Muitas coisas podem ser consideradas como injustiça, e o Brasil com certeza está bem servido de injustos. Contudo, existe um caso que se destaca dentre todas essas. Um caso que, fosse Kafka vivo, faria-o repensar sobre se suas obras não seriam demasiadamente leves. É essa a história de Marcos Mariano da Silva, que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) classificou como “o mais grave atentado à dignidade humana já visto na sociedade brasileira”.
Injustiça a la Kafka
Na famosa obra o Processo, do escritor austríaco Franz Kafka, e que conta com um excelente filme de 1992, bem fiel à obra original, um cidadão é acusado de um crime que não sabe qual. De modo que não se sabe quem o processa, nem qual a acusação, nem qual a possível pena. A obra é marcada por um surrealismo que nos faz questionar os sistemas modernos de justiças, e que deu origem ao termo kafkiano.
O caso Marcos Mariano da Silva é justamente a vida imitando a arte. Todavia, nesse caso, de uma maneira extremamente triste, e que faz do termo “kafkiano” um eufemismo.
De fato, o caso, que ocorreu em Pernambuco, é absolutamente inacreditável: preso em 1976, Marcos passou anos na cadeia por homicídio. O motivo? Pelo simples fato de ele ter o mesmo nome do verdadeiro culpado. Sendo que, somente seis anos após sua prisão, o verdadeiro acusado foi preso e ele foi solto.
Calma, que a injustiça piora
Foram seis anos preso injustamente. É grave, mas (infelizmente) não basta para configurar o caso mais grave de violação à dignidade humana do Brasil, já que, garimpando na jurisprudência brasileira, casos similares surgem aos montes.
Contudo, também infelizmente, o pesadelo de Marcos não parou aí: isso porque, três anos depois, 1985, ao ser parado em uma blitz, um policial civil do estado o reconheceu e o prendeu, imaginando que ele seria um foragido. O juiz, a quem a prisão fora comunicada, nem verificou o processo, e, sem demora, mandou Marcos de volta ao presídio. Pasmem: Marcos passou mais 13 anos atrás das grades, em um total de 19 anos encarcerado por um crime que não cometeu, e pelo simples fato de ter o mesmo nome que um criminoso.
O que torna mais grave a situação é que ninguém se deu ao trabalho de investigar, de conferir minimamente a “papelada” do processo. Ele já havia sido solto e o verdadeiro culpado já havia sido reconhecido, mas Marcos cumpriu mais 13 anos de sentença.
Martírio
Nos 13 anos em que passou preso pela segunda vez, no presídio Aníbal Bruno, em Recife, Marcos contraiu tuberculose e ficou cego, além de ter sido abandonado pela mulher e filhos.
Ou seja, foram longuíssimos 19 anos preso, quando bastaria um servidor, juiz ou policial, um funcionário da Justiça que examinasse o processo com um pouco de atenção. 19 longos anos, até ser finalmente solto em um mutirão da Justiça (e tem quem seja contra esses mutirões…). Tudo, absolutamente tudo, falhou, durante 19 anos, para com ele.
E, claro, foi uma injustiça institucionalizada, praticada pelo aparato estatal (o que torna o caso pior que outras atrocidades não muito longínquas, como o massacre do paralelo 11). Estado que deveria proteger o cidadão. Aliás, como bem escreve o administrativista Lucas Rocha Furtado, a função do Estado é “realizar direitos fundamentais”. No caso de Marcos Mariano Silva, foi exatamente o oposto.
O julgamento definitivo: injustiça e “falha generalizada”
Pouco tempo após sua soltura definitiva, Marcos ingressou com uma ação pleiteando danos morais e materiais contra o Estado. E nem assim ele teve um julgamento célere: o processo se arrastou por mais 10 anos.
Na primeira instância, o Estado foi condenado ao pagamento de R$ 356 mil em favor de Marcos. O segundo grau aumentou essa indenização para 2 milhões de reais em danos morais, além dos danos materiais, porém (de maneira surpreendente e até vexaminosa) ainda houve recurso por parte do aparato burocrático.
Finalmente, no ano de 2006, o STJ julgou a questão, ao analisar o Recurso Especial nº 802.435. A ministra Denise Arruda diagnosticou: “[o caso] Mostra simplesmente uma falha generalizada do Poder Executivo, do Ministério Público e do Poder Judiciário”. O falecido ministro Teori Zavascki, então ministro do STJ, lamentou: “Esse homem morreu e assistiu sua morte no cárcere […] O pior é que não teve período de luto”.
Assim é que o STJ manteve o valor da condenação após 10 anos de trâmite do processo, fazendo constar no julgamento que aquele foi o “mais grave atentado à violação humana já visto na sociedade brasileira”, conforme votou o ministro relator, Luiz Fux, à época no STJ.
A vida imita a arte
Há divergências exatamente ao valor da indenização. O estado de Pernambuco afirma que, em 2007, ele recebeu uma primeira parcela, um valor menor que foi pago ao ex-mecânico – fato que o advogado da vítima nega.
Afirma, ainda, que foi criada uma pensão especial, de R$ 1.200,00 mensais para Marcos, e que, dois anos depois, em 2009, Marcos Mariano teria recebido R$ 3,7 milhões do Estado. Sendo que teria permanecido em discussão judicial R$ 2 milhões, relacionados aos cálculos dos encargos, essencialmente o valor dos juros[1].
De qualquer forma, o julgamento final, de um recurso de agravo, só foi finalizado no ano de 2011.
E, nessas coisas que parecem de filme, em uma trágica curiosidade desse episódio feito de cores tristes, Marcos morreu horas após tomar conhecimento da decisão favorável à sua causa, em uma terça-feira, dia 22 de novembro de 2011.
Pois é, a ficção, às vezes, perde para a vida em ironia.
Referências
[1] http://g1.globo.com/pernambuco/noticia/2011/11/no-recife-ex-mecanico-preso-por-engano-foi-vitima-de-infarto-diz-laudo.html
LOPES, Aury. ROSA, Alexandre Morais da. Inocente preso 13 anos sem sentença é retrato da falência do Estado. Disponível em https://www.conjur.com.br/2015-mar-20/limite-penal-inocente-preso-13-sentenca-retrato-falencia-estado. Acesso em 01 de junho de 2021.