O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL TÓPICO E ESTRUTURAL – UM NOVO CONCEITO

Líbero Penello de Carvalho Filho¹

 

¹ Professor. Escritor. Pesquisador. Especializado em Direito e Processo Penal e em Direito e Processo do Trabalho. Aluno dos cursos para Doutorado em Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires.  Membro do Instituto Brasileiro de Administração do Poder Judiciário – IBRAJUS. Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Membro da Academia de Letras Jurídicas do Espírito Santo.

RESUMO

A noção clássica e mais difundida do chamado Estado de Coisas Inconstitucional – ECI diz respeito à violação generalizada de direitos fundamentais. Surgido recentemente, o Estado de Coisas Inconstitucional significa um cenário de omissão do poder público, e leva ao abalo de um sistema ou de um conjunto de instituições e serviços públicos, de modo que se veja afetada a sua prestação à sociedade e, consequentemente, afetado o próprio arcabouço constitucional de um estado. Um novo conceito, porém, surge: o Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) Tópico e o Estrutural, sendo o primeiro aquele ECI já conhecido e declarado pelas cortes constitucionais colombiana e brasileira, e o segundo sendo aquele cuja amplitude, extensão e profundidade levam a uma ofensa mais grave aos direitos fundamentais. A solução para ambas as espécies de ECI varia, de acordo com cada uma delas. Este trabalho busca conceituar o ECI tópico e o ECI estrutural, bem como apontar as soluções para cada uma destas espécies, de forma a restabelecer a ordem pública, social e normativa do Estado.

 

Palavras-chave: Estado de coisas inconstitucional tópico. Estado de coisas inconstitucional estrutural. Direitos fundamentais. Omissão do poder público. Ordem constitucional.

 

INTRODUÇÃO

A definição mais comum do chamado “estado de coisas inconstitucional – ECI” é no sentido de que se trata de “um quadro de violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais, causado pela inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura, de modo que apenas transformações estruturais da atuação do Poder Público e a atuação de uma pluralidade de autoridades podem alterar a situação inconstitucional ”(1).

É uma definição abrangente, e que se adequa perfeitamente à realidade brasileira de 2020 e 2021. O estado de coisas inconstitucional surgiu na Sentencia de Unificación (SU) 559, da corte constitucional colombiana, em 1997, que decidiu sobre a questão dos direitos previdenciários dos professores colombianos. Posteriormente, em 1998 e 2004, a mesma corte aplicou o conceito do ECI.

Na mencionada decisão SU-559, de 6 de novembro de 1997, a corte colombiana declarou o ECI face omissão de dois municípios do departamento de Bolívar, que não filiaram seus docentes no Fundo Nacional de Prestações do Magistério, mas estavam descontando dos salários destes professores não filiados recursos para subsidiar o referido fundo.

 

Na decisão, a corte considerou que, do mesmo modo que há o dever de comunicar o cometimento de um crime, igualmente existe o dever de comunicar omissão que ofende ditames constitucionais. Decidiu ainda que, sendo a corte constitucional o guardião da constituição, cabe-lhe instar o cumprimento de tais ditames, devendo o ECI estar vinculado à violação de direitos fundamentais, com amplo limite de abrangência, no que foi chamado de “questão jusfundamental”.

 

Posteriormente, na sentença T-068 de 1998 (acerca de mora habitual da Caixa Nacional de Previsão em resolver as petições dos aposentados), nas decisões SU-250 de 1998 e T-1695 de 2000 (falta de convocatória de concurso público para preencher vagas no sistema de notariado e registro), na Sentença T-590 de 1998 (que declarou o ECI pela omissão do Estado em adotar medidas para garantir a segurança dos defensores de direitos humanos), a corte colombiana decidiu sobre a concretização dos direitos fundamentais trazidos pela Constituição de 1991, notadamente seu artigo 95, segundo o qual a constituição obriga a defender e difundir os direitos humanos como fundamentos da convivência pacífica.

 

E prosseguiu a corte colombiana pronunciando o ECI, como se vê em decisões subseqüentes (Tutelas 719 de 2003, 1191 de 2004 e 025 de 2004, a famosa tutela sobre a violação dos direitos dos povos deslocados).

