao retorno do status quo.
Ademais, em que pese o acordo judicial homologado ter força de decisão irrecorrível (art. 831 da CLT e Súmula 100, V do c. TST), revestido sob o manto da coisa julgada, de caráter imutável e indiscutível, em sua visão clássica, pode-se adiantar, ante o ineditismo em âmbito mundial da pandemia do Covid-19 e as consequências oriundas, que se trata de hipótese diversa, no sentido de aplicação da teoria dinâmica da coisa julgada[16]. Tal instituto trata justamente da projeção dos efeitos da coisa julgada no tempo, especialmente em relação às relações jurídicas de trato sucessivo, tendo como regra a estabilidade e a manutenção da coisa julgada, em prol da segurança jurídica, possibilitando, entretanto, em circunstâncias excepcionais, que haja a modificação do julgado.
Por meio de ambas teorias, atribui-se dinamicidade aos vínculos continuativos, com relevante função econômica e pacificação social. Ademais, necessário ressaltar que o valor estipulado para quitar a obrigação permaneceria intacto, pois, eventualmente, o que se pretende alterar ou suspender são as condições, de prazo para pagamento.
Neste sentido, à guisa de conclusão dessa breve análise ao questionamento, verifica-se que, diante do grave momento que estamos enfrentando, é necessário a fomentação do cooperativismo e do espírito conciliatório entre as partes de modo a preservar, em princípio e como regra, a máxima do pacta sunt servanda. Apenas em situações extremamente pontuais e excepcionais, com efetiva demonstração da necessidade, é que seria possível – como ultima ratio – a aplicação das referidas teorias, de forma a relativizar as obrigações contidas no acordo homologado para que seu pagamento possa ser diferido.
REFERÊNCIAS
AMORIM, Letícia Balsamão. A distinção entre regras e princípios segundo Robert Alexy: esboço e críticas. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 42 n. 165 jan./mar. 2005.
ASSUNÇÃO, Carolina Silva Silvino. Covid-19 e as repercussões nas relações de trabalho: análise da possibilidade de revisão dos acordos homologados sob a perspectiva dos impactos econômicos oriundos das medidas de distanciamento social e quarentena. Rev. Trib. Reg. Trab. 3ª Reg. Belo Horizonte – edição especial, tomo 2, jul. 2020.
BERNARDES, Felipe. Manual de processo do trabalho. Volume único. Salvador: Juspodivm, 2019.
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 17 ed. rev., atual e ampl. – São Paulo: LTR, 2018.
FIUZA, César. Direito Civil: Curso completo. 15ª ed., revista, atualizada e ampliada – Belo Horizonte: Del Rey, 2011.
RAATZ, Igor. Autonomia privada e processo civil: negócios jurídicos processuais, flexibilização procedimental e o direito à participação na construção do caso concreto. Salvador: Juspodivm, 2016.
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed., ajustada ao novo Código Civil. 4ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2004.
REIS, Sérgio Cabral dos. A suspensão de acordos trabalhistas e a questão da coisa julgada. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-suspensao-de-acordos-trabalhistas-e-a-questao-da-coisa-julgada-08062020> Acesso em 04.08.2020.
TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único – 10. ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2020.
[1] Decreto Legislativo nº 6 de 2020.
[2] Atualmente, o número de ações trabalhistas em virtude do Covid-19 já ultrapassa 71.968 no total, com estimativa de valores a serem discutidos no montante de R$4,52 bi. Dados coletados pela iniciativa do “Termômetro Covid-19 na Justiça do Trabalho”, em parceria com o Conjur e organizada pela instituição de educação Finted e a startup Datalawyer Insights. Disponível em: < https://www.datalawyer.com.br/dados-covid-19-justica-trabalhista> Acesso em 04.08.2020.
[3] Medidas Provisórias n. 927/2020 e 936/2020.
[4] REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed., ajustada ao novo Código Civil. 4ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 64-65.
[5] Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657compilado.htm> Acesso em 04 de agosto de 2020.
[6] REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed., ajustada ao novo Código Civil. 4ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 277-281.
[7] RAATZ, Igor. Autonomia privada e processo civil: negócios jurídicos processuais, flexibilização procedimental e o direito à participação na construção do caso concreto. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 187-188.
[8] FIUZA, César. Direito Civil: Curso completo. 15ª ed., revista, atualizada e ampliada – Belo Horizonte: Del Rey, 2011. p. 458.
[9] BERNARDES, Felipe. Manual de processo do trabalho. Volume único. Salvador: Juspodivm, 2019. p. 578.
[10] DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 17 ed. rev., atual e ampl. – São Paulo: LTR, 2018. p. 231.
[11] AMORIM, Letícia Balsamão. A distinção entre regras e princípios segundo Robert Alexy: esboço e críticas. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 42 n. 165 jan./mar. 2005. p. 123-134.
[12] Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm> Acesso em 04 de agosto de 2020.
[13] ASSUNÇÃO, Carolina Silva Silvino. Covid-19 e as repercussões nas relações de trabalho: análise da possibilidade de revisão dos acordos homologados sob a perspectiva dos impactos econômicos oriundos das medidas de distanciamento social e quarentena. Rev. Trib. Reg. Trab. 3ª Reg. Belo Horizonte – edição especial, tomo 2, jul. 2020. p. 565-566.
[14] DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 17 ed. rev., atual e ampl. – São Paulo: LTR, 2018. p. 490-493.
[15] TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único – 10. ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2020. p. 954-965.
[16] REIS, Sérgio Cabral dos. A suspensão de acordos trabalhistas e a questão da coisa julgada. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-suspensao-de-acordos-trabalhistas-e-a-questao-da-coisa-julgada-08062020> Acesso em 04.08.2020.