INTERSEÇÃO ENTRE CLARICE LISPECTOR E VIRGINIA WOLF

Para compreendermos esse diálogo, necessário se faz uma breve retomada histórica do movimento relativo ao estudo de Direito e Literatura. Suas origens retomam ao ano de 1908, quando um juiz da Suprema Corte Norte-Americana (John Henry Wigmore), trouxe a forma da literatura para o direito, ou seja, a possibilidade de textos jurídicos serem interpretados e lidos como textos literários, surge assim a Law as Literature, a partir da publicação de sua A List of Legal Novels.

Assim, esse movimento destina-se à análise de textos literários que tematizam matérias jurídicas, a possível e rica interconexão entre ambas as disciplinas. Segundo Gadamer (2002), diálogo não é conversa, mas uma troca de informações que transforma os participantes. O diálogo deixa uma marca, possibilitando encontrar no outro aquilo que não havíamos encontrado em nossa experiência de mundo.

Portanto, partindo deste breve entendimento do quem vem a ser esse movimento do Direito e Literatura, passaremos a análise da obra A Hora da Estrela, de Clarice Lispector e Profissões para Mulheres de Virginia Wolf, e suas conexões com os Direitos Fundamentais, previstos em nossa Carta Magna, e a situação dos direitos da mulher nesses tempos de pandemia do Covid-19.

Para início de conversa, precisamos compreender que os direitos fundamentais, em tempos de pandemia, merecem uma análise profunda a respeito de sua importância normativa para o estabelecimento do Estado Democrático de Direito, garantindo assim ao cidadão sua proteção, tendo como corolário o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

Neste momento, estamos vivenciando o estado de calamidade já decretado pelo governo brasileiro, o que permite que algumas medidas excepcionais sejam apresentadas e colocadas em prática para a preservação do direito social à saúde, por exemplo.

Desta forma, por serem semelhantes, o estado de emergência e o estado de calamidade pública acabam se confundindo. A diferença, porém, é simples: enquanto o primeiro se relaciona com à possibilidade iminente de surgirem danos à saúde, à população e aos serviços públicos, no segundo, há a efetiva ocorrência de tais danos, os quais deixam de ser uma hipótese, passando à realidade concreta.

Hoje vivemos o estado de calamidade pública. É neste contexto que passamos a análise dos direitos sociais e sua correlação com a pandemia do Covid-19 e seus reflexos sobre os direitos e a dinâmica de vida das mulheres.

Estamos vivenciando, no contexto do direito constitucional, o chamado Sistema Constitucional das Crises, que conforme preleciona Aricê Moacyr Amaral Santos, é entendido como um conjunto ordenado de normas constitucionais que, informadas pelos princípios da necessidade e da temporariedade, tem por objeto as situações de crise e por finalidade a mantença ou o restabelecimento da normalidade constitucional.

Neste ínterim, as normas os Sistema Constitucional de Crises ordenam e delimitam as providências estritamente necessárias para controlar as graves crises político-institucionais, como as que vivemos hoje com a pandemia. Logo, como bem-dispõe Dirley da Cunha Júnior:

Essas normas traçam os chamados estados de exceção, aqui entendidos como um conjunto de medidas e providências excepcionais que têm por finalidade afastar aquelas situações de crise e restaurar a normalidade, a ordem, a paz social e o equilíbrio constitucional entre as instituições políticas. Em face da excepcionalidade dessas medidas, os estados de exceção, quando decretados, afastam provisoriamente a legalidade constitucional ordinária e instauram, por tempo certo, uma legalidade constitucional extraordinária. (CUNHA JÚNIOR, 2014, p. 741)

Nesse contexto, é importante observar como ficam os direitos sociais, que são entendidos como aqueles que visam garantir aos indivíduos o usufruto de direitos fundamentais em condições de igualdade, para que tenham uma vida digna por meio da proteção e garantia dados pelo Estado Democrático de Direito.

Entretanto, a restrição de direitos fundamentais é algo que deve ser definido com cautela, visto que a Constituição Cidadã de 1988 garantiu a inviolabilidade dos direitos, com destaque na proibição à invasão da privacidade e restrição da liberdade.

Assim, partindo do contexto vivenciado pela pandemia e da análise da obra de Clarice Lispector, encontramos Macabéa, personagem principal de “A Hora da Estrela”, que problematiza a condição feminina estigmatizada enquanto mulher, pobre, trabalhadora e migrante. Surge então o questionamento: como ficam e como estão essas tantas Macabéas nestes tempos de pandemia em relação aos seus direitos fundamentais!?

Na obra, o narrador problematiza uma angústia existencial configurada numa relação social marcada pelas dinâmicas das classes sociais, pela urbanidade e pelo capitalismo. Em resumo, Macabéa é a personificação da mulher brasileira que compõe as classes sociais mais desfavorecidas.