 

No Brasil, o ECI veio suscitado perante o Supremo Tribunal Federal – STF, em 2015, na Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 347/DF, Rel. Min. Marco Aurélio. DJ. 09/09/2015), na qual se discutia o sistema penitenciário brasileiro. Os pedidos na ADPF foram:

 

“a) que fossem determinados ao Governo Federal a elaboração e o encaminhamento ao Supremo, no prazo de três meses, de um plano nacional visando à superação, dentro de três anos, do quadro dramático do sistema penitenciário brasileiro;

  1. b) que o aludido plano contivesse propostas e metas;
  2. c) que o plano previsse os recursos necessários à implementação das propostas e o cronograma para a efetivação das medidas;
  3. d) que o plano fosse submetido à análise do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), da Procuradoria-Geral da República (PGR), da Defensoria-Geral da União, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB), do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e de outros órgãos e instituições que desejassem se manifestar e da sociedade civil; e) que o Tribunal deliberasse sobre o plano, para homologá- lo ou impor providências alternativas ou complementares;
  4. f) uma vez homologado o plano, fosse determinado aos governos dos estados e do Distrito Federal que formulassem e apresentassem ao Supremo, em três meses, planos próprios em harmonia com o nacional, contendo metas e propostas específicas para a superação do ECI; g) que o Tribunal deliberasse sobre cada plano estadual e distrital, para homologá-los ou impor providências alternativas ou complementares;
  5. h) que o Supremo monitorasse a implementação dos planos nacional, estaduais e distrital, com o auxílio do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (DMF) e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do CNJ, em processo público e transparente, aberto à participação colaborativa da sociedade civil.”

 

Os ministros do Supremo Tribunal Federal só conseguiram chegar a duas conclusões e decidir somente dois dos oito itens do pedido: proibição à União de contingenciar o dinheiro do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) e realização urgente de audiências de custódia.

 

Ao contrário do panorama colombiano, no Brasil o reconhecimento do ECI não foi muito prolífico, havendo conhecimento apenas da ADPF 347 e na ADI 5569 de 2021, que declarou ECI no sistema de patentes de medicamentos e suspendeu a vigência do artigo 40 da Lei de Patentes brasileira. Notícia há do reconhecimento do ECI no Peru, mas em amplitude tão tímida quanto a brasileira.

 

1.       O ECI TÓPICO

O ECI é uma criação jurídica que personifica um estado de violação massiva, habitual, do sistema de direitos fundamentais em sua globalidade, e não apenas de um direito individual violado. Através da noção de que uma suprema corte constitucional é a guardiã da constituição de um país, convencionou-se que o ECI é suscitado perante esta corte excelsa e por ela decidido, reconhecendo-se o estado de coisas inconstitucional e declarando-se as medidas necessárias ao restabelecimento da observância da constituição.

 

Deste modo, a violação aos direitos fundamentais deve ser, além de geral e reiterada, também oriunda da ação ou omissão de diferentes órgãos estatais, alcançando um número amplo e indeterminado de pessoas. Não se confunde o ECI com a proteção deficiente. No ECI, a proteção é mais do que ineficiente, é ineficaz, e afeta toda a coletividade. Na proteção deficiente, ainda é possível o exercício dos direitos fundamentais, embora com certo grau de especificidade e abrangência.

 

O reconhecimento do ECI como conhecido em nosso país e mesmo em outros países que o aplicam passa pela condução do processo pelo poder judiciário, cuja função originária é prestar a tutela jurisdicional e resolver conflitos, através de sua corte suprema constitucional, que no Brasil é o STF, na condição de guardião dos princípios, valores e normas constitucionais.

 

Quando esta violação atinge uma determinada categoria de diretos fundamentais, ocorre o ECI tópico. O exemplo da ADPF 347, do STF, é de ECI tópico. A causa de pedir e o pedido foram alusivos à violação contundente de apenas uma categoria de direitos fundamentais: a da população carcerária. Na verdade, foram questionadas a própria falência e desumanidade do sistema carcerário brasileiro.

 

Este ECI reconhecido pelo STF na ADPF 347 é meramente tópico, pois enquanto as violações massivas e reiteradas aos direitos fundamentais verificam-se em todas as instâncias sociopolíticas, cuidou apenas da população carcerária, não abrangendo as graves violações no sistema de saúde, de segurança pública etc.

 

Em 07/04/2021, em medida liminar concedida na ADI 5529, o Ministro do STF Dias Toffoli reconheceu o ECI no tocante ao imobilismo legiferante no setor de patentes, afirmando que a renovação automática de patentes de medicamentos era lesiva à saúde pública, pois impedia a prática de políticas públicas respectivas, mormente em tempos de pandemia, razão pela qual suspendeu o artigo 40 da Lei de Patentes brasileira.

