Psiquê era uma princesa e também tinha duas irmãs. Todas eram encantadoras e bonitas, mas Psiquê era a mais bonita. Era dotada de tamanha beleza e tão rara entre os mortais que até a comparavam à deusa do Amor, Afrodite[2].
Suas duas irmãs encontraram maridos, ao passo que Psiquê continuava solteira. Pois os rapazes a cortejavam, mas tinham receio de casarem com uma mulher de beleza sobrehumana. Cogitavam alguns, que talvez fosse uma vingança de Afrodite? Talvez.
Estando diante da renitente solteirice da Psiquê, seus pais foram então consultar o oráculo de Apolo[3] e perguntaram como, afinal, poderiam encontrar um marido para Psiquê?
A resposta foi terrível pois os pais deveriam vestir Psiquê de noiva e abandoná-la no alto de um rochedo solitário, onde um monstro iria buscá-la.
Coitada de Psiquê! Seria esse monstro o esposo que o destino lhe reservava?
Os pais a contragosto assim procederam, pois estavam convictos que deveriam obedecer a todas as instruções dadas pelo oráculo, então, os pais deixaram Psiquê sozinha no rochedo.
Psiquê ficou desolada com seu belo traje de noiva e, de repente, sentiu um vento[4] suave e levemente perfumado que a ergueu e levitando-a, a levou até um esplêndido palácio todo ornado em ouro e mármore e ladeada de um jardim de relva macia com flores e frutos.
Havia árvores magníficas. Tão exaurida de emoção, Psiquê veio adormecer, embalada pelo canto de pássaros e pelo murmúrio das fontes.
Quando acordou, subitamente, não viu ninguém, porém, logo a sua frente, as portas se abriram sozinhas e vozes desconhecidas lhe convidavam a conhecer a sua nova e suntuosa morada.
Estranhamente, Psiquê deslumbrada não sentia nem um pingo de medo e, percorreu alegre todo o palácio. Seguiu o encantamento.
A noite quando foi se deitar, sentiu a presença a seu lado e, foi então, que uma voz sedutora e agradável lhe informara: – Não tema, sou seu marido. E, quero que sejamos felizes, mas não tente me ver, pois poderá me perder para sempre!
Totalmente seduzida pela voz do misterioso marido Psiquê aceitou os encontros noturnos e lhe prometeu jamais romper com o enigmático pacto. Afinal, nem tão terrível era o monstro…
Certa noite, Psiquê saudosa, pediu ao seu misterioso marido que desejava visitar seus pais e suas irmãs, pois se preocupava com sua família. Além também de lhes dar a boa notícia de que teria formado uma família feliz.
Após sucessivas e lacrimosas súplicas, o marido comovido, consentiu impondo somente uma única condição: que não deveria responder a nenhuma pergunta que lhe fizessem sobre ele.
Achegada de Psiquê trazida pelo vento foi uma festa para a família. Suas irmãs casadas vieram de longe, com seus respectivos maridos e filhos e, ficaram encantadas por encontra-la feliz e satisfeita.
E, quando Psiquê mostrou os lindos presentes que tinha trazido para seus familiares e ainda lhes falou do espetacular palácio mágico e do quão feliz causando enorme inveja em suas irmãs.
Teria sido mais uma manobra de Afrodite?
A verdade é que depois de tantas perguntas pérfidas Psiquê acabou por confessar que jamais vira realmente o marido. E, então suas irmãs se deletaram com seu infortúnio e começaram locupletar afirmando que dever ser uma horrenda criatura ou um ser repugnante.
E, chegaram a tal ponto que a Psiquê se sentiu invadida de dúvida e pavor.
Assim, ao retornar ao palácio e, em sua primeira noite com seu misterioso marido, levantou-se em meio da noite, acendeu um lampião e, então aproximou-se do rosto do esposo adormecido e, viu o mais lindo homem, dotado de beleza ímpar, bem mais do que poderia imaginar. Então, o monstro abominável era simplesmente Eros, o filho de Afrodite.
Psiquê perturbada com a descoberta, cambaleou e sua mão chegou a tremer tanto que uma gota do óleo do lampião caiu justamente no ombro do marido que acordou.
E, em um simples olhar e gesto, logo Eros desapareceu. Enlouquecida de amor e dor, Psiquê pôs-se a procurar Eros por toda parte. Afrodite, sua sogra, com inveja de tanta beleza de Psiquê havia tramado tudo. Não aceitava, pois, que seu belo filho, Eros, se apaixonasse por uma reles mortal.
