INTRODUÇÃO

A implementação de auditoria por parte das operadoras dos Planos de Saúde sobre o faturamento dos serviços prestados pelos profissionais credenciados/conveniados/contratados, pessoas físicas ou jurídicas, tem como finalidade precípua a adequação dos processos de pagamento conforme o entabulado nos contratos escritos que são ordinariamente firmados entre partes.

Não obstante, a prática revela um verdadeiro desvirtuamento de tal finalidade, chegando ao ponto até mesmo de configurar uma espécie de mecanismo catalizador de inadimplência dos honorários médicos devidos e da remuneração hospitalar confiscada.

Nem mesmo nas vias judicial e administrativa é possível
perceber uma prática expropriatória tão abusiva. Os médicos e serviços são processados, sentenciados, condenados e expropriados em seus proventos sem que haja
qualquer tipo de processo, ao arrepio das disposições
constitucionais (artigo 5º, LXXIV e LV da CF/88).

Até mesmo os prazos decadenciais para rever processos e pagamentos não encontram semelhança em qualquer das disposições previstas no Código Civil sobre o tema. Autorizado o serviço pelos tomadores e realizados  os procedimentos, os honorários e a remuneração são devidos e deverão ser liquidados, sob pena de enriquecimento de uma das partes em detrimento da outra.

PANORAMA ATUAL

MEDIDAS E SOLUÇÕES:

Na atualidade, tornou-se corriqueiro o extrato de pagamento das clínicas, laboratórios e hospitais credenciados vir descontado dos valores referentes à glosa médica. Não raras vezes, sem qualquer justificativa.

Os profissionais auditores, ao glosar os honorários dos colegas médicos e a remuneração devida aos serviços, lançam mão do simplório argumento de que fazem isso para “preservar o equilíbrio financeiro das operadoras”, a quem estão subordinados. Ainda que assim fosse, o suposto equilíbrio de uma das partes está diretamente ligado ao prejuízo da outra, que não recebe a contraprestação pelo serviço executado, em flagrante ilegalidade.

Antes de tudo, é indispensável estabelecer o conceito do que precisamente venha a ser “Glosa Médica”. As glosas médicas são faturamentos não recebidos ou recusados nas organizações de saúde, devido a problemas de comunicação entre clínicas e convênios. As glosas podem ser técnicas, lineares e administrativas, também chamadas de operacionais.

Geralmente as glosas ocorrem quando as informações sobre um atendimento, fornecidas pelo prestador, não batem com o registro no banco de dados do plano de saúde. As operadoras auditam as cobranças recebidas para saber se estão corretas e, com isso, podem recusar a efetuar o pagamento, total ou parcialmente, amparadas em disposições contratuais.

Todavia, o que se vê na realidade é que os convênios têm glosado o faturamento de procedimentos previamente autorizados, ou mesmo têm aplicado glosas lineares  (glosas efetuadas pelas operadoras de maneira ampla e irrestrita, sem justificativa aparente, mesmo que os prestadores tenham atendido a todas as exigências contratuais).

Além disso, as glosas são feitas de maneira recorrente, parametrizada, automática, desprovida de critérios objetivos, e omissas quanto à prestação de informações solicitadas pelos agentes credenciados.

Corroborando o tema, a FEHOESP (Federação dos Hospitais, Clínicas, Casas de Saúde, Laboratórios de Pesquisas e Análises Clínicas e Demais Estabelecimentos de Serviços de Saúde do Estado de São Paulo) divulgou um boletim econômico em março de 2018 que comprova a situação.¹

Foram entrevistadas 36 empresas associadas à federação, distribuídas por atividade: 58,3% eram clínicas especializadas, 19,4% laboratórios de análises e 22% hospitais.
A pesquisa mostrou que 97% dos participantes sofrem com glosas praticadas por planos de saúde e pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que representam, respectivamente, 90% e 10% dos casos.

A Agência Nacional de Saúde Suplementar, por sua vez, realizou no ano de 2017 uma  pesquisa denominada “Pesquisa de contratualização de 2017”, com o enfoque em identificar os problemas no relacionamento entre prestadores e operadoras.²

De acordo com os prestadores de serviço participantes da pesquisa, no que se refere aos motivos mais frequentes de glosa, vê-se que 35,08% dos prestadores de serviço indicaram a alegação de ausência de autorização para realização do serviço/procedimento, 30,89% dos prestadores destacaram a alegação de erro do prestador no preenchimento/envio da documentação e 26,18%  dos prestadores afirmaram a ausência de qualquer justificativa da operadora.