Esta decisão liminar do Ministro Dias Toffoli exemplifica o ECI tópico, pois declara o estado de inconstitucionalidade pela omissão de determinados e identificáveis órgãos públicos. Enquanto o ECI é tópico, enquadra-se na definição doutrinária e jurisprudencial existente, sendo possível legitimar o poder judiciário, via corte suprema, para sua condução e implementação. O problema surge quando o ECI é estrutural.

 

2.      O ECI ESTRUTURAL

A hipótese de um ECI estrutural era possível, mas não provável, até que a OMS declarasse estado de pandemia pela covid-19. Em fevereiro de 2020, o governo federal brasileiro alertou a OMS para que declarasse a covid-19 uma pandemia, ao mesmo tempo em que solicitava ao congresso brasileiro que declarasse estado de calamidade no Brasil. Apesar disto, seus apelos não foram ouvidos naquele primeiro momento, e a avaliação estratégica equivocada de políticos, estados e municípios fez com que, ainda em fevereiro de 2020, milhares de turistas nacionais e estrangeiros lotassem as ruas por ocasião do carnaval. Uma situação inédita em nossa história contemporânea e que alterou profundamente nossa realidade local e mundial. Uma nova geopolítica desenhou-se, demandas antes sentidas somente em tempos de guerra se impuseram, ao passo que demandas que nunca víramos apareceram.

 

O primeiro a sentir o colapso nos tempos pandêmicos foi o sistema de saúde. Despreparado ante algo novo e mortal em escala global, o sistema de saúde de cada país viu-se sem armas para lutar contra a contaminação e mortes em série. No Brasil, a situação foi ainda mais grave, pois o sinistro pandêmico encontrou um cenário de caos na saúde pública, com histórica e reiterada falta de leitos, de profissionais médicos, de tratamento ambulatorial a contento. São de longa data as fotografias, denúncias e reportagens sobre pacientes morrendo no chão de enfermarias lotadas e recepções de hospitais. Apesar disto, nunca foi suscitado o ECI quanto a este problema recorrente e histórico.

 

A economia foi a segunda a sentir os efeitos deletérios da pandemia, com decretos estaduais e municipais fechando comércios e serviços rotulados como não essenciais, paralisação de transporte público, toques de recolher, dentre outras medidas, numa espécie de lockdown à brasileira, o qual, obviamente, não funcionou como pretendido. Cito como exemplo os estados de São Paulo e Espírito Santo. Em São Paulo, apesar das medidas restritíssimas da fase roxa, houve o infeliz e inédito número de 1.300 mortos em 24 horas, em pleno dia 06 de abril de 2021, dias após a imposição de tais medidas. No Espírito Santo, foram 110 mortos em 24 horas na mesma data de 06 de abril, em duas semanas de um lockdown pela metade, em que nem todos os serviços foram paralisados. O número de leitos ocupados não se reduziu significativamente. A politização da pandemia também foi outro fator obscurantista que trouxe agravamento ao cenário de caos.

 

A situação em 2021 foi a de uma segunda onda mais agressiva e mortal, inexplicável se analisadas somente as falas dos gestores estaduais e municipais ao longo do ano de 2020. Com efeito, em fevereiro de 2020, enquanto o governo federal alertava para a pandemia e o estado de calamidade, os gestores estaduais convidavam todos, dentro e fora do país, a virem passar o carnaval no Brasil e em seus estados, desprezando as mortes já verificadas pela covid-19.

 

Em épocas próximas, conhecido médico brasileiro, referência em informativos de saúde e habituée de grandes mídias, afirmava, no início da pandemia, que a covid-19 significaria não mais que uma gripe, com raríssimos casos fatais, enquanto o presidente da república, em fala oficial, afirmava que nele, presidente, devido ao seu histórico de atleta, a covid-19 significaria apenas uma gripe comum.

 

Posteriormente, ambos os personagens mencionados tiveram suas falas interpretadas e mesmo distorcidas. O conhecido médico tratou de publicar uma nova fala, desdizendo-se e alertando para os reais perigos da covid-19. Já o presidente da república não se preocupou em realizar uma correção enfática do que estava sendo distorcido pelos meios noticiosos e de opinião, o que fez com que se tornasse quase uma verdade oficial a versão distorcida de que tal gestor havia declarado que a covid-19 era apenas uma gripe, quando o vídeo da transmissão governamental mostra que o presidente referiu-se a ele próprio, à sua condição pessoal particular, como causadora do efeito de apenas uma gripe.

