Lockdown
Certa noite, pai e filho conversavam enquanto assistiam ao telejornal noturno, quando o pai então pergunta ao filho advogado: Filho, a constituição federal não garante a todos o direito de se locomover? Como que estão proibindo de sair de casa e querendo impedir a locomoção?
Certamente esta dúvida torna-se comum no período vivido no Brasil, pois ouve-se falar diariamente sobre o fechamento de comércios, controle de acesso de cidadão, barreira sanitária dentre outros meios que tocam na liberdade de locomoção do cidadão.
Para responder a dúvida deste pai e de diversos brasileiros, é necessário pontuar de maneira objetiva a maneira de atuação estatal sob a vigência da Constituição Federal do Brasil desde 1988.
Inicialmente, torna evidente que o questionamento acerca de liberdade de locomoção é natural, pois além de ser garantido pela Constituição federal é considerado direito fundamental de primeira geração e funciona contra arbitrariedade do estado, havendo manutenção imediata no caso de violação de tal direito. Noutro norte, o direito à vida é garantido no mesmo dispositivo constitucional que o direito à liberdade e da mesma maneira é considerado direito fundamental. O estado então é, dentre outros direitos e garantias, comissionado à assegurar o direito à vida ao cidadão, permitindo sua liberdade de locomoção. Entretanto, por vezes o estado, representado por seus governantes , é engodado a suprimir determinado direito para garantir demais direitos.
A Constituição Federal de 1988 aborda um rol de direitos fundamentais, sob a ótica de proporcionar uma vida digna ao cidadão. O estado atua positivamente, garantindo certo direito fundamental ou negativamente, não impedindo direito fundamental ao cidadão. No caso do direito à vida, o estado atua positivamente, garantindo através de diversos direitos que o cidadão tenha vida e a tenha de forma digna.
Em tempo vivido no Brasil, ocorrendo o ápice da pandemia, o gestor público no uso de suas atribuições e competências, se vê obrigado a ponderar direito fundamental e até mesmo suprimir de forma temporal certo direito sob a égide de garantir outro direito mais importante para o momento atual. No caso em tela, o direito à vida é tido como prioridade se comparado ao direito à locomoção, tendo em vista não haver outra solução no momento para garantir o direito à vida senão com isolamento social.
O lockdown, medida adotada em outros países é uma expressão em inglês que significa confinamento ou fechamento total. É considerado método radical imposto por governos para que as pessoas cumpram o período de distanciamento social. É o fechamento de uma região que pode interditar via, proibir deslocamento e viagem não essencial. Podendo o gestor definir de que forma será feito o fechamento. Ou seja, durante o lockdown a circulação fica proibida, podendo, por exemplo, ser liberado a passagem apenas para compra de alimentos, transportar doentes ou realizar serviços de segurança.
Tal medida tende a ser evitada por parte do ente responsável por adota-la justamente pela sua radicalidade concernente ao cerceamento de um direito fundamental e basilar como à liberdade de locomoção. Havendo a privação de locomoção, o impacto em outras áreas da sociedade é natural e imediato, refletindo até mesmo na administração do ente que a adotou, pois ocasiona latente disfunção econômica em toda a sociedade.
Entretanto, quando não há outra maneira menos gravosa de controlar a evolução do vírus, tal medida é adotada por meio do ato de império, possível e viável, que se dá por meio do ato administrativo. De forma pragmática, ato administrativo é a manifestação unilateral de vontade da administração pública que, agindo nesta qualidade, tenha por fim imediato resguardar, adquirir, modificar, extinguir e declarar direitos ou impor obrigações aos administrados ou a si própria. O agente público manifesta sua vontade enquanto administração pública por meio do ato administrativo, com base no interesse público.
Para viabilizar a atuação da administração por meio dos ato administrativo, este goza de atributos que asseguram seus efeitos sem violar direitos. Dentre os atributos, existe a imperatividade do ato administrativo, ou seja o ato de império, ou “atos de autoridade”. É utilizado habitualmente quando a administração necessita impôr de maneira coercitiva sobre os administrados, criando obrigação ou restrição, de forma unilateral e independentemente de sua anuência. Fundamentado no princípio da supremacia do interesse público, sua prática configura manifestação do denominado “poder extroverso” ou “poder de império”.
Em suma, a imperatividade abarca a possibilidade de a administração pública, unilateralmente, criar obrigações para os administrados, ou impor restrições. Decorre do denominado poder extroverso do Estado e representa a prerrogativa que o poder público tem de praticar atos que extravasam sua própria esfera jurídica e adentram a esfera jurídica alheia, alterando-a, independentemente da anuência prévia de qualquer pessoa. É um atributo presente no ato que implica obrigação para o administrado, ou a ele é imposto, devendo ser obedecido, sem necessidade de seu consentimento.
Portanto, a administração pública no uso de suas atribuições e obrigações, embasado na supremacia do interesse público e com a obrigação de garantir direitos fundamentais, pondera tais direitos, objetivando controlar o avanço da pandemia até que seja possível erradica-lá. Entretanto, há um limiar muito tênue no uso do poder extroverso por parte do estado, podendo causar gravíssimo dano no caso de violação do uso deste poder, seja no excesso ou no desvio da finalidade do uso desta prerrogativa.
Cabe portanto, o discernimento constante por parte do administrador no uso destas medidas, do cidadão e demais órgãos e entidades com competência para defender e assegurar qualquer arbítrio no uso destas medidas.