Como dito acima, em uma relação contratual espera-se que as partes tenham objetivos comuns de manutenção contratual, amparadas na boa-fé objetiva e na confiança
recíproca que deverão denotar uma a outra.

As justificativas de glosas, não raras vezes, são meros argumentos amparados em alguma interpretação favorável ao tomador do serviço, que é quem detém a chave do cofre para remunerar os médicos e hospitais prestadores de serviços.

Infere-se, diante dessas informações, que a glosa médica tem sido desvirtuada do seu proposito original por meio de uma atuação desarrazoada dos médicos auditores das Operadoras, ao passo que se tornou um verdadeiro entrave na relação prestador-operadora, além de gerar graves transtornos à higidez econômico-financeira dos estabelecimentos de saúde.

Afinal, segundo a mesma pesquisa conduzida pela ANS, em muitas situações não é possível identificar se a glosa é ou não procedente, sem falar que o tempo e esforço para analisar e justificar o caso muitas vezes inviabiliza o seu recebimento. Em outras palavras, é mais caro justificar a cobrança do que receber o valor propriamente dito.

Ademais, foram observados no âmbito dos processos administrativos analisados pela Diretoria de Desenvolvimento Setorial da Agência Nacional (DIDES/ANS) as principais queixas dos prestadores de serviços no que tange à glosa médica, e que demandam a devida atenção: (i) a obtenção de liminar judicial por beneficiário de plano de saúde, a fim de obrigar prestador de serviço a realizar determinado procedimento de saúde; se após a
prestação do serviço de saúde a medida liminar for cassada, por decisão judicial, a  Operadora acaba por glosar o pagamento devido ao prestador; (ii) substituição pela operadora da aplicação de glosas (superfaturamento/cobranças indevidas), pela figura da “correção de faturamento indevido”, sob a justificativa de que tal situação não configuraria receita e, portanto, não caberia glosar, visto exigir interferência técnica e não financeira; (iii) autorização de procedimento pela operadora no âmbito da Notificação de Investigação Preliminar – NIP sem o devido pagamento quando do faturamento.

GLOSA MÉDICA E A RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL E ÉTICO-PROFISIONAL

Não obstante as glosas médicas representarem um mecanismo contratual de auditagem sobre o faturamento, o seu desvirtuamento ou a sua má utilidade pelos profissionais auditores conduz às vias da responsabilidade ético-profissional e, uma vez consubstanciado o abuso de direito, sujeita tanto a operadora como o auditor responsável à obrigação de reparar os danos comprovadamente causados aos prestadores e/ou aos usuários dos Planos de Saúde.

Cumpre registrar que o exercício da auditoria pelos profissionais da medicina se constitui em uma atividade vinculada, regida pela Resolução CFM nº 1.614/2001, exclusivamente desempenhada por médicos inscritos nos Conselhos Federal e Regional de Medicina, além de estar sujeito à fiscalização do respectivo órgão de classe.

Embora o auditor, em qualquer área de autuação, contribua para a promoção da saúde do usuário, a atividade não pode ser exercida fora dos limites impostos pela regulamentação em vigor, sob pena de não só causar o desequilíbrio da relação médico-operadora, como
também inviabilizar a própria prestação dos serviços de  atenção à saúde, uma vez mais com foco na redução dos custos operacionais.

Em outras palavras. Usar a glosa com desvirtuamento de propósito, além de ser abuso por parte do tomador com a ausência de remuneração devida, pode ainda desaguar
em processos de responsabilidade civil por negativa pura de cobertura assistencial.

Afinal, segundo a mesma pesquisa conduzida pela ANS, em muitas situações não é possível identificar se a glosa é ou não procedente, sem falar que o tempo e esforço para analisar e justificar o caso muitas vezes inviabiliza o seu recebimento. Em outras palavras, é mais caro justificar a cobrança do que receber o valor propriamente dito.

O Conselho Federal de Medicina, através da norma regulamentadora, veda aos auditores qualquer ato contrário à ética profissional quando no desempenho do múnus em favor das operadoras, ao passo que impõe determinadas ordens de conduta. Como exemplo, o auditor deverá comunicar por escrito ao profissional assistente acerca de eventuais impropriedades ou irregularidades na prestação de serviço.