 

Ainda em outubro de 2020, assistiu-se a estes mesmos gestores desmontarem (os que chegaram a montar) hospitais de campanha e declararem estarem preparados caso viesse a segunda onda da pandemia em 2021. A falta de consciência gestora e humanitária fez com que se visse líderes das políticas de restrição fazendo o oposto do que pregavam, viajando para o exterior, sem uso de máscaras, indo à praia, aglomerando-se em inaugurações e eventos, enfim, dando o exemplo para que a população também praticasse a desobediência civil.

 

Na segurança pública, profissionais se contaminando e morrendo em número elevado, causando déficit de efetivo, aliado à já histórica falta de estrutura e prerrogativas para as forças policiais, contribuíram para a piora da segurança e o aumento da criminalidade.

 

Na educação, a paralisação de aulas presenciais trouxe um paliativo de menor rendimento e maior dano social, que foram as aulas remotas. No caso da educação infantil, o fechamento das escolas feriu de morte a educação de 0 a 6 anos, etapa de vida em que o aprendizado se dá pelo contato, pela troca de experiências e pelo estímulo direto de professores e colegas sobre a iniciativa e interesse do pequeno aluno.

 

No congresso nacional, notou-se como a lentidão e as votações seletivas de determinados temas se agravaram com a pandemia, pois, se antes questionava-se o critério de urgência de determinadas matérias, agora questiona-se a própria realização de atividade legiferante condizente com as necessidades sociais.

 

O transporte público superlotado sem que se tomassem medidas a respeito, enquanto igrejas eram fechadas para culto, evidenciou uma situação próxima ao surrealismo, sendo claro que o correto seria estabelecer a mesma política para todos, pois eram um só o problema e seu público-alvo.

 

Até aqui, ainda se poderia imaginar a solução deste estado de coisas através do ECI tópico, com o poder judiciário capitaneando a empreitada. Isto já exigiria certa dose de boa vontade, pois a amplitude de instituições comprometidas com o ECI era de tal monta que seria questionável o simples ECI tópico para o caso. O problema é que também ele, poder judiciário, viu-se enredado em questionamentos acerca de abuso de poder e violação de direitos fundamentais.

 

Sem adentrar no mérito de tais questões, que obviamente não compete a este trabalho, o fato é que se viu, de forma inédita na história brasileira, o poder judiciário, especialmente o STF, nas manchetes de notícias sobre abuso de autoridade e frontal contrariedade à constituição federal, principalmente nos casos de inquérito 4870, da prisão do deputado federal Daniel Silveira, dentre outros.

 

A estas notícias, somam-se as acusações de invasão nos outros poderes da república pelo STF, de uma corte colegiada ter se convertido em tribunal de decisões monocráticas, de abalo à ordem jurídica, pública e social face à insegurança jurídica com decisões desencontradas entre si ou que causem clamor social. Até mesmo uma denúncia à corte interamericana de direitos humanos foi aventada.

 

Repita-se, sem analisar a veracidade ou não de tais denúncias e manchetes, é certo que, queiramos ou não, a credibilidade da corte suprema foi colocada sob dúvida, com movimentos para seu fechamento, sua extinção, o que, desde já, tem-se por espúrio, porque contrário à própria constituição.

 

 

Portanto, a esta verdadeira “pane” geral nas instituições brasileiras, soma-se o arrastar do poder judiciário para o centro das imputações de suspeita, o que fez com que o poder judiciário se tornasse, também ele, parte do problema. E é aqui que se chega ao ECI estrutural.

 

No ECI estrutural, a violação aos direitos fundamentais se torna mais que tópica, ela é geral, verificada na própria estrutura do sistema de direitos fundamentais previstos. Nada lhe escapa, nem mesmo a espinha dorsal dos direitos garantidos na constituição. No ECI estrutural, a violação é massiva, reiterada e afeta as instituições de forma naturalmente insanável. Por exemplo: saúde, educação, segurança, economia, ordem jurídica, organização do estado, de tal forma atingidos ou ameaçados que os mecanismos de resolução do ECI tópico já não eram suficientes.

