Aliciamento de pacientes na odontologia à luz do Direito

1. INTRODUÇÃO

Não é de hoje que a Odontologia vem sofrendo com a concorrência desleal entre os seus pares. Multiplicam-se as denúncias a respeito de práticas recorrentes de captação ilegal de clientela levada a efeito por Cirurgições-dentistas donos de odontoclínicias, policlínicas, consultórios particulares, entre outros, sobretudo envolvendo interposição de terceiros.

Estes profissionais se valem de prepostos, integrantes da sua equipe, que se passam por verdadeiros cirurgiões-dentistas para fazer abordagem direta a pacientes alheios em clínicas, espaços públicos e até em ambiente hospitalar, além  da entrega de panfletos e mensagens veiculadas em grupos de WhatsApp oferecendo-lhes “atendimento e apoio psicológico gratuitos”.

Como se não bastasse, os atravessadores chegam ao ponto de fazer diagnóstico das vítimas abordadas, recomendando procedimento cirúrgico e encomendando-lhes ao consultório onde trabalham.

Além do exercício ilegal da odontologia por parte dos atravessadores, a instrumentalização de terceiros para agenciamento de clientes com a finalidade meramente comercial traduz em uma prática ilícita, convencionalmente denominada de aliciamente de pacientes.

As entidades representativas da classe – associações, sindicatos, sociedades de especialidade e Conselhos Regionais de Odontologia – tem incansavelmente procurado investigar e punir os infratores à luz da responsabilização ético-disciplinar, além de buscar reunir o arcabouço normativo aplicado ao caso, cujo interesse visa a defesa intransigente das prerrogativas profissionais dos cirurgiões-dentistas, dos métodos científicos praticados dentro da especialidade da Cirurgia Bucomaxilofacial, dos direitos dos consumidores de serviços odontológicos e da ordem econômica, já que esta última é fundada na valorização do trabalho humano, nos termos do art. 170, caput, do Texto Constitucional.

A Lei 13.874/2019, que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, diz expressamente que é direito toda pessoa, natural  ou jurídica, gozar de presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, para os quais as dúvidas de interpretação do direito civil, empresarial, econômico e urbanístico serão resolvidas de forma a preservar a autonomia privada, exceto se houver expressa disposição legal em contrário.

Embora a prática odontológica seja exercida no mister particular do cirurgião-dentista, não se pode descurar dos parâmetros de atuação fixados pela Legislação e as demais normas regulamentares editadas pelos Conselhos Federal e Regional de Odontologia, as quais vinculam a atividade prestada em todo o território nacional.

Nesse mister, diante do iminente interesse público envolvido, convêm tecer breves considerações sobre a prática de aliciamento de pacientes, assim como o enquadramento jurídico para os fins de incidência  na responsabilização civil, ética e criminal dos agentes infratores.

2. RESPONSABILIZAÇÃO ÉTICO-PROFISSIONAL

O Decreto nº 20.931/32, que regula e fiscaliza o exercício da medicina, da odontologia, da medicina veterinária e das profissões de farmacêutico, parteira e enfermeira no Brasil, estabelece em seus artigos 1º e 2º que a atividade da odontologia só será permitida a quem se achar habilitado, e houver título regitrado justo aos Conselhos Federal e Regional de Odontologia. Vejamos:

Art. 1º O exercício da medicina, da odontologia, da medicina veterinária e das profissões de farmacêutico, parteira e enfermeiro, fica sujeito à fiscalização na forma deste decreto.

Art. 2º. Só é permitido o exercício das profissões enumeradas no art. 1º, em qualquer ponto do território nacional, a quem se achar habilitado nelas de acordo com as leis federais e tiver título registado na forma do art. 5º deste decreto.

De sua vez a Lei nº 5.081/1966, que regula o exercício da odontologia no território nacional, assim enuncia que o exercício da Odontologia em todo o território nacional só é permitido ao cirurgião-dentista habilitado por escola ou faculdade oficial reconhecida, após o registro do diploma no Ministério da Educação, repartição sanitária estadual competende e inscrição no Conselho Regional de Odontologia sob cuja jurisdição se achar o local de atividade.