Nesse sentido, o artigo 6º, de nossa Constituição, relaciona um rol de direitos sociais, que são extremamente mitigados em relação à Macabéa. Ela não tem acesso à educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, dentre outros, de forma digna, o que é uma realidade dura e vivida por tantas “Macabéas” em nosso país.

Essa realidade já era vivenciada pelas mulheres que fazem parte desta população carente, e com a pandemia do Covid-19, este quadro que já era alarmante, piorou. Nossa Constituição, também conhecida como Constituição Cidadã, trouxe em seu Título II, os Direitos e Garantias Fundamentais, que como o próprio título aborda, garante a igualdade entre os cidadãos, bem como, os principais direitos para a vida em sociedade, de forma a conferir dignidade à vida humana e proteção dos indivíduos frente a atuação do Estado, sendo este obrigado a manter os Direitos Fundamentais.

É importante observar que a delimitação conceitual dos direitos sociais não é uma tarefa simples, tampouco que comporta reducionismos, como o de traduzi-los singelamente como direitos prestacionais. Devemos fixar que os direitos sociais se integram aos chamados direitos fundamentais.

Porém, numa sociedade tão desigual quanto a nossa, é por vezes difícil, ver o texto constitucional sendo colocado em prática. Afigura-se estreme de dúvidas que o objetivo de promover a adequada qualidade de vida a todos, colocando o ser humano “a salvo” da necessidade, promove uma “fundamentalização” dos direitos sociais, uma vez que não se pode pensar em exercício de liberdades, de preservação da dignidade humana, enfim, de direitos intrínsecos ao ser humano, sem que um “mínimo vital” esteja garantido à própria vida em sociedade.

Nesse contexto, a figura feminina, tem seus direitos fundamentais mitigados. A mulher em busca de consolidar seus direitos e liberdades, acaba por ter uma jornada de trabalho exaustiva, salários muita das vezes inferiores aos dos homens, estando ambos em mesma função.

Também, além do emprego formal, ainda cuida da casa e dos filhos, o que é extenuante. Com a pandemia, este quadro se agravou ainda mais, hoje a casa é sinônimo de trabalho, vida doméstica, cuidado integral de filhos, visto que a escola está dentro de casa, gerando uma grave desestruturação emocional. Este é o quadro repaginado de Macabéa.

Também nossas Macabéas vivem a violência doméstica ao extremo, sendo hoje refém de seu algoz, já que em razão das medidas de saúde necessárias para a contenção do Covid-19, através de um confinamento que garante a proteção da saúde, esta medida acaba gerando riscos relativos a sua condição feminina, o que acarreta quadros significativos de violência doméstica. Além do que se torna nítido também o aumento significativo dos índices de feminicídio no período da pandemia.

Portanto, a legitimação do status feminino, e o entendimento da ausência de direitos sociais subjetivos em sua realidade fica claro também no seguinte trecho da obra:

“(…) um dia viu algo que por um leve instante cobiçou: um livro (…). O título era Humilhados e Ofendidos. Ficou pensativa. Talvez tivesse pela primeira vez se definido numa classe social. Pensou, pensou e pensou! Chegou à conclusão que na verdade ninguém jamais a ofendera, tudo o que acontecia era porque as coisas eram assim mesmo e não havia luta possível, para que lutar? ” (LISPECTOR, 1998, p.37)

Porém, precisamos lutar! Fica assim o questionamento, e o convite para uma leitura que nos leva a pensar sobre os sujeitos sociais femininos e sua relação com os direitos sociais, principalmente no contexto atual.

Ainda, neste mesmo viés, o artigo 5º de nossa Constituição, que abre o Título II, referente aos Direitos e Garantias Fundamentais, é claro ao descrever a igualdade de gênero, inserida no conceito do princípio da igualdade ou isonomia. Para compreender o inciso I e a igualdade de gênero prevista nele, precisamos antes entender o Princípio da Igualdade, ou Princípio da Isonomia.

Para isso, é necessário retomar a leitura do caput do Artigo 5º e compreender o conceito de igualdade definido por ele: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”.

 

Essa igualdade de que trata o caput deve ser entendida tanto como igualdade formal, ou seja, a garantia de que todos os cidadãos e residentes no país devem receber tratamento idêntico perante a lei, quanto como igualdade material, que abraça a ideia de que os indivíduos são diferentes e que essas particularidades devem ser levadas em conta em busca de um balanceamento ideal.

Dessa forma, cabe ao Estado a função de promover o combate às desigualdades, determinando políticas que levem em consideração as especificidades de grupos sociais diferentes, principalmente no momento em que vivemos a pandemia. As desigualdades agora são latentes. O Estado precisa estar em alerta.

Assim, tomando por base a obra Profissões para mulheres e outros artigos, Virginia Wolf, romancista inglesa, precursora do feminismo contemporâneo, reúne em sete ensaios relativos a visão tradicional da mulher como “anjo do lar” e expõe uma realidade atual: as dificuldades da inserção feminina no mundo profissional e intelectual ainda presente em nossa época, e agora, mais do que nunca essa situação é apresentada de forma brutal, afinal os índices de desemprego estão alarmantes.