 

Importante apontar: não é necessário esperar que se concretize o abalo incontornável das instituições no ECI estrutural. Basta a ameaça verificada de forma clara. Em metáfora, seria um contrassenso esperar que alguém fosse atingido por um tiro para evitar que o crime fosse cometido.

 

Também não é estritamente necessário que sejam comprometidas todas as instituições e órgãos estatais, mas apenas que o número de instituições e serviços comprometidos seja em tal monta que inviabilize o estado como prestador e garantidor dos direitos fundamentais.

 

Crio, portanto, o conceito de um ECI que considera como atentatório aos direitos humanos fundamentais e às garantias individuais, à liberdade, à vida e à democracia um ECI de tal modo imbricado em toda a rede de instituições e serviços públicos, que encampa, de uma só vez, todos os microproblemas verificados, todas as inconstitucionalidades estruturais específicas, as quais passam a constituir um quadro único e de macroespectro em que estão viciados os fundamentos do Estado: o EIC estrutural.

 

 

3.      O COMBATE AO ECI ESTRUTURAL

 

3.1 Aplicabilidade do ECI no direito brasileiro

 

Há quem defenda a inaplicabilidade do ECI no direito brasileiro, posto que é potencial a exacerbação do poder judiciário, com decisões revestidas de forte ativismo judicial e subjetividade, causadoras de insegurança jurídica.

 

Não procede este temor doutrinário, pois o reconhecimento do ECI não é incompatível com o direito brasileiro e encontra eco na universalidade conceitual do direito, já que preconizado implicitamente nas normas constitucionais brasileiras e também nas normas supralegais e convencionais mundiais.

 

Basta apenas que a corte suprema brasileira observe os parâmetros limitadores de suas atribuições e ações exigíveis, sem ultrapassar as fronteiras de seu real poder. É perfeitamente possível uma decisão de natureza declaratória do STF no caso, porém esta decisão não pode transfigurar-se em condenatória e nem impor medidas a serem tomas pelos outros poderes da república, medidas estas que, se descumpridas, levem a uma penalização.

 

Aos que argumentam que, com isso, tornar-se-iam inócuas as decisões de nossa corte suprema, relembramos que, após anos de provimentos ineficazes em mandados de injunção, que não eram implementadas pelo poder legislativo, o STF decidiu por estender aos casos objeto dos mandados de injunção a vigência de determinados dispositivos legais semelhantes, como forma de suprir a inação legislativa. Um exemplo foi a disposição sobre a greve de funcionários públicos, na qual o STF, frente ao imobilismo do congresso nacional, estendeu a lei de greve do setor privado ao setor público, até que lei própria surgisse, o que, por sinal, ainda não ocorreu.

 

 

 

 

3.2 Ineficácia dos meios de resolução de ECI normais

 

Como já dito, a histórica e centenária situação de inobservância de preceitos constitucionais e universais básicos, como saúde, educação e segurança, somada ao caos recente trazido pela pandemia da covid-19, traduz um estado de coisas que evidentemente é inconstitucional.

 

Ocorre que tal panorama não ilustra um ECI normal ou tópico, como a doutrina e a jurisprudência o têm tratado desde 2015 no Brasil. O estado de coisas no Brasil de hoje, é estruturalmente inconstitucional, afeta todas as instituições, de alto a baixo, e a situação ainda não descambou para uma revolta interna ou guerra civil graças à índole brasileira pouco dada a embates desta natureza, bem como a um sentimento letárgico trazido nas redes sociais, no qual o cidadão registra sua indignação ou impropérios e se dá por satisfeito (que chamamos de síndrome do autoengano pleno).

 

Sendo estrutural o ECI, sua solução demanda uma ação mais ampla, geral, proporcional à gravidade e extensão da convulsão institucional. Já não basta mais uma ação perante o STF, pois este mesmo tribunal e o poder judiciário são questionados quanto à constitucionalidade de suas próprias decisões.

 

A partir do momento em que há uma debilidade institucional grave e generalizada, a solução do problema volta à gênese do estado de direito: a população, a sociedade. É somente ela, sociedade, quem pode reiniciar as bases de um estado enfraquecido institucionalmente, que não consegue oferecer a seu povo os serviços necessários à manutenção mínima da ordem pública, social e econômica.