E, Psiquê em sua desvairada procura chegou ao palácio de Afrodite onde a deusa a prendeu e lhes fez passar por mil tormentos, obrigando-a a cumprir tantas tarefas que eram até comparáveis aos doze trabalhos de Hércules.
Depois de muitas agruras sofridas por ordem de Afrodite, Psiquê desceu aos infernos[5] para trazer um frasco de água rejuvenescedora pertencente à Perséfone.
Enquanto cumpria as árduas tarefas impostas por Afrodite, era ajudada não pelos deuses, mas por elementos da natureza tais como animais, plantas e pedras que lhe davam sábios conselhos para escapar das ciladas da sogra.
Mas, Psiquê novamente não resistiu a curiosidade e bebeu da água mágica pois quem sabe assim reencontraria Eros, seu marido? Então abriu o frasco e só em aspirá-lo, caiu num sono profundo bem semelhante à morte[6].
Eros com coração apertado e que assistia a tudo a distância, subiu ao Olimpo e foi ter com Zeus. Implorou perdão por ter violado as leis e ter se casado com uma mortal. Afirmou que Psiquê já tinha sofrido demais e, então pediu ao senhor dos Deuses que lhe concedesse a imortalidade à esposa tão amada.
Para, enfim, poder-se casar conforme a tradição da ordem divina. Zeus apiedou-se de Eros, comoveu-se com suas súplicas e finalmente perdoou tudo e aceitou acolher Psiquê no Olimpo.
Eros então desceu para buscar Psiquê acordou-a com um beijo apaixonado e levou-a para a morada dos deuses.
Na presença de Zeus, finalmente, Afrodite esqueceu sua ira e, finalmente, aceitou o casamento de seu amado filho Eros. Ao final, tudo acabou bem.
Em grego, a palavra “psiquê” significa alma e a palavra “éros” significa amor. A lenda traduz quando a alma é tocada pelo amor e a difícil aliança humana com o amor que desafia a única condição da verdadeira felicidade.
Tal felicidade, no entanto, tanto desperta medo como inveja. E pode perturbar a ordem do mundo por isso, só se consegue a harmonia através de muita luta e trabalho daí, a justificativa das provações de Psiquê.
As aventuras de Psiquê inspiraram os contos de fada da Bela e a Fera, a Cinderela e a Bela Adormecida. O mito torna-se a forma ilustrativa do desenvolvimento da Alma a nível pessoal e cultural através do seu contato com o Amor tanto na psicanálise como na psicologia analítica.
O que no mito de Eros e Psiquê nos aponta para a noite de núpcias do casal onde a jovem Alma não conhecia ainda a face do Amor. Mas cuja relação a faria trazer em seu ventre a criança que ao nascer seria chamada Prazer.
O escritor latino Apuleio no século II contou essa lenda em seu romance “O asno de outo” ou “As Metamorfoses”[7]. Posteriormente, autores como Boccaccio, Cervantes e Fielding fizeram adaptações livres dessa obra. A edição princeps foi feita em Roma, no ano de 1469.
Podemos evocar, como Freud[8] o fez, o mito. Em seu texto “A Cabeça de Medusa”[9] onde ele relatou sobre o olhar petrificante que tão bem caracteriza a então chamada “visão do horror”.
Em “O Mal-Estar na Civilização”, Freud discorreu sobre a necessidade de se distinguir o amor como paixão imaginária do amor que se constitui como dom ativo, como por exemplo, o amor divino, da Paixão de Cristo e o amor voltado ao próximo.
Em relação ao mito de Eros e Psiquê, aqui podemos inferir uma grande evolução do Amor, antes entregue aos desígnios de sua vaidosa mãe Afrodite, era um ser infantil, imaturo e irresponsável.
Depois, sob os encantos e enamorado pela jovem Psiquê, torna-se maduro, sublime e incondicional. O amor não como idealização, mas como sublimação.
Lacan que se debruçou mais sobre este aspecto da concepção do amor, na relação de antítese sujeito – objeto (amado – amante), acrescentou um terceiro elemento que está para além do objeto de amor: o nada.
Logo, a única particularidade do outro, colocado no lugar de objeto amado, é satisfazer o pedido do sujeito para ser amado. Mas o apaixonado quer ser amado por tudo. Suas súplicas não têm limite. Suas dores também não.
No século em que a paixão é um dos temas preferidos pelos poetas românticos, amar abre as portas do inferno e se transforma em sofrer. É que o amor impõe provações para se atingir a sublimação suprema[10].
