Noções preliminares
A Constituição Federal é a norma máxima em um país e determina a forma de Governo, a sua estrutura administrativa, e a forma como as relações jurídicas do próprio Estado perante o seu povo e outros entes estatais se dará em âmbito nacional e internacional, dentre outros aspectos tidos como relevantes para aquele país.
A Constituição da República Federativa do Brasil, ou apenas Constituição Federal, prevê que na contratação de serviços e aquisição de bens deverá proporcionar meios para que todos os interessados (que possuam condições para tanto) possam participar em igualdade de condições para o fornecimento do bem ou serviço que se pretenda adquirir e a forma para que isto ocorra é a licitação pública.
A fim de regulamentar os procedimentos de licitações foi editada a Lei nº 8.666/1993, conhecida como Estatuto de Licitações e Contratos, a qual traz as regras gerais quanto à contratação de obras, serviços, compras e alienações.
A par do que disciplina a Lei nº 8.666/1993 foi editada a Lei nº 13.979/2020, norma de caráter temporário, que trouxe inovações nos procedimentos destinados à aquisição de insumos de saúde para implementação de ações sanitárias de combate a Pandemia decorrente da disseminação do denominado Coronavírus ou Covid-19.
Pois bem, sem a pretensão de exaurir-se o tema, passa-se a análise da Lei nº 13.979/2020 em contraponto ao que dispõe a Lei nº 8.6666/9, à luz do que disciplina a Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro.
Licitações e Contratos: Âmbito de aplicação da Lei nº 8.666/1993
Nossa Carta Magna, ao se referir às licitações, traz premissas essenciais e fixa os seguintes parâmetros
Art. 37. (…)
XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
Em atenção aos ditames constitucionais o Legislador editou a Lei nº 8.666/1993, cuja ementa discrimina o seguinte: “regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências”, o que significa dizer que é a lei que define os procedimentos a serem observados nos processos de licitação.
Calha registrar que o Estatuto de Licitações e Contratos determina as “normas gerais sobre licitações e contratos administrativos pertinentes a obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações e locações no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios” sendo este o seu âmbito de aplicação, ex vi art. 1º, caput.
É importante frisar que a norma mencionada se aplica não somente aos órgãos da Administração Direta, sendo sua observância obrigatória, também, aos “fundos especiais, as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios”, vide art. 1º, parágrafo único.
Ressalta-se que a regra é a realização de prévia licitação a quaisquer obras, serviços, compras e alienações, todavia, admite-se a contratação de forma direta nas hipóteses de dispensa ou inexigibilidade se preenchidos os requisitos previstos na própria Lei nº 8.666/1993.
A pandemia, as leis especiais, provisórias e o ordenamento jurídico pátrio
É de conhecimento público que o Covid-19 é uma doença de origem viral, que possui alto grau de propagação e se alastra de forma bastante célere, cuja principal forma de contágio é o contato com um portador do vírus ou com superfícies contaminadas, não havendo medicamentos conhecidos e cuja eficácia tenha sido comprovada.
Os principais métodos de combate ao Coronavírus abrangem cuidados de higiene pessoal básica, uso de equipamentos de proteção individual, higienização de locais e objetos, o distanciamento e, se possível, o isolamento social.
Em território brasileiro, no âmbito jurídico, o reconhecimento formal da situação de calamidade imposta pela pandemia se deu através da edição do Decreto Legislativo nº 6/2020 cuja ementa assim dispõe: “reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública”.
A fim de conferir agilidade aos procedimentos visando à aquisição de insumos de saúde, vez que se fiz necessária a adoção imediata de medidas sanitárias e de saúde pública que pudessem adiar o alastramento da doença e conferir tratamento médico imediato e efetivo aos pacientes contaminados, foi editada a Lei nº 13.979/2020.
A Lei nº 13.979/2020 é lei especial e provisória. Este diploma legal prevê em seu artigo 8º que “vigorará enquanto estiver vigente o Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, observado o disposto no art. 4º-H desta Lei”.
É assente que a edição de leis provisórias em território nacional possui expressa previsão legal consoante artigo 2º do Decreto-Lei nº 4.657/1942 (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro), o qual determina que “não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue” (§ 1º), e prossegue afirmando que “lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior” (§ 2º).
Acerca da vigência das leis, a doutrina traz que:
6.1.2. Fim da vigência da lei
A lei pode ser destinada à vigência temporária ou por tempo indeterminado.
