No universo jurídico, é muito comum a expressão “não existem direitos absolutos”. Mas o que isso quer dizer? E será mesmo que isso é verdade?

A problemática da colisão de direitos fundamentais

Quando alguém fala que esse ou aquele direito não é absoluto, o contexto é geralmente de colisão de direitos, quando dois ou mais direitos diferentes estão em conflito. Mais especificamente, colisão de princípios, que, ao lado das regras, são um tipo de norma dotadas de maior abstração.

Um exemplo bem fácil de se visualizar é o da liberdade de expressão: todos temos direito à liberdade de nos expressarmos. Contudo, esse direito já vem relativizado na própria lei, que proíbe, por exemplo, que, no uso da liberdade de expressão, as pessoas ofendam umas às outras, ou incitem o cometimento de crimes, por exemplo.

Outro direito relativo é o da propriedade: a própria Constituição fala que a propriedade atenderá a sua função social. No Brasil, ninguém pode ter uma plantação de papoula em casa, por exemplo. O Estado também pode desapropriar uma propriedade privada improdutiva, que não esteja atendendo sua função social.

Relativização de direitos fundamentais no caso concreto.

Embora, em geral, a própria lei já traga, em alguma medida, limitações ou relativizações de direitos fundamentais, pode acontecer de o uso desse direito ser plenamente lícito, mas, mesmo assim, colidir-se com outro direito. É o clássico caso de que, mesmo que a lei não proíba, ninguém tem o direito de gritar falsamente em uma sala de cinema lotada que está havendo ali um incêndio (é o que os americanos conhecem como falsely shouting “fire” in a crowded speech).

Outro caso que ilustra um debate sobre a liberdade de expressão é aquele em torno do direito ao esquecimento, em que se contrapõem o direito de informar com o direito à privacidade de alguém: uma emissora de tv, por exemplo, faz uma matéria relativa a algum crime ocorrido há décadas, e algum envolvido se contrapõe à veiculação dessa matéria, alegando que tem direito a que esse fato seja esquecido (recentemente, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.010.606, que discutia exatamente um caso assim, o STF decidiu que não existe direito ao esquecimento no Brasil, decisão polêmica da Corte).

Dessa forma, revela-se que o direito à liberdade de expressão não é absoluto, podendo ser restringido tanto genericamente, pela lei, quanto no caso concreto.

Na prática, existe direito absoluto, ou todos são relativos?

Há quem diga e quem defenda, nesse sentido, utilizando o raciocínio até agora construído, que nenhum direito é considerado absoluto, pois devem conviver com outros direitos.

Se pararmos para pensar, o próprio direito à vida admite algum tipo de relativização. Isso é evidente quando a lei prevê, por exemplo, a legítima defesa. Mas também há casos menos óbvios que demonstram isso: em alguns países, admite-se a eutanásia. No Brasil, é admitida a ortotanásia, que é a morte natural, sem interferência de tratamentos médicos, permitindo ao paciente morte digna, sem sofrimento, deixando a evolução e percurso da doença.

Na jurisprudência, o próprio Supremo Tribunal Federal, a Suprema Corte do Brasil, tem julgados em que ministros afirmam expressamente que não existem direitos absolutos, como no RE nº 971.959 e no RHC nº 141.949.

Ou, como sintetiza o celebrado jurista Flávio Martins,

como é absolutamente natural que haja um conflito de direitos fundamentais, na análise de um caso concreto, se tivéssemos um direito fundamental absoluto, qualquer outro direito que contra ele se opusesse, seria aprioristicamente afastado[1].

Superando-se essa noção: exemplos de direitos absolutos, que não admitem relativização

Não vamos entrar no mérito de que essa expressão (“não existem direitos absolutos”) representa uma fórmula vaga e genérica que, no fim, pode justificar relativizações igualmente genéricas, ou seja, é uma expressão que representa uma porta de entrada para arbítrios. Em todo caso, no mínimo, essa expressão é controvertida. Há, sim, algumas poucas exceções, isto é, existem sim direitos absolutos. No direito internacional, encontramos, como exemplos, o direito de que ninguém, em hipótese alguma, pode ser torturado, independentemente da justificação (é o que prevê art. 7º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas – bem assim a Constituição Federal, no inciso III do art. 5º); ou o direito absoluto segundo o qual ninguém pode ser feito escravo, também não havendo justificativa para isso (arts. 8 (1) e 8 (2) do referido Pacto)[2].