O amor que não visa a satisfação como na paixão diz daquele que ama além do objeto amado. A troca é o nada por nada. Lacan denominou esta forma de “o milagre do amor” baseado em sua teoria da dialética do desejo.
A alma nua e exposta sempre evoca o amor. É por isso que é tão fácil amar as crianças e os animais – suas almas raramente estão ocultas. Se a alma de uma pessoa estiver sento encoberta ou protegida da outra de alguma forma, o amor não pode ser evocado.
Dar amor sem que nossa alma não esteja exposta é sempre ameaçador para o outro. Mas quando duas pessoas se encontram sem barreiras, o amor flui automaticamente em ambas as direções. Não é ato de vontade, e sim, fluxo espontâneo. E isso não ocorre por causa do ato de dar ou receber amor, e sim como resultado de revelação mútua.
Referências
Da Fonseca. Fabiano Silva. Eros e Psique: Quando a alma é tocada pelo amor. Disponível em: https://repositorio.uniceub.br/jspui/bitstream/123456789/2695/2/20460497.pdf Acesso em 29.3.2020.
Apuléio, L. (n.d.). O Asno de Ouro. Ediouro.
Azevedo, A. V. (2004). Mito e Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Brandão, J. S. (2008). Mitologia Grega. 17ª ed. Petrópolis: Vozes. v. II.
Bulfinch, Thomas. Mitologia: História viva. São Paulo: Duetto, v. I, 2001.
CAETANO, Eneide. Importância do Mito de Eros e Psiquê para a Psicologia. Disponível em: https://sistecnews.com.br/coluna/51/importancia-do-mito-de-eros-e-psique-para-a-psicologia Acesso em 29.3.2020.
___________________. O FEMININO NA RECONQUISTA DO AMOR FERIDO: Reflexos do Mito de Eros e Psiquê no relacionamento afetivo e na relação analítica, 2016.
Freud, S. (1898/1997). A sexualidade na etiologia das neuroses. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago. v. III. Edição Eletrônica.
Jung, C. G (1934/1995). Considerações gerais sobre a teoria dos complexos. In: A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes. v. VIII.
[1] Um mito foi, a princípio, uma tradição oral que, de forma mais ampla, funciona como um ensinamento passado de pai para filho, por meio das experiências que tiveram ao longo da vida, criando padrões e o caminho existencial da humanidade por meio da dimensão imaginária. Porém, a forma como os mitos chegaram até nós (apenas escritos) fez com que muito de sua função se perdesse no tempo. “Um mito escrito está para um mito ‘em função’, como uma fotografia para uma pessoa viva”.
[2] A lenda conta que Cronos, filho de Gaia, cortou o pênis de seu pai Urano e o arremessou ao mar. Do órgão genital surgiu uma espuma, que fecundou Tálassa, a personificação do mar. Então, a partir daí surgiu a Virgem Afrodite, que flutuou até as margens sobre uma concha de vieira. É a mais bela e mais sensual entre todas as deusas gregas. É a regente do amor e da sexualidade, todos os aspectos da vida íntima das pessoas são regidos por ela. É uma deusa sem pudores sexuais, que gosta de tudo que é belo, fino, requintado. Ela se dá muito bem com os homens, pois possui um magnetismo pessoal que atrai todos os olhares para si, possui charme irresistível. Não busca um casamento e filhos, sua vida tende a ser uma aventura. Ela gosta da conquista e de usar o seu charme e seu corpo ao seu favor. Ela é a deusa que os romanos chamam de Vênus, a Deusa da Beleza e da sensualidade. Misteriosa e exótica, é a deusa da paixão e da compaixão.
[3] Era o oráculo grego mais famoso que se localizava em Parnaso-Delfos. Surgiu quando um pastor, que tinha seus animais mortos por um vapor que saía de uma fenda da montanha de Parnaso, decidiu experimentá-lo. Ao se aproximar, expirou o gás e começou a ter convulsões. Como os moradores da região não entendiam sua fala convulsiva, diziam que era inspiração divina. Sobre este local foi erguido o oráculo. Foi atribuído a vários deuses, mas determinou Apolo como único. Para receber as inspirações divinas, elegeram a sacerdotisa Pitonisa que inalava os vapores e falava palavras que eram interpretadas pelos sacerdotes.