O não cumprimento dos critérios de atuação impostos pela Lei ou pelas normas Regulamentares sujeita o profissional auditor à instauração de processo ético-disciplinar
junto ao Conselho Regional pelo qual se encontra inscrito, na forma da Resolução CFM nº 2.145/2016 (Código de Processo Ético Profissional), podendo sofrer isolada ou  cumulativamente qualquer das sanções previstas no artigo 22 da Lei nº 3.257/1957, senão vejamos:

Art. 22. As penas disciplinares aplicáveis pelos
Conselhos Regionais aos seus membros são
as seguintes:
a) advertência confidencial em aviso reservado;
b) censura confidencial em aviso reservado;
c) censura pública em publicação oficial;
d) suspensão do exercício profissional até 30
(trinta) dias;
e) cassação do exercício profissional, ad referendum do Conselho Federal.

Sem embargo da responsabilidade ético-profissional o auditor também está sujeito à reparação civil pelos eventuais danos advindos de ação ou omissão culposa no decorrer do exercício profissional.

As instâncias ética e civil são autônomas e as respostas, independentes, são aplicadas pelo conselho de ética do respectivo conselho regional a que está inscrito o auditor e pela justiça comum, desaguando essa última em sanção pecuniária.

Como dito alhures, a atividade de auditoria é, em sua essência, uma atividade vinculada aos parâmetros definidos pelas normas do Conselho Federal de Medicina. Justamente por se revestir de formalidade solene, o exercício da auditoria encontra limites expressos. Quando ultrapassados, independente a que título for, incorre o profissional médico em abuso de direito, em autêntica subsunção do artigo 187 do Código Civil. Vejamos:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede  manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Exercer regularmente o ofício da auditagem não defere a esse profissional a possibilidade de desrespeito à legislação em vigor e ao uso abusivo de sua atividade funcional, sobretudo quando vinculado aos tomadores de serviços (operadoras de planos de saúde).

Sendo assim, a avaliação da responsabilização profissional em razão do questionamento das ações do médico auditor ou perito deve preceder a análise dos deveres de
conduta do acusado.

Como cediço, a teor dos artigos 186, 927 e 951, todos do Código Civil, aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito alheio e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito e, portanto, fica obrigado a repará-lo.

Haja vista que a nossa Legislação Consumerista (Lei nº 8.078/1990) preceitua em seu artigo 14, § 4º, que a responsabilidade dos profissionais liberais é apurada mediante a verificação de culpa, a avaliação da responsabilidade jurídica do médico auditor deve,  necessariamente,  levar em conta tais regras de conduta.

Tanto do ponto de vista ético quanto do ponto de vista técnico, os deveres desse profissional não divergem dos deveres do médico assistente, na medida em que não
devem se distanciar da promoção e prevenção da saúde, bem estar e dignidade do paciente.

Sobrevindo danos à saúde do beneficiário/consumidor do plano de saúde por ato culposo, comissivo ou omissivo, do médico auditor no exercício da atividade profissional, além das regras do Código de Defesa do Consumidor, aplica-se também o previsto no artigo 951 do
Código Civil, pela qual tanto o paciente como os seus familiares poderão reclamar judicialmente o ressarcimento pelos prejuízos comprovadamente causados.

De outro giro, as operadoras planos de saúde também devem responder diretamente pela atuação dos seus auditores que importem em abuso de direito e/ou violação dos preceitos éticos e regulamentares da profissão.

A Lei nº 13.003/2014, que inseriu o artigo 17-A na Lei 9.656/98 (Lei de Planos), seguida das Resoluções Normativas ANS nº 363/14, 364/14 e 365/15, avançou no sentido de estabelecer a obrigatoriedade do contrato escrito para formalizar a relação entre operadoras e prestadores.

Outrossim, elencou cláusulas de presença obrigatória, tais como a rotina de auditoria técnica e administrativa, incluindo as hipóteses e prazos para contestação da glosa, e para a resposta da operadora.

A Resolução Normativa ANS 363/14, que dispõe sobre as regras para celebração dos contratos escritos firmados entre as operadoras de planos de assistência à saúde e
os prestadores de serviços de atenção à saúde admite a análise e auditoria das contas pelas operadoras de planos de saúde.