Quando a lei se destine a vigorar por tempo determinado, ela expressamente o determinará, como acontece, por exemplo, com leis tributárias que concedem isenções temporárias de impostos. Findo o prazo de isenção previsto na própria lei, termina a sua vigência, ou pelo menos do dispositivo que determinava o benefício.
Como se vê, somente em casos excepcionais terá a lei o destino da vigência temporária. Certo é que em sua grande maioria as leis vigoram por tempo indeterminado.
Sendo o caso de vigência da lei por tempo indeterminado, o seu vigor perdurará até que outra lei a modifique ou revogue (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, art. 2º, caput), o que decorre do chamado princípio da continuidade. (Grifo e destaque no texto original).[i]
Note-se, portanto, que a lei em comento foi editada com intuito de regulamentar circunstâncias de cunho excepcional e deixando de existir a situação que lhe deu origem a sua vigência estará finda.
Da análise sistêmica do ordenamento jurídico pátrio é possível denotar que lei geral e lei especial possuirão vigência simultânea para tanto há que se observar o que dispõe à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: não sendo hipótese de aplicação da lei especial, aplicar-se-á a lei geral, nos moldes previstos no artigo 2º, § 2º, do Decreto-Lei nº 4.657/1942.
A Lei nº 13.979/2020 e as novas hipóteses de licitação dispensável
O Estatuto de Licitações e Contratos prevê diversas hipóteses de licitação dispensável, consoante artigo 24 e, no que se trata da dispensa de licitação em razão de emergência e calamidade pública, disciplina que:
IV – nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos;
A Lei nº 8.666/1993, nas hipóteses de licitação dispensável exige que: O processo de dispensa deve ser instruído, no que couber, com os seguintes elementos: (i) caracterização da situação emergencial, calamitosa ou de grave e iminente risco à segurança pública que justifique a dispensa, quando for o caso; (ii) razão da escolha do fornecedor ou executante; (iii) justificativa do preço; e, (iv) documento de aprovação dos projetos de pesquisa aos quais os bens serão alocados.
Por se tratar de norma especial, a Lei 13.979/2020 traz a seguinte redação: “é dispensável a licitação para aquisição ou contratação de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei.”
Quanto aos critérios de publicidade das contratações destinadas ao combate do Coronavírus a lei de regência estabelece que as aquisições sejam disponibilizadas em site oficial específico na internet, observado o prazo de 5 (cinco) dias úteis, no máximo, sendo considerado como marco inicial deste prazo a realização do ato.
Anote-se que para fins de controle a publicidade da contratação deverá consignar diversas informações, dentre elas o nome do contratado, o número de sua inscrição na Secretaria da Receita Federal do Brasil, o prazo contratual, o valor e o respectivo processo de aquisição ou contratação, e, ainda, o ato que autoriza a contratação direta ou o extrato decorrente do contrato; a especificação do bem adquirido ou do serviço contratado e o local de entrega ou de prestação; indicar o valor global do contrato, as parcelas do objeto, os montantes pagos e o saldo disponível ou bloqueado, caso exista; prestar informações sobre eventuais aditivos contratuais; e informar a quantidade entregue em cada unidade da Federação durante a execução do contrato, nas contratações de bens e serviços.
Anote-se que a Lei 13.979/2020 traz previsão legal que autoriza a Administração Pública a contratar com quem tenha sido submetido às penalidades previstas no artigo 87, inciso IV, da Lei de Licitações e Contratos, veja-se o excerto
Art. 4º. (…)
§ 3º Na situação excepcional de, comprovadamente, haver uma única fornecedora do bem ou prestadora do serviço, será possível a sua contratação, independentemente da existência de sanção de impedimento ou de suspensão de contratar com o poder público”
Denota-se que a contratação daquele que se encontra suspenso ou impedido de contratar com a Administração Pública somente ocorrerá se este for o único fornecedor do produto ou serviço que se pretenda adquirir. Além disso, torna-se obrigatória a prestação de garantia nas modalidades previstas no art. 56 da Lei nº 8.666/1993, limitada ao patamar de 10% (dez por cento) do valor do contrato.
A Administração Pública poderá, ainda, com fundamento no artigo 4º-A, realizar a aquisição ou contratação de bens e serviços, inclusive de engenharia, de equipamentos que não sejam novos, desde que o fornecedor se responsabilize pelas plenas condições de uso e de funcionamento do objeto contratado.
O art. 4º-B, diversamente do que estatui o Estatuto de Licitações e Contratos, traz que as aquisições realizadas com fundamento na Lei 13.979/2020 tem presumidas: (i) ocorrência de situação de emergência; (ii) necessidade de pronto atendimento da situação de emergência; (iii) existência de risco à segurança de pessoas, de obras, de prestação de serviços, de equipamentos e de outros bens, públicos ou particulares; e, (iv) limitação da contratação à parcela necessária ao atendimento da situação de emergência.