O  Código de Ética Odontológica, por sua vez, é categórico no sentido de reservar a função de diagnóstico, planejamento, e execução de tratamentos EXCLUSIVAMENTE aos cirurgiões-dentistas regularmente inscritos no respectivo Conselho profissional, reputando-se infração ética grave quem assim o exercer sem a devida habilitação. Vejamos:

Art. 5º. Constituem direitos fundamentais dos profissionais inscritos, segundo suas atribuições específicas:

I – diagnosticar, planejar e executar tratamentos, com liberdade de convicção, nos limites de suas atribuições, observados o estado atual da Ciência e sua dignidade profissional;

Art. 13. Constitui infração ética:

I – agenciar, aliciar ou desviar paciente de colega, de

instituição pública ou privada; […]

III – praticar ou permitir que se pratique concorrência

desleal; […]

VIcriticar erro técnico-científico de colega ausente,

salvo por meio de representação ao Conselho Regional;(…)

IX – delegar funções e competências a profissionais não

habilitados e/ou utilizar-se de serviços prestados por

profissionais e/ou empresas não habilitados legalmente ou

não regularmente inscritos no Conselho Regional de sua

jurisdição(….)”

Deve ficar claro que qualquer atividade que implique em usurpação de atividade privativa dos cirurgiões dentistas regularmente habilitado, tais como, diagnosticar ou indicar tratamentos odontológicos para os quais não tem habilitação legal e técnica, configura grave violação às prerrogativas exclusivas do profissional odontólogo, na media em que promove indesejável desarmonia entre os integrantes da classe.

No mesmo sentido, a atuação conjunta do cirurgião-dentista aliado a terceiros com a nítida finalidade de descreditar outros profissionais colegas, bem como, fazer propagandas contendo imagens de “antes e depois”, além de constitui infração ética traduz em clara mercantilização da odontologia, sujeitando os responsáveis nas penalidades do Código de Ética, na medida de sua culpabilidade, conforme preleciona o art. 9º c/c arts. 44 e 45 do mesmo Diploma Deontológico:

Art. 9º. Constituem deveres fundamentais dos inscritos e sua violação caracteriza infração ética: […]

XII – Propugnar pela harmonia na classe;

XIII – abster-se da prática de atos que impliquem

mercantilização da Odontologia ou sua má

conceituação […]

Art. 44. Constitui Infração ética:

I- Fazer publicidade e propaganda enganosa, abusiva,

inclusive com expressões ou imagens de antes e depois,

com preços, serviços gratuitos, modalidades de

pagamento, ou outras formas que impliquem a

comercialização da Odontologia ou contrarie o disposto

neste Código; […]

Art. 45. Pela publicidade e propaganda em desacordo com as normas estabelecidas neste Código respondem solidariamente os proprietários, responsável técnico e demais profissionais que tenham concorrido na infração, na medida de sua culpabilidade.

E ainda, diz o art. 7º, alínea “a” da Lei nº 5.081/66:

Art. 7º. É vedado ao cirurgião-dentista:

a) expor em público trabalhos odontológicos e usar de artifícios de propaganda para granjear clientela;(…)

Nos termos brevemente explicitados, o profissional que ao arrepio de todos os preceitos deontológicos e legais que regulamenta o exercício da odontologia, utilizar-se de interposta pessoa, sem a devida habilitação legal, para agenciar pacientes ao seu consultório com a finalidade exclusivamente comercial, além de cometer ato ilícito, conforme será apurado a seguir, incide em infração ética-profissional, sujeito às penalidades previstas no Código de Ética, Art. 51, que diz:

Art. 51. Os preceitos deste Código são de observância obrigatória e sua violação sujeitará o infrator e quem, de qualquer modo, com ele concorrer para a infração, ainda que de forma indireta ou omissa, às seguintes penas previstas no artigo 18 da Lei nº. 4.324, de 14 de abril de 1964:

I – advertência confidencial, em aviso reservado;

II – censura confidencial, em aviso reservado

III – censura pública, em publicação oficial;

IV – suspensão do exercício profissional até 30 (trinta) dias;

V – cassação do exercício profissional ad referendum do Conselho Federal.

3. RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL

A atuação conjunta de atravessadores e cirurgiões dentistas que, ao promoverem a desarmonia da classe com a captação ilegal de clientela e a consequente mercantilização da odontologia, traduz-se em verdadeiro ato lesivo à dignidade e à livre concorrência de toda a coletividade de cirurgiões dentistas, razão pela qual é evidente o dano moral suportado por esta coletividade.

Assim sendo, uma vez comprovado os elementos constitutivos da responsabilidade civil, isto é, ação ou omissão culposa, dano experimentado pela vítima, e nexo de causalidade entre a conduta e o dano, passa a ser cabível a justa e devida reparação civil.