 

A solução para o ECI estrutural é, portanto, colocar o país nos trilhos de uma nova ordem constitucional que sane todos os problemas verificados, ou seja, uma assembleia nacional constituinte e uma nova constituição. Observe-se os pressupostos para o ECI normal ou tópico:

 

  1. a) vulneração massiva e generalizada de direitos fundamentais de um número significativo de pessoas. (Confere com o estado de coisas no Brasil)

 

  1. b) prolongada omissão das autoridades no cumprimento de suas obrigações para garantia e promoção dos

direitos. (Confere com o estado de coisas no Brasil)

 

  1. c) a superação das violações de direitos pressupõe a adoção de medidas complexas por uma pluralidade de órgãos, envolvendo mudanças estruturais, que podem depender da alocação de recursos públicos, correção das políticas públicas existentes ou formulação de novas políticas, dentre outras medidas (como o ECI atual é muito mais grave do que o conceituado originalmente, a solução é ainda mais complexa e abrangente: nova constituição); e

 

  1. d) potencialidade de congestionamento da justiça, se todos os que tiverem os seus direitos violados acorrerem individualmente ao Poder Judiciário (Confere, observando que a justiça já está assoberbada, lenta, ineficaz, foge aos seus fins de pronta atenção e tutela jurisdicional, e é uma das instituições que se inserem no conceito de EIC).

 

Causa espécie que a seletividade eleitoreira e ideológica não tenha conseguido se lembrar do ECI na saúde, com mortes em corredores de hospitais por falta de atendimento e leitos; da manutenção das cracolândias, a céu aberto, em vias públicas, onde seres humanos reduzidos à condição de zumbis se deterioram e se matam por drogas, sem qualquer providência médica ou sanitária do estado; da ocupação do tráfico violento nas favelas e bairros menos abastados, além da ocupação silenciosa nas áreas elitizadas, significando uma tomada do estado de direito pelo estado do tráfico, um estado de fato que atenta contra a segurança nacional, pois o tráfico é transnacional; da posse incontrolada de armas de fogo ilegais pelo crime, e não combatida pelo estado, armas de guerra, de grosso calibre, granadas, morteiros, bazucas, exibidas ante a inércia dos governos, dos legisladores e das forças armadas, e ante a autorização tácita do judiciário, que age prontamente quando qualquer medida para eliminar este perigo tenta ser concretizada.

 

A falha estrutural na adoção de medidas legislativas para combater o ECI estrutural torna ineficaz e desnecessariamente custoso o processo estrutural normal para a solução do problema. Quando este tipo de coisa acontece em um país, é chegada a hora de uma nova ordem constitucional.

 

Por razões as mais diversas, há quem defenda ser desnecessário uma assembleia nacional constituinte. Seja por viverem em uma bolha confortável de poder e privilégios dos quais não desejam abrir mão, seja por mera cegueira humanitária, é certo que os que defendem a continuidade do que aí está e alegam que tudo está normal e as instituições funcionando evidentemente não têm a capacidade cognitiva ou a altivez moral para salvar seu próprio povo.

 

Ainda que em sede liminar na ADPF 347, e mesmo o Plenário entendendo que o STF não pode substituir o papel do Legislativo e do Executivo na consecução de suas tarefas próprias, atacando bloqueios políticos e institucionais sem afastar os demais poderes dos processos de formulação e implementação das soluções necessárias, não cabendo à corte suprema definir o conteúdo dessas políticas, nota-se que é apenas um jogo de palavras, pois, na prática, não há colmo o STF agir sem interferir profunda e indevidamente nos outros poderes. A interferência geral do STF é estratégica e o detalhamento das políticas públicas pelo poder atinente é uma ação meramente operacional, em decorrência da interferência estratégica.

 

Importante lembrar que o Estado de Coisas Inconstitucional busca solucionar as inconstitucionalidades praticadas contra o sistema dos direitos fundamentais e a população, de forma grave e reiterada, em virtude não só de omissões como também de  ações do poder público. Aqui entra em cena o EIC estrutural: contra a omissão e a ação do estado quando afeta a globalidade das instituições e serviços públicos. Corrupção, sangria de cofres públicos, gastos públicos incontrolados e não combatidos.

 

E o poder judiciário integra este sistema de direitos fundamentais, tornando-se também parte do problema nas hipóteses já aqui narradas. No ECI estrutural, o meio legal e constitucional para sua solução existe: constituinte. Não é necessária nenhuma aventura perigosa ou vanguardista pelo ativismo judicial, sem base legal.

