Estado Digital

Não é de hoje que se tem ouvido falar em “inclusão digital”, “accountability” e “eficiência na gestão pública”. Termos como esses têm ganhado espaço no cenário nacional, ora como objeto de debates complexos, ora como mecanismos discursivos utilizados para chamar a atenção de cidadãos mais desavisados e apreciadores de uma boa retórica. Fato é que o assunto tem ganhado cada vez mais destaque – ainda mais em tempos de pandemia, onde o mundo digital tem se mostrado muito mais que uma alternativa de trabalho ou prestação de serviços – e, para que consigamos refletir um pouco mais em suas implicações, faz-se necessário traçar algumas premissas iniciais.

Pois bem.

A priori, o que seria um governo digital? A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) sustenta que governo digital (ou governo eletrônico ou e-Government ou e-Gov) consiste na utilização de ferramentas tecnológicas pelo Estado com o objetivo de melhorar sua gestão. Aí é que surge a noção de “accountability”, que reflete um modelo administrativo gerencial, cujo foco é a transparência e a prestação de serviços de qualidade para o cidadão.

Mas como isso se aplica na prática? A despeito de parecer um questionamento simplório, é aí que residem as mais diversas discussões. Muitos acreditam que a digitalização de processos e serviços já existentes reflete uma espécie de governo digital. Nesse sentido caminha o Estado brasileiro que, por intermédio da Plataforma e-Gov, busca prestar serviços de forma eletrônica.

No portal do governo[1], há 3.554 serviços eletronicamente disponíveis à população, distribuídos em 188 órgãos. De acordo com as informações prestadas, 70,4% dos usuários desses serviços os avaliam de forma positiva, sendo que a média de satisfação dos usuários é a nota 4,29 (numa escala de 1 a 5). O que nos surpreende, porém, apesar de todas essas avaliações positivas, é o fato de que o tempo estimado para que o serviço seja, efetivamente, prestado é de 41 dias – lapso temporal relativamente alto, a depender do serviço em questão. Ainda, importa notar que 27,9% dos serviços essenciais prestados pelo poder público não são prestados de forma eletrônica e 17,2% dos serviços são prestados digitalmente apenas de forma parcial.

Com base nos dados supra mencionados, percebe-se que a ideia que as instituições têm sobre “governo digital” se resume à prestação de serviços públicos de forma remota – e, mesmo assim, a eficácia desse modelo pode ser questionada. O que ocorre, todavia, é que essa noção não é a única existente.

Alguns países considerados desenvolvidos perceberam que um governo digital vai além da oferta de informações e serviços online, podendo ser utilizado como um poderoso instrumento para transformar estruturas, processos e cultura do governo, tornando-o mais eficiente, orientado ao cidadão e transparente[2]. Assim, a ideia mais completa que temos sobre o que seria um “Estado Digital” é justamente um modelo de gestão pautado na transparência, na participação dos cidadãos nos processos de tomada de decisões, na redução da burocracia e na adoção de meios digitais para facilitar o diálogo entre governo e sociedade, sempre pautado no amplo acesso à informação. Assim, as tecnologias e os meios digitais seriam meios para a adoção de um modelo estatal novo e mais eficiente.

Ocorre que, para que tudo isso se efetive na prática, é preciso uma ampla transformação social. E a maior delas diz respeito à garantia de que toda a população tenha não somente o acesso à internet e às tecnologias digitais, mas também tenha o know-how, isto é, o conhecimento adequado para fazer uso de tais tecnologias. E é aí que reside o maior problema.

Segundo dados da Pesquisa TIC Domicílios de 2018, cerca de 40% da população brasileira nunca teve contato com um computador na vida. Na zona rural, esse número é ainda maior. Nas classes D e E, esse número sobe pra 65%[3]. Por sua vez, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (2018), divulgada em abril desse ano pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra que uma em cada quatro pessoas no Brasil não tem acesso à internet. Em números totais, isso representa cerca de 46 milhões de brasileiros que não possuem acesso  à rede. Em áreas rurais, o índice de pessoas sem acesso é ainda maior que nas cidades, chegando a 53,5%[4].

Quando ampliamos nosso olhar e verificamos os dados ao redor do mundo, a situação não surpreende. A Comissão de Banda Larga, grupo que reúne representantes de empresas e das Nações Unidas, realizou estudo em 2019 concluindo que quase metade da população mundial (49%) não tem acesso à internet[5]. Aprofundando ainda mais essa análise, na maioria dos países do mundo os homens ainda têm mais acesso do que as mulheres às tecnologias digitais. Mais da metade da população feminina global, 52%, ainda não possui acesso à Internet, em comparação com 42% da população masculina[6].

Por fim, segundo dados apresentador pela pesquisa internacional ICT Facts and Figures 2019, realizada pela ITU, a agência da Organização das Nações Unidas (ONU) para tecnologias da informação, a penetração da internet nos domicílios de países desenvolvidos é de cerca de 86,6%. O índice chega a 47% nos países em desenvolvimento (incluso o Brasil)[7].

Com base nos dados supra elencados, é possível traçar um panorama geral: países em desenvolvimento são os mais afetados pela desigualdade digital, não possuindo desempenho satisfatório no que se refere à garantia de um ambiente digital efetivo aos seus nacionais. Mais uma vez, a diferença entre nações desenvolvidas e as demais se mostra latente, o que se reflete no âmbito interno: por aqui, os mais ricos detém o acesso e a informação necessária para usufruir de serviços digitais prestados pelo governo de forma efetiva.

Analisando a situação de uma forma simples, é possível ainda traçar o seguinte panorama: a partir do momento que os serviços públicos e as alternativas de participação popular têm migrado para o ambiente digital, a população vulnerável que não possui acesso à essa rede é impedida de exercer sua cidadania. Por essa razão é que precisamos ficar atentos para que a desigualdade já existe não seja ainda mais agravada.

Conclui-se, portanto, a partir dos dados analisados, que grande parte da população nacional ainda não tem acesso à internet, nem possuem o conhecimento necessário para manusear aparelhos tecnológicos. Assim, se não forem implementadas políticas públicas voltadas para a inclusão digital da população de baixa renda, o sonho de um Estado Digital tornar-se-á num pesadelo: a desigualdade social latente no país tenderá a crescer ainda mais.

Portanto, mais do que uma simples questão econômica, a ideia de inclusão digital permeia diversos espaços, como os âmbitos social, ambiental e político. Um processo eficaz de democratização das tecnologias digitais deve se preocupar não somente com o acesso de toda a sociedade à internet, mas também com a garantia de participação efetiva de todos no modelo de Estado digital que vem sendo a tendência atual.

 

Referências

[1] http://painelservicos.servicos.gov.br/

[2] http://www.oecd.org/mena/governance/36853121.pdf, em 15/8/2016.

[3] http://data.cetic.br/cetic/explore?idPesquisa=TIC_DOM&idUnidadeAnalise=Usuarios&ano=2018

[4] https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-04/um-em-cada-quatro-brasileiros-nao-tem-acesso-internet

[5] https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2019-09/quase-metade-do-planeta-ainda-nao-tem-acesso-internet-aponta-estudo

[6] https://news.un.org/pt/story/2019/11/1693711

[7] https://www.itu.int/en/ITU-D/Statistics/Documents/facts/FactsFigures2019.pdf