Cinge-se que os interesses sociais e econômicos da categoria dos cirurgiões-dentistas do Estado de Pernambuco são definitivamente tutelados pela Lei nº 7.347/1985 que rege a Ação Civil Pública, na qualidade de direitos coletivos fundamentais (Art. 1º, inciso IV).

O dano moral, por sua vez, é concebido na medida em que houver ofensa a valores coletivos, lesão a sentimentos da coletividade que causam desapreço, além de afetá-la negativamente pela perda de valores essenciais.

O Superior Tribunal de Justiça modificou o seu entendimento anterior, como se constata entre outros, no REsp 1.057.274, cuja ementa coloca em destaque os seguintes preceitos:

        1. O dano moral coletivo, assim entendido o que é transindividual e atinge uma classe específica ou não de pessoas, é passível de comprovação pela presença de prejuízo à imagem e à moral coletiva dos indivíduos enquanto síntese das individualidades percebidas como segmento, derivado de uma mesma relação jurídica base. […]
        2. O dano extrapatrimonial coletivo prescinde de comprovação de dor, de sofrimento e de abalo psicológico, suscetíveis de apreciação na esfera do indivíduo, mas inaplicável aos interesses difusos e coletivos. (STJ, 2ª Turma, REsp 1.057.274, Rel. Des. Eliana Calmon, Dje 26/02/2010)

Além da posição doutrinária e jurisprudencial, o próprio microssistema dos direitos coletivos traz em si, tanto na Lei nº 7.347/85 quanto no Código de Defesa do consumidor, cuja aplicação é subsidiária ao caso em apreço, e a sua matéria  é de ordem pública, a possibilidade da coletividade suportar danos de natureza moral. Veja-se o que diz o art. 6º do CDC:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

(…)

VI – a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos

Logo, a conduta do agente que se passa por cirurgião-dentista e fornece qualquer espécie atendimento ao público em geral configura, por si só, ato ilícito e atenta não só contra os direitos socioeconômicos da categoria profissional dos cirurgiões-dentistas, como também aos consumidores diretos e indiretos (bystander).

Para todos os efeitos da responsabilidade civil, portanto, a conduta culposa consiste basicamente no exercício ilegal da odontologia de modo consciente por quem não possui a habilitação legal.

Da mesma forma aquele profissional devidamente habilitado e inscrito no CRO de seu jurisdição, que permite que haja a indicação de seu nome por terceiro interveniente, de modo a  captar e/ou desviar clientes de outros cirurgiões, também incide em ato ilícito, nos termos dos artigos 186, 187, 927, todos do Código Civil, posto que além de causar dano à categoria, expõe o consumidor vulnerável a grave risco social.

Por fim o dano experimentado pela vítima também é iminente, uma vez que a concorrência desleal frusta a honra subjetiva dos cirurgiões dentistas que anda regular com as suas obrigações, trazendo-lhes sentimentos de impotência, humilhação, insatisfação e constrangimento. Revela-se, portanto, um comportamento altamente predatório, ilegal e abusivo.

Sendo certo que aqueles que se utilizam de mecanismos ilegais para a captação de clientela costuma desacreditar a atuação de outros cirurgiões dentistas a responsabilização civil tanto individual como coletiva deduzida em Juízo tem como escopo proteger e promover o adequado exercício da Odontologia, ao passo que defende as prerrogativas profissionais dos cirurgiões-dentistas e, principalmente, além de promover, reflexamente, a proteção dos direitos dos consumidores de serviços e produtos relacionados à saúde bucal.

 

4. RESPONSABILIZAÇÃO CRIMINAL

O Código Penal Brasileiro em seu artigo 282 define o tipo penal do Exercício ilegal da Medicina, Arte Dentária ou Farmecêutica, com pena de detenção de seis meses as dois anos e multa, caso praticado com o finalidade de obter lucro, senão vejamos:

Art. 282. Exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem a autorização legal ou excedendo-lhe os limites:

Pena – detenção, de seis meses a dois anos.

Parágrafo único. Se o crime é praticado com o fim de lucro, aplica-se também multa.

Dentre as atividades denunciadas alhures, incluem-se visitação a pacientes alheios por pessoa não autorizada com o intuito de prestar “atendimento e apoio psicológico”, identificação de pacientes com problemas odontológicos seguido de recomendação de cirurgia de natureza não ambulatorial.

Logo, tal conduta praticada se subsume ipsis litteris ao crime de Exercício Ilegal da Medicina, Arte Dentária ou Farmacêutica, tipificado no art. 282 do Código Penal Brasileiro, sujeitando os infratores à pene de detenção de seis meses a dois anos, cumulada com aplicação de multa.