 

O tom alarmista e dramático dos que apregoam que o país não vive uma revolução ou estado de guerra com violência que justificasse uma constituinte é facilmente contra-argumentado quando se nota que em muitos países, notadamente o próprio Brasil, a imensa maioria de nossas assembleias nacionais constituintes se deu sem estado de guerra, revolução ou violência.

 

O exemplo mais evidente do que foi dito é a atual constituição de 1988, promulgada após um período pacífico de assembleia constituinte, numa transição de um Brasil sem guerra civil para o Brasil que vemos hoje em dia. Aponte-se que a constituição de 1988 sofreu, até esta data, 109 emendas constitucionais, em 32 anos de existência, sendo algumas destas emendas de alto grau de extensão e profundidade, alterando sobremaneira nosso panorama jurídico. Isto somente mostra que a constituição de 1988 não é capaz de suprir a normatividade constitucional desejada e necessária à população, além de ter sido fundamentalmente desfigurada por 109 emendas. Já não se pode afirmar ser a mesma constituição de 32 anos atrás.

 

Outra importante observação que se faz é a de que, embora a ADPF 347 seja de 2015, e mesmo frente ao que decidiu o STF, o sistema carcerário brasileiro não só não foi corrigido como ainda piorou em termos de capacidade de custódia. Nada mudou. E, se num caso de ECI tópico, nada mudou, o que ocorreria se se tentasse resolver um ECI estrutural com medidas tópicas? A ineficácia ao quadrado.

 

4.      CONSIDERAÇÕES FINAIS

A categorização dos direitos fundamentais é continuamente alterada e acrescida ao longo do tempo, em gerações ou dimensões que se sucedem. Por este mesmo motivo, a estrutura dos poderes da república deve ser alterada, no sentido de acompanhar as mudanças da sociedade, da cultura, das demandas sociais. Poder executivo que não governa, poder legislativo que não representa as aspirações da sociedade e poder judiciário que se desvia de suas atribuições não são mais poderes do povo, são instituições burocráticas, apenas, cartórios onde há sempre o risco de os interesses pessoais e classistas baterem carimbo.

 

A noção de um ativismo judicial em prol de fazer justiça social para além da vigência, validade e aplicação da lei, é um perigoso conceito. O judiciário pressupõe-se um poder imparcial e isento, acionado pelo cidadão interessado e não de ofício. Não faz parte do poder judiciário, como função primeira, fazer justiça social. Este matiz ideológico coloca em cheque a imparcialidade, a técnica e a juridicidade da sentença de um juiz. Sem amparo legal ou constitucional, o ativismo judicial traz insegurança jurídica, pois o entendimento sem técnica é como uma biruta de aeroporto, mudando de direção ao sabor do vento. O risco é de decisionismo e arbitrariedade.

 

Como forma de evitar debates acadêmicos bizantinistas e infrutíferos, recomenda-se o método científico mais apropriado: a circunvisão, que nada mais é do que “olhar em volta”. Da observação, surge a hipótese científica, a partir da qual podem prosseguir eventuais debates.

 

Concluindo, a situação verificada no Brasil em 2020/2021 é de ECI estrutural e somente uma assembleia nacional constituinte pode solucioná-la, dada a evidente insuficiência dos meios tópicos para tratar a questão. O método da circunvisão é aplicável.

 

REFERÊNCIAS

https://www.dizerodireito.com.br/2015/09/entenda-decisao-do-stf-sobre-o-sistema.html

https://jus.com.br/artigos/72595/o-estado-de-coisas-inconstitucional-e-a-aplicabilidade-dos-direitos-fundamentais

https://www.tjsp.jus.br/download/EPM/Publicacoes/ObrasJuridicas/ic3.pdf?d=636675535815701997

https://www.scielo.br/pdf/rdgv/v15n2/2317-6172-rdgv-15-02-e1916.pdf

http://www.mpce.mp.br/wp-content/uploads/2018/05/10-O-Estado-de-Coisas-Inconstitucional-e-a-Judicializa%C3%A7%C3%A3o-da-Pol%C3%ADtica-P%C3%BAblica.pdf

https://sbdp.org.br/wp/wp-content/uploads/2020/03/LeonardoMariz-1.pdf

file:///C:/Users/libero.filho/Documents/10137-37173-1-PB.pdf

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https://www.academia.edu/18517817/Cl%C3%A1udio_P_S_Neto_e_Daniel_Sarmento_Direito_constitucional_teoria_hist%C3%B3ria_e_m%C3%A9todos_de_trabalho_PDF