Hoje, o teletrabalho está sendo a melhor forma de se tentar combater o desemprego, que já corre em massa. Mas, surge com esta realidade um questionamento, como o home office vem atingindo o dia-a-dia das mulheres? O momento exigiu que o trabalho, mesmo sem as formalidades determinadas pelo já muito flexibilizado artigo 75-A da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), se transformasse em teletrabalho.

Portanto, independentemente de serem dadas as devidas condições para tal aos trabalhadores, a despeito de terem equipamentos para o exercício da atividade em teletrabalho, sem considerar a existência de espaço adequado para essa tarefa, além das despesas assumidas por esse regime de trabalho com os equipamentos próprios, o aumento do consumo de luz, internet, enfim – encargos esses que deveriam ser suportados pelos empregadores ou pelo Estado, se servidores públicos – fomos todos conduzidos compulsoriamente ao regime do teletrabalho.

Surge então um outro questionamento: como fica a situação da mulher, que além do trabalho, (agora home office), também tem que organizar afazeres domésticos, muitas vezes com filhos, tornando-se também professora (afinal, a escola também está dentro de casa), fora todo o suporte dado ao marido, quando casada, ou vivendo em união estável.

E mais: como ficará a situação desta mulher se ficar desempregada na pandemia? Como se reinserir no mercado de trabalho!? A mulher será reduzida aos empregos informais!? Afinal, a produção acadêmica das mulheres, no âmbito da pesquisa científica vem despencando, em razão de todo o quadro descrito. Mas e sua produção intelectual, sua produção de trabalho, também não estão da mesma forma sendo atingidas!? Sendo assim, Virginia Woolf assevera que:

“As mulheres durante todos estes séculos serviram de espelhos possuindo o poder mágico e delicioso de refletir uma imagem do homem com o dobro do seu tamanho natural. Sem esse poder, provavelmente, a Terra seria ainda pântano e selva. Qualquer que possa ser sua utilidade em sociedades civilizadas, espelhos são essenciais a toda ação violenta e heroica. Eis porque tanto Mussolini quanto Napoleão insistem tão enfaticamente na inferioridade das mulheres, pois se elas não fossem inferiores, eles parariam de engrandecer-se. E serve para explicar como eles ficam inquietos quando colocados sob a sua crítica, como é impossível para ela dizer-lhes que este livro é ruim, este quadro é fraco, ou o que quer que seja, sem causar mais dor ou despertar mais raiva que um homem que fizesse a mesma crítica. Pois, se ela começa a dizer a verdade, a figura no espelho encolhe, sua aptidão para a vida é diminuída. Como pode ele continuar a passar julgamentos, a civilizar nativos, a fazer leis, escrever livros, arrumar-se todo e discursar em banquetes, a menos que possa ver a si mesmo no café da manhã e no jantar com pelo menos o dobro do tamanho que realmente é? “ (Woolf, 2014, p.54).

Importante para nossa reflexão, que nossa Carta Magna, expõem no título Dos Direitos e Garantias Fundamentais, uma inter-relação perfeita entre igualdade de direitos e os pontos abordados nas análises me questão. Estamos num estado de calamidade, mas os direitos fundamentais não podem ser perquiridos de forma a não se atentar ao princípio da dignidade da pessoa humana, e ao princípio da isonomia.

Desta forma, tanto Clarice quanto Virgínia continuam mais atuais do que nunca. Cada uma em seu tempo percebeu de forma singela as necessidades ímpares da figura feminina no contexto social. Agora, com a pandemia do Covid-19, nós operadores do direito com nossa Carta Republicana em mãos, mais do que nunca, precisamos garantir os direitos fundamentais de tantas Macabéas existentes em nosso pais.

REFERÊNCIAS

 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 18 jun. 2020.

BRASIL. Consolidação das Leis Trabalhistas, de 13 de julho de 2017. Brasília, 2017. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm> Acesso em: 18 jun. 2020.

CUNHA JÚNIOR, Dirley da; NOVELINO, Marcelo. Constituição Federal para Concursos. 6 ed. Salvador: JusPodivm, 2015.

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 10 ed. Salvador: JusPodivm, 2016.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II: complementos e índice. Tradução de Ênio Paulo Giachini; revisão da tradução de Marcia Sá Cavalcante-Schuback. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, pp. 242 e ss.

LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. São Paulo: Rocco, 1998.

SANTOS, Aricê Moacyr Amaral. O Estado de Emergência. São Paulo: Sugestões Literárias, 1981.

WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. Tradução Bia Nunes de Souza. Rio de Janeiro: Tordesilhas, 2014.

WOOLF, Virgínia. Profissões para mulheres e outros artigos feministas. Tradução Denise Bottmann. Porto Alegre, RS: L&PM, 2019.