ICMS declarado e não pago

Em dezembro de 2019 o STF [1] liberou uma decisão que vem causando muita dor de cabeça nos contribuintes de ICMS que possuem valores em aberto perante o fisco, por concluir que passa a configurar delito contra a ordem tributária [2] o não pagamento de ICMS declarado pelo contribuinte, destaca-se, mediante conduta contumaz e com dolo de apropriação, e cujo ônus tenha sido repassado ao consumidor final.

O Relator, Ministro Luis Roberto Barroso, para fins de definição preliminar do conceito de “devedor contumaz”, afirmou que a decisão não afeta “quem deixou de pagar o ICMS eventualmente num momento de dificuldade, ou pulou um mês, dois meses, até três meses”. Entendeu que, afeta sim, “o devedor contumaz, que não paga quase como uma estratégia empresarial, que lhe dá uma vantagem competitiva que permite que ele venda mais barato do que os outros, induzindo os outros à mesma estratégia criminosa”.

A parte final do exposto pelo Ministro deixa claro que a conduta dolosa para com terceiros se refere a inobservância de uma competitividade leal, no entanto, não delimita a atuação do devedor frente a necessidade de deixar de pagar o imposto “num momento de dificuldade” e também não trata do critério temporal relacionado a inadimplência.

Primeiras impressões e necessidade de regulamentação

Fundamental, nesse primeiro momento, consolidar o conceito de “devedor contumaz”. Se o inadimplemento do ICMS pelo período de até três meses não deve ser considerado crime, conclui-se que a conduta criminosa restaria tipificada no quarto mês? Tal premissa literal não parece razoável e merece atenção regulatória.

Segundo ponto refere-se a presunção de que o contribuinte que destaca o ICMS próprio na Nota Fiscal e deixa de recolhê-lo aos cofres públicos está incorrendo em apropriação indébita, posto que a norma do tipo penal [3], define como conduta criminosa “(…) deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo (…)”.

O STJ já definiu em agosto de 2018 [4], que a “interpretação consentânea com a dogmática penal do termo “descontado” é a de que ele se refere aos tributos diretos quando há responsabilidade tributária por substituição, enquanto o termo “cobrado” deve ser compreendido nas relações tributárias havidas com tributos indiretos (incidentes sobre o consumo).

O Superior Tribunal encerrou esclarecendo que “não possui relevância o fato de o ICMS ser próprio ou por substituição, porquanto, em qualquer hipótese, não haverá ônus financeiro para o contribuinte de direito”.

Tal detalhamento também merece atenção regulamentar no sentido de esclarecer, uma vez distintos os responsáveis pelo recolhimento efetivo do ICMS – a exemplo do instituto da substituição tributária.

Um outro ponto e não menos importante refere-se à retroatividade do julgado quando colocado frente a existência ou não de inscrição do débito em dívida ativa – visto que a norma penal apenas estabelece como elemento do tipo a “ausência do recolhimento”.

Já existem alguns Projetos de Lei que pretendem regulamentar alguns dos itens citados acima [5], mas sem previsão de análise.

A Recuperação Judicial

A despeito da polêmica necessidade de regulamentação da tese firmada pelo STF, o fato consolidado é que faz parte do tipo penal do inciso II, do art. 2º da Lei 8.137, o não recolhimento de ICMS declarado – quando caracterizada conduta contumaz e o dolo de apropriação do devedor.

Podemos visualizar, portanto, um cenário delicado para as empresas que pretendem aderir ao instituto da Recuperação Judicial, uma vez que essas – que visualizam na Recuperação Judicial uma chance de manter sua força produtiva – por diversas vezes veem-se obrigadas a se tornar devedoras de fornecedores, de empregados, de instituições de crédito e, quase sempre, do fisco.

Nesse cenário, importante relembrar que a Lei de Falência [6] tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, permitindo a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, e uma vez ajuizado o pedido há dispensa de certidão negativa, determinando a apresentação desta somente após a apresentação e aprovação do respectivo Plano.

Estamos tratando aqui, desse modo, de uma empresa que está em débito não só perante fornecedores, instituições financeiras, talvez empregados, mas também frente ao fisco e – com quase toda certeza – por um período que supera 3 meses e – certamente – sem restar presente o intuito doloso de apropriação ou quebra de concorrência.

Existem julgados dos Tribunais Regionais exatamente nesse sentido, entendendo que é necessário que haja comprovação do intuito doloso. No acórdão do TRF da 3ª Região [7] houve a absolvição dos sócios de uma empresa por entender o juízo que a conduta é inexigível. Mantendo a coerência, em outro julgado o mesmo Tribunal Regional [8] entendeu pela condenação dos sócios, em virtude da presença de indícios de materialidade e autoria do delito.

Conclusão

Translúcido que a legislação prevê um mecanismo destinado a auxiliar empresas que enfrentam dificuldades financeiras: a recuperação judicial, que teria permitido a empresa equacionar suas dificuldades de caixa dentro da lei, ganhando prazo para o pagamento de seus credores e, dessa forma, ter novo fôlego para saldar seus deveres tributários.

Entendemos, portanto, que é sobre a generalização do não pagamento de tributo enquanto tipo penal delituoso que devemos nos debruçar para evitar maiores prejuízos ao contribuinte, posto que aparentemente tal medida penal veio apenas coagir os devedores (estaduais) ao pagamento dos valores em aberto perante a administração pública.

A Recuperação Judicial pode e deve ser utilizada como meio legítimo do devedor demonstrar ao fisco a sua boa-fé, a ausência de dolo e, portanto, o não preenchimento dos elementos do tipo penal do inciso II do art. 2º da Lei 8.137.

Deve ser considerada – como hoje é – um instrumento de soerguimento empresarial visando a manutenção da força produtiva, dos empregos e por fim, colaborando com o restabelecimento e manutenção do setor econômico a que pertence.

Sem esgotar o tema, importante estudar a Recuperação Judicial como uma das hipóteses de exclusão da culpabilidade nos casos de acusação de crime de apropriação indébita.

 

[1] STF. RHC 163.334.

[2] Art. 1º e art. 2º da Lei 8.137.

[3] Inciso II do art. 2º da Lei 8.137.

[4] STJ. HC: 399.109.

[5] PL 6520/2019 e PL 5903/2019.

[6] Lei 11.101/2005.

[7] Processo nº 0017058-17.2006.4.01.3500/GO.

[8] Processo nº 2007.61.02.015516-1/SP