[4] Entregue à sua sorte, sozinha naquele inóspito lugar, foi o momento em que Zéfiro, o Vento, a levou para um jardim. Exausta, entregou-se ao sono. E ao despertar, ao caminhar pelo jardim pôde contemplar a grandiosidade de um palácio e a beleza do lugar no qual se encontrava. Atendida por Vozes que passaram a servi-la, informaram a Psiquê que aquilo tudo a partir deste momento lhe pertencia. Psiquê desfrutou de um banho e pôde dormir. À noite, nas trevas, recebeu a visita daquele que ordenou a Zéfiro que a trouxesse a tal paraíso. A princípio, ficou temerosa por sua virgindade, mas entregou-se aos braços do seu misterioso benfeitor, e foi desposada por ele.
[5] À custa de muito sacrifício, sofrimento e humilhação, a jovem princesa (Psiquê) realiza as tarefas árduas que culminam no contato com o mundo das trevas. Sua trajetória pelas profundezas simboliza luto, dor e lamentação; é um processo que a faz reconhecer suas limitações, e dessa forma, na paciência, fé e perseverança, conquista sua maturidade e uma nova maneira de enxergar o mundo. A grande importância da descida de Psiquê ao submundo é que ela alcançou a esfera psíquica, a experiência do encontro, que simboliza sua individuação* (processo através do qual o ser humano evolui de um estado infantil de identificação para um estado de maior diferenciação, o que implica uma ampliação da consciência).
[6] O desfecho favorável na última tarefa de Psiquê conta com a intervenção de Eros. Dessa forma, Boechat menciona o conto de Eros e Psiquê como metáfora da coniunctio (conjunção) do Eu e do Outro, como ocorre na práxis analítica no que tange à **transferência, possibilitando a transformação da personalidade. Boechat alude que: o processo de individuação só pode ser completo com o diálogo com o outro (ajuda externa). A interação com o outro, que vê o processo de fora, favorece e ajuda a contenção do processo de individuação pela consciência. O indivíduo sozinho cai frequentemente em sono letárgico, isto é, fica adormecido nas projeções dos conteúdos inconscientes e não consegue o confronto discriminativo eficaz. Esse outro do conto pode ser personalizado por relacionamentos significativos na vida de cada um ou evidentemente pela figura do seu próprio analista pessoal.
[7] Metamorfoses (do latim Metamorphoseon libri XI, provavelmente a denominação original) ou O asno de ouro (Asinus aureus, título dado por Santo Agostinho, em De civitate Dei, XVIII, 18) é um romance de Lúcio Apuleio (século II d.C.). É o único romance da literatura latina integralmente preservado e, juntamente com o Satyricon, de Petrônio (parcialmente preservado), constitui o único testemunho do romance antigo em latim. Embora o tema da magia seja central em Metamorfoses, a obra não é citada na Apologia sive pro se de magia, o discurso de defesa do autor, quando processado sob a acusação de prática de magia, em 158. Por isso presume-se que a elaboração do romance seja posterior a essa data. Metamorfoses compõe-se de narrativas das aventuras burlescas e fantásticas de um homem que se vê transformado em asno. Um dos episódios mais conhecidos é o de Amor e Psiquê.
[8] Em seu artigo de 1925 “As Resistências à Psicanálise”, Freud explica que o conceito psicanalítico de energia sexual está mais alinhado com a visão platônica de Eros, como expressa no Banquete, do que com o uso comum da palavra “sexo” como relacionado principalmente à atividade genital. Ele também menciona o filósofo Schopenhauer como uma influência. Ele então enfrenta seus adversários por ignorar esses grandes precursores e por manchar toda a sua teoria do Eros com uma tendência pansexual. Ele finalmente escreve que sua teoria explica naturalmente esse mal-entendido coletivo como uma resistência previsível ao reconhecimento da energia sexual na infância.
[9] O livro reúne a versão de seis lendas gregas: a cabeça de Medusa, a caixa de Pandora, o toque de ouro, o cântaro milagroso, a quimera e as três maçãs de ouro. A narrativa do livro é dinâmica, de linguagem simples, porém agradável.
[10] A psicologia da mulher se baseia no princípio de Eros, o grande aglutinador e afrouxador, enquanto que desde os tempos antigos o princípio dominante atribuído ao homem é o Logos. O conceito de Eros poderia ser expresso em termos modernos como relação psíquica e, o conceito de Logos como interesse objetivo. (in: Carl Jung, “Woman in Europe” (1927), in Collected Works vol. 10, paragraph 255; reprinted in Aspects of the Feminine, Princeton University Press, 1982, p. 65, ISBN 0-7100-9522-8(.