A INQUISITORIEDADE NO SISTEMA RECURSAL DA LEGISLAÇÃO DE TRÂNSITO BRASILEIRA

1. INTRODUÇÃO

Os Departamentos Estaduais de Trânsito, popularmente conhecidos como DETRANs, são os órgãos administrativos responsáveis pela gestão das medidas coercitivas referentes ao tráfego de veículos terrestres, possuindo suma importância na fiscalização para o bom funcionamento do trânsito.

Como tratam-se de órgãos estaduais, a regulamentação deu-se em datas diversas nos estados brasileiros, todavia, os trâmites processuais administrativos obedecem as mesmas formalidades. A natureza pode variar entre os estados, enquanto em alguns são considerados órgão administrativos, em outros podem ser uma entidade autárquica, no entanto, possuem a área de atuação delimitada pelo Código de Trânsito Brasileiro, além das Resoluções.

A exemplo, atuando no julgamento da Defesa Prévia, temos o DETRAN/ES, instituído no ano de 1969, por meio da Lei 2.4682/69. Evidencia-se que a Constituição Federal passou a ser vigente no ano de 1988, portanto, após a criação da Lei 2.4682/69, sendo assim, não houve a recepção efetiva de alguns princípios constitucionais indispensáveis a validade do trâmite nos processos administrativos.

No que se refere a primeira instância administrativa, o papel julgador é desempenhado pela Junta Administrativa de Recursos de Infração, (JARI). A Junta é responsável por julgar as infrações cometidas e decididas na Defesa Prévia apresentada ao DETRAN.

Já na segunda instância, existe a necessidade de avaliação da autoridade que autuou a infração para que o encaminhamento da defesa seja feito de maneira correta. Ele pode ser feito ao CONTRADIFE (Conselho de Trânsito do Distrito Federal), ao CETRAN (Conselho Estadual de Trânsito), ou ao CONTRAN (Conselho Nacional de Trânsito).

Por fim, apresenta-se como escopo da presente pesquisa a demonstração de que as formas de julgamento utilizadas pelos órgãos administrativos supramencionados ainda possuem resquícios inquisitoriais, onde a defesa apresentada pelo condutor possui diversas limitações e não é assistida de maneira integral pelos princípios constitucionais indispensáveis a manutenção justa do nosso sistema.

2. TRÂMITE RECURSAL NO PROCESSO ADMINISTRATIVO QUE ENSEJA A PENALIZAÇÃO DO CONDUTOR

Tratando sobre o início do processo administrativo, o DETRAN é responsável pela primeira notificação do condutor acerca da infração cometida, sendo assim, ele é notificado previamente por meio de correspondência, constante no endereço cadastrado no referido órgão.

Essa notificação se dará por meio de carta com A.R. (aviso de recebimento), e em caso de insucesso da entrega, haverá a publicação no D.I.O. (Diário Oficial do Estado), sendo o prazo para defesa nessa etapa não inferior a 30 dias. Caso o condutor não apresente defesa no prazo estabelecido, a sanção será efetivamente aplicada, porém, caso decida recorrer da decisão proferida pelo DETRAN, poderá ingressar com recurso na JARI. Ressalta-se que a Defesa Prévia não é requisito indispensável aos recursos destinados a Junta.

Decidindo o condutor recorrer por meio de Defesa Prévia, poderá ter seu recurso provido ou, em caso de negativa, ser notificado com a Imposição de Penalidade. Essa notificação é acompanhada por boleto para pagamento da multa, e, havendo interesse em novo recurso, o condutor deve dirigi-lo a JARI, uma vez que já houve o indeferimento da Defesa Prévia pelo DETRAN.

Nos recursos endereçados a JARI, não é possível que se faça a indicação do condutor, e o processo para aplicação das penalidades continua. Nessa fase, o prazo para elaboração da defesa também é não inferior a 30 dias e o recorrente poderá abordar apenas as matérias relativas ao mérito, ou seja, deverá ser argumentativo sobre a possibilidade de não aplicação da sanção de fato, como por exemplo, não passagem na data da infração pelo local indicado na Notificação de Imposição de Penalidade. Importante ressaltar que o recurso independe da garantia do juízo.

Por último, atuando na segunda instância, existem três órgãos: CETRAN, CONTRAN e CONTRADIFE. Para recorrer nessa fase é indispensável a presença de um recurso interposto na JARI, e a matéria a ser arguida possui as mesmas limitações da instância anterior, a alteração será no colegiado julgador.

A identificação do endereçamento na segunda instância será feita da seguinte forma: sendo o órgão responsável pela autuação municipal ou estadual, o recurso será endereçado ao CETRAN, na hipótese do órgão ser pertencente ao Distrito Federal, CONTRADIFE, ou, caso o órgão seja federal e tenha imposto suspensão superior a 6 meses, cassação, ou penalidade referente a infrações gravíssimas, o órgão a ser acionado é o CONTRAN.

