VIOLÊNCIA E VÍTIMAS DA SOCIEDADE

O termo “vítimas da sociedade” associado à violência, muito usado em discursos, os quais não me adentrarei no mérito, certamente já ouvido por muitos, tem causado indignações . Outro dia mesmo, ouvindo uma palestra, onde este termo foi mencionado, causou certa indignação a uma pessoa que estava ao meu lado, e logo esta me perguntou se eu concordava com o que fora dito, sobre serem “vítimas da sociedade” aqueles que praticam roubos e outros crimes conexos, e minha resposta para aumentar sua indignação foi que sim, porém, com um olhar diferente do entendimento predominante, e é por este ângulo que irei expor aqui.

É justificável a indignação de muitos, pois na maioria das vezes, o termo é mencionado em defesa de pessoas que agiram à margem da lei e causaram algum mal a outrem, e as palavras usadas para demonstrar a indignação parte do pressuposto que o indivíduo indignado não é culpado pela mazela do outro uma vez que este também teve um passado difícil, e não se desvirtuou.

A aceitação do termo “vítimas da sociedade” de forma mais abrangente é de salutar importância para a sua compreensão. É preciso o reconhecimento de uma realidade para que esta possa ser transformada. Essa “forma mais abrangente” aqui proposta é que o termo seja visto de forma pura, sem ideologismo, assim considerados vítimas, todos aqueles que sofrem o dano e ou são prejudicados na sociedade, seja por ação ou omissão. Esse aspecto é importante, pois assim observado, haverá autor e vítima dos dois lados. Ora, Se somos autores e vítimas ao mesmo tempo, não existe então dois lados, há apenas um, a sociedade com suas vítimas.

É importante observar que “o termo sociedade provém do termo em latim “societas” que expressa o mesmo sentido de uma associação amistosa com outros indivíduos de um mesmo conjunto de seres”. Assim se há uma associação, todos devem ter direitos iguais, direitos estes dispostos na constituição no artigo 5º caput e incisos.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes. […] (constituição federal 1988).

Se atentarmos à lei, os direitos iguais já estão garantidos, porem a garantia contratual escrita, só não basta (Constituição/contrato social), é preciso que esta seja eficaz, ou seja, que produza os efeitos esperados. O nosso contrato social  expresso na Constituição Federal de 1988, tal e qual deve ser observado como um todo.

A garantia do direito passa necessariamente pela construção do próprio direito, de tal forma, não se deve interpretar, a exemplo o direito à propriedade, como o simples direito de aquisição e manutenção dessa propriedade, más como o direito de ter condições de adquirir a propriedade, o direito de ter direitos. Nesse sentido é importante a observação do artigo 3º da Constituição do Brasil de 1988.

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Como fora mencionado, sobre não haver dois lados mas apenas um, a sociedade, é um ponto para se refletir, pois dentro da sociedade pode se perceber a existência de uma certa divisão, entre aqueles que sofrem uma “violência passiva” e aqueles que sofrem uma “violência ativa”. Esta divisão é o ponto central dessa discussão, onde se observa que a sociedade vive em um círculo vicioso, onde uma pequena parte menos esclarecida e com poucas perspectivas (que de modo figurativo, vivem na “escuridão”) se vê no direito de violentar a outra parte detentora de conhecimento  (que de modo figurativo, é “iluminada”) , más, que se exime do dever de iluminar o caminho daqueles que vivem na escuridão e a violentam, e assim nada fazem, para que se quebre o paradigma ora estabelecido.

Há de certa forma um desvio de entendimento quando a vítima da “violência ativa”, aquela que sofre o roubo, o assalto, a perda de um ente querido, se defende ao dizer que não é culpada pelas mazelas daquele que a violentou, simplesmente pelo fato de ter melhores condições financeiras, e neste aspecto de fato não o é, pois ter melhores condições financeiras não pode ser considerado violência a outros menos favorecidos.

Talvez eu seja presunçoso em afirmar, más é preciso refletir que dividir a sociedade em ricos e pobres, e culpar  uns pelas mazelas dos outros pela posição econômica que ocupam é grande um “erro”. É preciso repensar a sociedade como  formada por pessoas iluminadas ou esclarecidas e não iluminadas ou não esclarecidas. por óbvio, que se deve considerar, que os níveis de conhecimento são variáveis, não havendo essa taxatividade aqui expressa de iluminados e não iluminados, pois essa forma de me expressar, tem apenas o condão de melhor entendimento.

Com o olhar voltado às expectativas sociais dos menos favorecidos, conseguiremos entender que não é a riqueza que diretamente irá violentar a pobreza, e sim o conhecimento, não aquele doutrinário ou proveniente de uma grade escolar em moldes ultrapassados, más o conhecimento funcional da sociedade, com perspectivas, planos e metas alcançáveis.

Destarte, negar àqueles que vivem na escuridão a “luz”, será então a violência praticada pelos iluminados, é nesse aspecto que se faz necessário que a parte mais esclarecida que é detentora desta luz (denominada de conhecimento), e formadora de opinião, se manifeste por aqueles que não detêm este poder, para que haja a construção de uma sociedade mais justa.

Todavia, o que se percebe,  é que se tem uma situação de violência ativa, onde há um alto nível de criminalidade, onde estabeleceu-se o paradigma que seus autores são vítimas da sociedade, e onde na maioria das vezes quando isto é dito, logo é rebatido por pessoas que ocupam uma posição social mais confortável e se isentam de tal responsabilidade, talvez por ausência de conhecimento ou de compreensão da existência da violência passiva, que não é criminalizada (salvo omissão praticada pelo poder público ou por aquele tem o dever de agir),  pois esta não lhe atinge.

Assim, a sociedade “iluminada”, ao se sentir indignada, por compreender apenas a “violência ativa”, lhes assiste a razão, pois à este tipo de violência, são as verdadeiras vítimas. Todavia, o posicionamento omisso da sociedade “iluminada”, ainda que não seja taxado de crime, não deixa de ser uma forma de violência praticada contra aqueles que vivem na escuridão, negando lhes o direito de inclusão social.

A solução do problema criminalidade, não pode ser atribuída tão somente à gestão pública. A parte da sociedade mais consciente, detentora do conhecimento e do poder de manifestação, não deve cruzar os braços e ficar esperando de seus gestores soluções milagrosas, mas sim, deve se conscientizar do seu poder-dever de se  manifestar a favor dos menos favorecidos, na busca dos direitos inclusivos destes, a fim de construir uma sociedade mais justa e solidária.

É importante ressaltar que, uma sociedade bem organizada e justa é benéfica a todos, e reclamar de um sistema, o qual não nos esforçamos a mudar, e ou esperarmos pela mudança da parte incapaz, ainda que essa incapacidade seja relativa, é no mínimo sermos irracionais e ou injustos. Assim, ainda que nos doa, somos vítimas da nossa própria omissão.