Outra inovação legislativa introduzida pela Lei nº 13.979/2020 diz respeito ao termo de referência simplificado ou o projeto básico simplificado, bem como a previsão de que a estimativa de preços pode ser obtida por meio de, no mínimo, 1 (um) parâmetro dos previstos naquela lei. A propósito, transcreve-se o dispositivo pertinente:
Art. 4º-E. Nas aquisições ou contratações de bens, serviços e insumos necessários ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, será admitida a apresentação de termo de referência simplificado ou de projeto básico simplificado.
§ 1º O termo de referência simplificado ou o projeto básico simplificado referidos no caput deste artigo conterá:
I – declaração do objeto;
II – fundamentação simplificada da contratação;
III – descrição resumida da solução apresentada;
IV – requisitos da contratação;
V – critérios de medição e de pagamento;
VI – estimativa de preços obtida por meio de, no mínimo, 1 (um) dos seguintes parâmetros:
a) Portal de Compras do Governo Federal;
b) pesquisa publicada em mídia especializada;
c) sites especializados ou de domínio amplo;
d) contratações similares de outros entes públicos; ou
e) pesquisa realizada com os potenciais fornecedores;
VII – adequação orçamentária.
§ 2º Excepcionalmente, mediante justificativa da autoridade competente, será dispensada a estimativa de preços de que trata o inciso VI do § 1º deste artigo.
§ 3º Os preços obtidos a partir da estimativa de que trata o inciso VI do § 1º deste artigo não impedem a contratação pelo poder público por valores superiores decorrentes de oscilações ocasionadas pela variação de preços, desde que observadas as seguintes condições:
I – negociação prévia com os demais fornecedores, segundo a ordem de classificação, para obtenção de condições mais vantajosas; e
II – efetiva fundamentação, nos autos da contratação correspondente, da variação de preços praticados no mercado por motivo superveniente.
A Lei nº 13.979/2020 regulamenta outras situações igualmente relevantes para o presente artigo, como a previsão de que as licitações na modalidade pregão, eletrônico ou presencial, tenham os prazos dos procedimentos licitatórios serão reduzidos pela metade; os contratos poderão ter prazo de 06 (seis) meses, prorrogáveis sucessivamente enquanto vigorar o Decreto-Lei nº 06/2020; e, a possibilidade de que os contratos possam sofrer acréscimo ou decréscimo de até 50% (cinquenta por cento) do valor inicial atualizado do contrato, devendo ser mantidas as mesmas condições contratuais pelo contratado.
Conclusão
As inovações legislativas implementadas pela Lei nº 13.979/2020 são muitas, e foram de vital importância para permitir ao Estado Brasileiro uma ferramenta que lhe permitisse agir com a celeridade que a situação de Calamidade Pública lhe exigia.
Note-se que as principais mudanças guardam pertinência com a flexibilização de normas contidas na Lei nº 8.666/1993, mas isso se fez sem renunciar a certas garantias que possam resguardar o patrimônio e o interesse público pois, se por um lado, permitiu a contratação de quem tenha sido penalizado por descumprimento do normas contratuais em face da Administração Pública, por outro, exigiu o reforço de garantias que garantissem o cumprimento das obrigações advindas do contrato decorrente da situação de emergência de saúde pública.
Registre-se a dita flexibilização não impede o exercício de controle interno e externo, seja ele concomitante ao momento da contratação ou a posteriori, sendo admissível a responsabilização do agente público que haja com abuso ou desvio de finalidade na aplicação da Lei nº 13.979/2020.
Referências
ASSIS NETO, Sebastião de; JESUS, Marcelo de; MELO, Maria Izabel de. Manual de Direito Civil, volume único: 2. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Editora Juspodivm, 2014.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm >. Brasília: 1988. Acesso em 14/08/2020.
BRASIL. Decreto-lei nº 5.567/1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Brasília: 1942. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htm >. Acesso em 16/08/2020.
BRASIL. Lei nº 8.666/1993. Estatuto das Licitações e Contratos. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Brasília: 1993. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8666compilado.htm >. Acesso em 19/08/2020.
BRASIL. Lei nº 13.979/2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Brasília: 2020. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L13979compilado.htm >. Acesso em 2
[i] ASSIS NETO, Sebastião de; JESUS, Marcelo de; MELO, Maria Izabel de. Manual de Direito Civil, volume único: 2. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Editora Juspodivm, 2014, p. 73.