O Trabalho e o Direito Pós-Pandemia

Esta semana li um excelente texto de autoria do Ministro Luís Roberto Barroso – a quem, frequentemente, criticamos por algumas de suas posições. Pessoalidades à parte, o texto promove importes reflexões de toda sorte, mas algumas me incentivaram a realizar breve paralelo com o que vejo hoje remontado no cenário social do Direito do Trabalho, em específico.

Não há como se entender o Direito do Trabalho sem nos entender enquanto sociedade, isso é óbvio. Um país que não entende como funciona a classe trabalhadora terá constante dificuldade em definir o que é melhor para ela. Um país que não entende os desafios de manter uma empresa aberta e gerando lucro, também não o sabe. Mas este não é exatamente o ponto – e também não é nenhuma novidade.

Barroso inicia o texto já destacando “o-que-não-quer-ser-dito”: caminhamos cegamente para um período de recessão inevitável, que nos atingirá justamente porque já vimos de anos de uma recessão doméstica. A pandemia nos atingirá com força, e isso é preocupante especialmente porque somos um país que não possui um histórico de levantar de batalhas perdidas e se reerguer com avidez. Pelo contrário, todas as nossas (muitas) batalhas deixaram, entre mortos e feridos, um rastro de escoriações históricas que formam o aglomerado de injustiças que vergonhosamente nos representa. Muitos são os exemplos, que vêm desde a época colonial, até os mais recentes governos pós ditadura e seus diversos escândalos sociais e econômicos.

Estamos acostumados com nossa identidade quase pitoresca de sofrimento. Essa é uma triste constatação. Aceitamos que o pior acontecerá, porque “é assim que é” o Brasil, é disso que somos feitos. Todas as tentativas de mudança de nossa composição resultaram, até hoje, em pequenos avanços ou em regressões terríveis. Para um país com uma democracia estável há mais de 30 anos, é de espantar a quantidade de escândalos com a qual temos que conviver quase que diariamente. Temos o costume de afirmar que somos brasileiros para o resto do mundo quase como um pedido de desculpas pela nossa bagunça interna – bagunça esta que é muito bem-vinda em períodos como o do carnaval, por exemplo, durante o qual somos brevemente anestesiados de pensar sobre o dia de amanhã.

Por que toda esta reflexão é importante para o ramo trabalhista? Barroso afirma que acredita ser possível sairmos do que chama do “desastre humanitário” do COVID-19 mais ricos como cidadãos, espiritualmente. Como? Explica em seguida, tirando das mangas as palavras-chave do texto: “integridade, solidariedade, igualdade, competência, educação, ciência e tecnologia”.

Acredito, sim, que esta é a fórmula mágica do sucesso. A base, a meu ver, é a educação – ela carrega todas as demais. Temos uma classe trabalhadora composta, em sua maioria, por pessoas cuja educação de base é precária, quando existente. É também uma classe que está acostumada a ter suas vontades e opiniões desconsideradas, frente às decisões tomadas por pessoas que, em regra, nunca fizeram parte do grupo. Esta não é uma luta do bem contra o mal, contudo.

Nossa classe empresária é também carente. Carente de uma legislação forte, de julgamentos isentos nos Tribunais, da diminuição de uma carga excessiva de impostos e multas, toda uma junção de fatores que torna empreender no Brasil um verdadeiro ato de coragem. É uma classe também vítima da educação deficiente, não apenas porque ela mesma não teve, em sua maioria, instrução de base, de forma didática, mas também porque lida com empregados que, muitas vezes, vão trabalhar com a inocente mentalidade de apenas sobreviver até o dia seguinte. Isso porque somos um país em que o verdadeiro desafio econômico e social vivido pela esmagadora parte da população é ascender de classe, conferindo a si mesmo e à sua família uma realidade diferente para as próximas gerações.

O Ministro pontua, de modo preciso, que nossa maior dificuldade é superar a pobreza extrema e a desigualdade injusta, que faz com que vivamos num contexto em que 1% dos mais ricos possuam metade de toda a riqueza dos demais. Esta é uma situação que conduz consigo diversos outros problemas, tais como o déficit habitacional, a ausência de saneamento básico, a inadequação dos domicílios, o severo déficit educacional, entre outras mazelas diariamente expostas nos noticiários.

Feita toda esta digressão, é seguro dizer que não temos hoje uma legislação que nos abarca enquanto sociedade. O Direito segue o social, mas desconsidera por completo as nuances em que estamos inseridos. Continuamos encontrando soluções de papel, para pessoas de carne e osso que não têm condições de aguardar o desproporcionalmente extenso trâmite processual, porque precisam ter o que comer hoje.

E esta é uma realidade que tende a se agravar no período pós-pandemia. Os prazos processuais estão suspensos, enquanto o governo lança soluções-labirinto, com saídas que apenas podem ser desvendadas com a ajuda de advogados (e olha lá!). A incerteza é imensa. De um lado, empresas não sabem como vão honrar os pagamentos de seus funcionários ao final do mês. De outro, trabalhadores dormem e acordam com a insegurança de não saber se estarão empregados na semana seguinte.

Afora todo este cenário do caos, o STF vota hoje (17/04/2020) a ADIn 6363, que, em termos leigos, discute se os empregados poderão acordar, sem qualquer assistência, as alterações de seu próprio contrato de trabalho diretamente com seus patrões – sem auxílio do sindicato da categoria, que deverá ser apenas avisado posteriormente.

Qualquer seja a decisão alcançada hoje, perdemos todos, enquanto sociedade. O que está sendo votado, o âmago real da questão, é se os nossos trabalhadores possuem eficiência e instrumentação técnica e cognitiva para discutir e negociar seu próprio contrato, ou seja, seu próprio sustento, sua própria realidade. Isso é educação de base. Isso é uma solução paliativa para não admitirmos que falhamos todos, quando colocamos o futuro de tantos brasileiros nas mãos de uma dúzia de pessoas que, embora letrados, jamais enfrentarão a realidade da angústia de ter um auxílio emergencial pendente de aprovação.

Ainda assim, prefiro as palavras de Barroso, mesmo que elas se restrinjam às palavras desse texto. Prefiro o otimismo de acreditar que a democracia não tem espaço para o atraso, contrariando todas as estatísticas anteriores, e que, no período pós-pandemia, temos em nossas mãos uma oportunidade de construirmos um “novo normal”. Quem sabe esta nova ferida, exposta em cadeia nacional no julgamento de hoje, não nos incomode no estômago o suficiente para que pensemos, juntos: passada a pandemia, o que queremos ser?

Referência

https://migalhas.com.br/quentes/324403/ministro-barroso-e-se-em-vez-de-voltarmos-ao-normal-fizermos-diferente