Ressalta-se que o pagamento da multa não presume assunção da penalidade, todavia, caso o pagamento ocorra e ao final do processo administrativo e verifique-se ausência dos pressupostos necessários a sua aplicabilidade, o condutor deverá ser ressarcido.

Superado o trâmite do processo administrativo da imposição de penalidades ao condutor, passa-se aos princípios constitucionais violados em cada uma das fases apresentadas.

3. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS NÃO SATISFEITOS

Existem inúmeras inobservâncias a preceitos constitucionais no que se refere ao trâmite no sistema recursal nos órgãos administrativos de trânsito, o primeiro ocorre no início do processo, na fase de notificação prévia, realizada pelo DETRAN. De acordo com o artigo 282, § 1º, do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), ainda que a notificação seja devolvida, a citação será considerada válida:

Art. 282. Caso a defesa prévia seja indeferida ou não seja apresentada no prazo estabelecido, será aplicada a penalidade e expedida notificação ao proprietário do veículo ou ao infrator, no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, contado da data do cometimento da infração, por remessa postal ou por qualquer outro meio tecnológico hábil que assegure a ciência da imposição da penalidade.

§ 1º A notificação devolvida por desatualização do endereço do proprietário do veículo será considerada válida para todos os efeitos. Grifo nosso.

Portanto, de acordo com o artigo supramencionado, observa-se que a citação do condutor trata-se apenas de mero ato formal, pois ainda que não seja de fato realizada, por desatualização cadastral, será considerada válida.

Todavia, a Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso LV, preconiza que o processo administrativo e judicial respeitará o princípio do contraditório e da ampla defesa:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; Grifo nosso.

Evidencia-se que o contraditório só será plenamente satisfeito caso haja a possibilidade de defesa do réu, no entanto, o artigo 282, § 1º, do CTB, não recepciona o princípio constitucional anteposto, pois demonstra que o seu principal objetivo é a satisfação formal do processo administrativo.

Outra forma de notificação empregada é a publicação em D.I.O., acerca desse tipo de notificação, os Tribunais Superiores entendem que a citação editalícia só é valida quando comprovado o exaurimento de todos os meios hábeis para localização do endereço da parte ré:

RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. CPC/15. AÇÃO MONITÓRIA. CITAÇÃO POR EDITAL. NECESSIDADE DE ESGOTAMENTO DE TODOS OS MEIOS DE LOCALIZAÇÃO DO RÉU. PESQUISA DO ENDEREÇO NOS CADASTROS DE ÓRGÃOS PÚBLICOS OU DE CONCESSIONÁRIAS DE SERVIÇOS PÚBLICOS. ART. 256, § 3º, DO CPC. NULIDADE PROCESSUAL CARACTERIZADA. 1. Controvérsia em torno da legalidade da citação do recorrente por edital. 2. O novo regramento processual civil, além de reproduzir a norma inserta no art. 231, II, do CPC/73, estabeleceu que o réu será considerado em local ignorado ou incerto se infrutíferas as tentativas de sua localização, inclusive mediante requisição pelo juízo de informações acerca de seu endereço nos cadastros de órgãos públicos ou de concessionárias de serviços públicos. 2. No caso, o fundamento utilizado pelo acórdão recorrido de inexistir comando legal impondo ao autor o dever de provocar o juízo no sentido de expedir ofícios a órgãos ou prestadores de serviços públicos a fim de localizar o réu não subsiste ante a regra expressa inserta no § 3º, do art. 256, do CPC. 3. RECURSO ESPECIAL PROVIDO PARA DECLARAR A NULIDADE DA CITAÇÃO POR EDITAL.

(STJREsp: 1828219 RO 2019/0217390-9, Relator: Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Data de Julgamento: 03/09/2019, T3TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 06/09/2019) Grifo nosso.

Em consonância com o entendimento, demonstra-se que a legislação de trânsito possui margem para inúmeras irregularidades, pois inexiste qualquer previsão acerca da tentativa de outros meios hábeis para localização do condutor.

Ressalta-se que a citação editalícia não é efetuada por todos os DETRANs, uma vez que possuem regulamento interno próprio, no entanto, aos que possuem essa previsão, ainda que seja uma segunda tentativa de notificação, não é o meio adequado para satisfação do princípio do contraditório. Consequentemente, a citação editalícia tem seus efeitos nulos, uma vez que não obedece o trâmite legal para que possa ser plenamente satisfeita.