Nas palavras da jurista Marina Teles Coimbra,

a proibição de tortura é absoluta e tem sido reafirmada como tal em muitos tratados internacionais e regionais de direitos humanos. Pertence aos direitos humanos considerados inderrogáveis, isto é, válidos em todas as circunstâncias e que não permitem restrições, exceções ou derrogações pelo Estado, por nenhuma razão e em nenhuma circunstância[3].

No mesmo sentido, é o posicionamento de Norberto Bobbio:

“Há alguns que valem em qualquer situação e para todos os homens indistintamente: são os direitos acerca dos quais há exigência de não serem limitados nem diante de casos excepcionais, nem com relação a esta ou àquela categoria, mesmo restrita, de membros do gênero humano (é o caso, por exemplo, do direito de não ser escravizado e de não sofrer tortura). Esses direitos são privilegiados porque não são postos em concorrência com outros direitos, ainda que também fundamentais”[4].

Ou seja, essas práticas são juridicamente injustificáveis. Nesses casos, prevalecem, em absoluto, os Direitos Humanos do indivíduo.

O cenário da bomba-relógio

Quanto ao direito à tortura, ainda existe um debate se este realmente é absoluto. Flávio Martins fornece o exemplo do cenário da bomba-relógio (ticking time bomb scenario), tal qual retratado no filme Ameaça Terrorista (Unthinkable, 2010), em que a tortura surge como única possibilidade de se evitar a detonação de uma bomba relógio, colocada para explodir em um local populoso, quando, identificado o torturado, este se recusa a revelar a localização do dispositivo. Aliás, o filme fornece o cenário não só de tortura do suposto terrorista, mas também de sua esposa e de seus filhos, o que, certamente, a exemplo do dilema do bonde, complica bastante a situação.

Direitos absolutos e ticking time bombs
O cenário da bomba relógio e o direito absoluto de não ser torturado

Entretanto, ainda assim, ainda nesse cenário, parece-nos que, no Brasil,  conforme normas internacionais supracitadas, a tortura seria injustificável e os responsáveis pelo ato deveriam ser punidos, especialmente se começassem a torturar familiares do terrorista, quando é certo que a Constituição consagra o princípio da intranscendência da pena (art. 5º, inciso XLV); e especialmente porque a realidade não é preto no branco: em um caso real, dificilmente haveria alguma certeza sobre a identidade do terrorista e, como já argumentava Beccaria ainda no século XVIII, a tortura, além de ser desumana, é ineficiente e estúpida[5], sendo que o torturado, inocente ou não, pode dizer qualquer coisa.

Quanto à escravidão, porém, não há nenhuma dúvida de que esse direito é absoluto, não sendo razoável se cogitar de escravidão nem mesmo em cenários extremos.

Conclusão

Em todo caso, mesmo que se considere o extremo cenário da bomba-relógio, é inegável que o direito de não ser escravizado não pode ser relativizado de maneira alguma. Não existe hipótese imaginável que autorizaria alguém a escravizar outrem no Brasil, sendo esse, verdadeiramente, um direito absoluto.

De modo que, em conclusão, existem, sim, direitos absolutos no ordenamento jurídico brasileiro. Com toda certeza, esse é o caso do direito de não ser escravizado, sendo, no mínimo, discutível se outros direitos não entram nessa categoria, como a proibição da tortura.

Referências

[1] MARTINS, Flávio. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 777.

[2] Fala-se, ainda, como direitos absolutos, no direito à irretroatividade de leis penais desfavoráveis ao acusado ou condenado, ao direito de não ser preso por dívidas contratuais cíveis e ao direito de ser reconhecido como sujeito de direitos (previstos, respectivamente, nos arts. 11, 15 e 16 da Convenção Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da Organização das Nações Unidas).

[3] COIMBRA, Marina Teles. Direitos Absolutos. 2016. Disponível em https://www.academia.edu/41289674/Direitos_Absolutos. Acesso em maio de 2021

[4] BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 20.

[5] BICUDO, Hélio; ALVES, José Augusto Lindgren. A Arquitetura Internacional dos Direitos Humanos. São Paulo: Ftd, 1997 pág. 135)