OBRA QUE (AINDA) NÃO EXISTE É OBRA?
Que sempre houve polêmicas na história da arte, a gente sabe. Sobretudo na arte contemporânea: do “mictório” de Duchamps, aos “relógios derretidos” de Dalí, é possível encher listas e mais listas de exemplos, sem qualquer pretensão de ser exaustivo. Mas… e quando a obra só existe… na cabeça do autor? Será que ela é obra, mesmo? E será que ela pode ser protegida pelo direito?
Recentemente, o escultor italiano Salvatore Garau vendeu seu mais recente trabalho, a obra “Io sono” (“Eu sou”, em tradução livre) por US$ 18 mil. Detalhe: a “obra de arte” ainda não foi materializada. Ela só existe na imaginação de Garau, que afirma ter criado “uma escultura que não tem forma física”, feita de “ar e de espírito”.
A “polêmica” da obra pela não-obra não é recente: na década de 1960, o artista plástico francês Yves Klein “vendia” espaços vazios, em troca de ouro, para que os compradores tivessem a “experiência” do “nada”. A diferença de Klein para Garau reside no fato de que, para este, “há” um trabalho “tão real quanto qualquer objeto que se possa tocar”, vindo, inclusive, com certificado de autenticidade.
A lei de direitos autoriais brasileira (9.610/98) não conceitua obra, mas traz toda uma principiologia, ao longo das suas centenas de artigos, sobre a proteção jurídica dos produtos do espírito. no entanto, o disposto no art. 7º, que diz:
Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como:
(…)
VIII – as obras de desenho, pintura, gravura, escultura, litografia e arte cinética;
(…)
Não nos esqueçamos, aliás, do patromônio imaterial. É indubitável que certas expressões artísticas são, de fato, intangíveis e que têm sua projeção para o futuro, para acontecimento em certos períodos específicos no tempo e no espaço, o que, dentro de um exercício de reflexão, tão somente, poderíamos imaginar: se fosse no Brasil, a “obra” de Garau encontraria guarida em nossa legislação?
É difícil afirmar o que quer que seja no campo da arte. Quiçá da contemporânea! Em um mercado sacudido pelas NFTs (tokens não fungíveis, como prova de autenticidade de uma crescente “arte digital”), com crescente importância do intangível, uma obra como “Io sono” desafia não só o nosso entendimento do que é arte mas de como o direito pode salvaguardar as novas formas de expressão artística, sejam elas materiais, imateriais, reais e, agora, irreais, como a de Garau, cujos desdobramentos, não só no mundo artístico, mas, também, jurídico, ainda estão por vir.