O Código de Processo Civil, em seu artigo 15, versa acerca de sua possibilidade de utilização de maneira subsidiária no processo administrativo, por isso, a aplicabilidade da nulidade de citação é valida:

Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.

Em complemento, Júnior, (2016, p.46), trás o conceito de sistema inquisitório:

(…) o modelo inquisitório se baseia no princípio da autoridade, em que o imputado é um mero objeto do juízo que, por sua vez, detém poderes de iniciativa ex officio, poderes instrutórios ilimitados, sob a proteção de um procedimento escrito e secreto, que não conhece presunção de inocência, mas pelo contrário, trabalha com presunção de culpa. Grifo nosso

A imputação de culpa ao condutor antes mesmo da verificação é latente no que se refere a legislação de trânsito, pois quando o CTB considera válida a citação ainda que ela não tenha sido de fato realizada, viola a presunção de inocência, uma vez que a penalidade é aplicada sem que haja a oportunização de defesa.

Ademais, no que se refere a JARI, existe uma problemática na imparcialidade de seu julgamento, pois de acordo com a Resolução do CONTRAN nº 357/10, Anexo 4, a sua constituição será de no mínimo três integrantes, sendo escolhidos pelo próprio órgão, autor da resolução.

Valendo-se do princípio da paridade ou simetria das formas não é possível que a indicação dos membros integrantes da Junta seja por meio de escolha de uma das partes interessadas, nesse caso, o Sistema Nacional de Trânsito, pois tratando-se de processos judiciais o julgador é alheio aos interessados, existindo assim a figura de um juiz imparcial. No momento em que a figura do julgador e do acusador fundem-se, a legislação novamente demonstra resquícios inquisitoriais.

Por fim, o condutor deve ter ciência de que caso sinta-se lesado na esfera administrativa poderá procurar o judiciário como meio de resguardar o seu direito, sempre auxiliado por um especialista no assunto.

4. CONCLUSÃO

Conforme demonstrado, a legislação de trânsito brasileira possui inúmeras lacunas no que se refere a questões de efetividade da justiça, pois os trâmites devem ser obedecidos para que de fato haja a satisfação dos princípios, e não apenas por mera formalidade.

Quando o CTB admite a possibilidade de decurso do processo administrativo sem que de fato o condutor tenha sido notificado, viola claramente o princípio do contraditório e da ampla defesa, uma vez que para o cerceamento de direitos deve haver a oportunização da defesa, bem como a oxigenação das provas.

Outra problemática suscitada que merece atenção é a maneira de escolha dos membros da JARI, que são eleitos por meio de indicação de uma das partes interessadas.

Destarte, afirma-se que existem resquícios inquisitoriais nos processos administrativos que envolvem os órgãos de trânsito, pois a figura do julgador atua também como aplicador de penalidade, tornando difícil a imparcialidade no que se refere a análise dos recursos.

Para que haja uma solução efetiva para o problema suscitado, é indispensável a desvinculação da figura do julgador e do impositor de penalidade, sendo necessário uma reformulação desse sistema, no que se refere aos seus órgãos, e a sua legislação orientadora.

REFERÊNCIAS:

BRASIL. Lei nº 9.503/97. Código de Trânsito Brasileiro (1997). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9503compilado.htm> Acesso 27 abr. 2021.

BRASIL. Lei nº 9.784/99. Regula o Processo Administrativo Federal (1999). Disponível el <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9784.htm> Acesso em 29 abr. 2021.

CONSELHO NACIONAL DE TRÂNSITO. CONTRAN. Resolução nº 257/2010, de 02 de agosto de 2010. Estabelece diretrizes para a elaboração do Regimento Interno das Juntas Administrativas de Recursos de Infrações – JARI. DOU 05.08.2010.

Departamento de Trânsito do Tocantins. DETRANTO. JARI. Disponível em: <https://detran.to.gov.br/infracao/jari/> Acesso em 27 abr. 2021.

Departamento Estadual de Trânsito do Espírito Santo. DETRAN/ES. Competências. Disponívelem:<https://detran.es.gov.br/quem-somos#:~:text=Cria%C3%A7%C3%A3o%20do%20DETRAN%7CES%20e%20suas%20Compet%C3%AAncias&text=2.482%2C%20em%2024%20de%20Dezembro,%C3%A2mbito%20da%20compet%C3%AAncia%20do%20Estado.> Acesso 27 abr. 2021.

JÚNIOR. Dário José Soares. O dogmatismo do binômio acusatoriedade-inquisitoriedade e o processo penal democrático. Tese Doutorado (PUC). Belo Horizonte, 2014.

Superior Tribunal de Justiça (STJ) – Recurso Especial: 1828219, RO 2019/0217390-9, Relator: Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Data de Julgamento: 03/09/2019, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 06/09/2019.