Contudo, o ordenamento jurídico pátrio veda a utilização do recurso da glosa linear para manter o seu fluxo de caixa estável, conforme se denota da leitura da Súmula Normativa nº 16 da ANS, de 12 de abril de 2011, senão vejamos:

“É vedado às operadoras de planos privados de assistência à saúde adotar e/ou utilizar mecanismos de regulação baseados meramente em parâmetros estatísticos de produtividade os quais impliquem inibição à solicitação de exames diagnósticos complementares pelos prestadores de serviços de saúde, sob pena de incorrerem em infração ao artigo 42 da Resolução Normativa – RN Nº 124, de 30 de março de 2006. ”

Não se pode olvidar que glosas recorrentes de um percentual elevado de prestadores, conhecidas como glosas lineares ou parametrizadas de procedimentos que estão descritos no contrato e em situações que o prestador cumpra todas as rotinas administrativas e  técnicas previstas, poderão caracterizar prática irregular e ensejar visita técnica e outras medidas regulatórias por parte da ANS, sem prejuízo de pedido de abertura de processo
ético contra o auditor e ações civis na via judicial.

Poderá haver, ainda, processo ético para cancelamento do registro da operadora junto ao conselho regional e contra o Diretor Técnico, na forma da Resolução CFM 1642/2002, senão vejamos:

Art. 4º – As empresas que descumprirem a presente resolução poderão ter seus registros
cancelados no Conselho Regional de Medicina de sua jurisdição e o fato comunicado ao Serviço de Vigilância Sanitária e à Agência Nacional de Saúde Suplementar, para as providências cabíveis.

Art. 5º – O descumprimento desta resolução também importará em procedimento ético
-profissional contra o diretor técnico da empresa.

No que tange à instauração de glosa linear em razão da incorreção no valor dos honorários médicos, cinge-se que o Conselho Federal de Medicina, através da Resolução 1.673/03, reconheceu a Classificação Brasileira Hierarquizada de Procedimentos Médicos – CBHPM como padrão ético de remuneração dos procedimentos médicos para o Sistema de Saúde Suplementar.

O item 7.2 das Instruções Gerais da CBHPM determina que as interpretações referentes à aplicação da Classificação de Procedimentos serão efetuadas com exclusividade pela Associação Médica Brasileira e as Sociedades Brasileiras de Especialidade.

Portanto, qualquer recusa de pagamento dos honorários médicos faturados deverá observa o padrão de remuneração estabelecido pelo CFM de acordo com a tabela da CBHPM.

Tratando-se de glosa técnica, sobretudo aquelas motivadas na alegação de redundância dos procedimentos recomendado pelo profissional assistente, convêm destacar que não são as operadoras de planos de saúde que devem definir qual procedimento é redundante, mas sim as sociedades médicas de especialidades, junto com a AMB, preservando a autonomia científica da classe médica.

Em suma, o simples cumprimento da legislação não significa, necessariamente, avanço no relacionamento entre operadoras e prestadores.  A harmonização entre estes principais atores do setor só será possível através da evolução da prática regulatória discutida em um ambiente favorável a tais discussões envolvendo as entidades representativas dos prestadores de serviços de atenção à saúde, e coordenado pelas autarquias responsáveis pela fiscalização do setor, tais como a ANS e o CFM.

A instabilidade nas condições de prestação de serviço, na maioria das vezes, acarreta falhas no atendimento ao consumidor de planos de saúde, sendo necessário reduzir as consequências danosas das controvérsias.

Os valores auferidos ou não despendidos pelo tomador de serviços, por desvios nas auditorias, desaguam em prejuízos para o médico assistente, para os prestadores e, em última análise, para o próprio usuário dos serviços.

É de suma importância o acompanhamento da regulação, o trabalho pedagógico sobre o tema, o diálogo entre as partes envolvidas e o estabelecimento de ações, evitando repercussões negativas para os prestadores e para os beneficiários de serviços de atenção à saúde.

 

REFERÊNCIAS

¹ Disponível em: https://www.anahp.com.br/noticias/noticias-do-mercado/glosa-medica-e-impasse-recorrente-em-90-das-relacoes-entre-planos-desaude-e-hospitais
² Disponível em: http://www.ans.gov.br/images/
stories/Particitacao_da_sociedade/2018_catec/nota_
tecnica_18.pdf.